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terça-feira, 30 de novembro de 2021

E eu sei?

"Ainda não consegui lobrigar a mais breve sombra de desânimo em seus rostos, onde se desenham privações de toda a sorte, a miséria mais funda; não tremem, não se acobardam e não negam as crenças mantidas pelo evangelizador fatal e sinistro que os arrastou a uma desgraça incalculável.

 

Mulheres aprisionadas na ocasião em que os maridos caíam mortos na refrega e a prole espavorida desaparecia na fuga, aqui têm chegado — numa transição brusca do lar mais ou menos feliz para uma praça de guerra, perdendo tudo numa hora — e não lhes diviso no olhar o mais leve espanto e em algumas mesmo o rosto bronzeado de linhas firmes e iluminado por um olhar de altivez estranha e quase ameaçadora. Uma delas acaba de ser conduzida à presença do general. Estatura pequena, rosto trigueiro, cabelos em desalinho, lábios finos brancos, rugados aos cantos por um riso doloroso, olhos vesgos, cintilantes, traz ao peito, posta na abertura da camisa, a mão direita, ferida por um golpe de sabre.

 

— Onde está teu marido?

 

— No céu.

 

— Que queres dizer com isto?

 

— Meu marido morreu.

 

E o olhar correu rápido e fulgurante sobre os circunstantes sem se fitar em ninguém.

 

O chefe da comissão de engenharia julgou conveniente fazer-lhe algumas perguntas acerca do número de habitantes e condições da vida, em Canudos.

 

— Há muita gente aí, em Canudos? 


— Há muita gente aí, em Canudos?

 

— E eu sei?... Eu não vivo navegando na casa dos outros. Está com muitos dias que ninguém sai por via das peças. E eu sei contar? Só conto até quarenta e rola o tempo pra contar a gente de Belo Monte...

 

— O Conselheiro tem recebido algum auxílio de fora, munições, armas?...

 

— E eu sei? Mas porém em Belo Monte não manca [mancar - faltar (manquer). É singular este galicismo no sertão] arma nem gente pra brigar.

 

— Onde estava seu marido quando foi morto?

 

Esta pergunta foi feita por mim e em má hora a fiz. Fulminou-me com o olhar.

 

— E eu sei? Então querem saber de tudo, do miúdo e do grande. Que extremos!...

 

E uma ironia formidável, refletida nos lábios secos que ainda mais se rugaram num sorriso indefinível, sublinhou esta frase altiva, incisiva, dominadora como uma repreensão

 

— Onde está Vila Nova?

 

—  Abancou para o Caipã.

 

— E Pajeú?

 

É de hoje que ele foi pro céu?

 

— Tem morrido muita gente aí?

 

E eu sei?...

 

Este e eu sei? é o início obrigado das respostas de todos; surge espontaneamente, infalivelmente numa toada monótona, encimando todos os períodos, cortando persistentemente todas as frases.

 

— Fugiram muitos jagunços hoje, no combate?

 

— E eu sei? Meu marido foi morto por um lote de soldados quando saía; o mesmo tiro quebrou o braço de meu filho de colo.. Fiquei estatalada, não vi nada... este sangue aqui na minha manga é de meu filho, o que eu queria era ficar lá também, morta...

 

E assim vão torcendo e evitando a todas as perguntas, fugindo vitoriosamente ao interrogatório mais habilmente feito E que as interrogativas assediem-nos demais, inflexivelmente, quando não é mais possível tergiversar, lá surge o infalível — e eu sei? tradução bizarra de todas as negativas, eufemismo interessante substituindo o não claro, positivo."


EUCLIDES DA CUNHA -  Diário de uma expedição

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