De cada R$ 4 que a consultoria Alvarez & Marsal fatura de honorários no Brasil, R$ 3, ou 75%, vêm de empresas investigadas pela "lava jato". Mesmo assim, o juiz do finado consórcio de Curitiba e ex-ministro da Justiça do governo Jair Bolsonaro — presidente da República que ajudou a eleger em 2018 — foi trabalhar para a empresa que administra, entre outras, a recuperação judicial da Odebrecht, um dos principais alvos da quebradeira lavajatista.
Depois de abandonar a toga e cargo de ministro no governo Bolsonaro, Sergio Moro foi trabalhar para a consultoria que faz a administração da recuperação judicial da construtora Odebrecht
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Considerando que Sergio Moro tenta agora voltar à vida pública via cargo eletivo, de interesse público, o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), levantou o sigilo de todos os documentos dos autos do processo sobre os honorários recebidos pelo ex-juiz quando prestou serviços à consultoria dos Estados Unidos.
A defesa e a assessoria de imprensa do pré-candidato a presidente estão tentando colar a tese de que o TCU estaria quebrando o sigilo do ex-ministro. Mas o despacho de Dantas apenas pede informações, que são públicas, a título de cooperação, coletadas das varas de recuperação judicial em processos públicos.
Com base em decisões anteriores do Supremo Tribunal Federal sobre "quebra de sigilo", a defesa da Alvarez & Marsal e de Moro se recusaram, até o momento, a apresentar esses dados. Em considerações encaminhadas à reportagem da Folha de S.Paulo, algumas decisões do STF apontariam que o TCU não poderia requisitar informações que causem quebra de sigilo bancário em relações privadas.
Só a Odebrecht paga mensalmente à ex-empregadora de Moro cerca de R$ 1,2 milhão. E já são 30 meses de contrato. Do que se tem notícia, a construtora baiana tem honrado os pagamentos milionários — que estão sendo depositados judicialmente, em razão de uma decisão da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. Mas a Odebrecht quer revisar seu acordo de leniência e está inadimplente com a União.
A decisão pela publicidade do processo que tramita no TCU foi tomada após pedido do subprocurador-geral Lucas Rocha Furtado, do Ministério Público junto ao TCU. No último dia 18, Dantas já havia concedido ao MP acesso integral ao contrato de Moro com a empresa.
No despacho, o ministro explica que a documentação da contratação de Moro até o momento não foi apresentada na íntegra. Apenas foram indicados excertos de cláusulas contratuais e termo de distrato do ex-juiz com uma das empresas que compõem o grupo empresarial no Brasil. Segundo Dantas, não haveria necessidade de tratamento sigiloso aos documentos, e os trechos especificamente sigilosos já estão tarjados.
Quanto às informações relativas aos processos em que a Alvarez & Marsal atua como administradora judicial e aos honorários estabelecidos, o ministro lembrou em seu despacho que são dados públicos, que podem ser obtidas por meio de consultas às respectivas varas de falências e recuperações judiciais.
Dantas ressaltou que a administradora judicial "exerce relevante papel em regime de colaboração com o estado", o que justificaria a classificação dos documentos dos autos como públicos.
O relator do processo ainda frisou que não constam dos autos informações protegidas por sigilo fiscal ou bancário. Com relação às transcrições das mensagens de Moro com os procuradores da autoapelidada "lava jato", compartilhadas pelo Supremo Tribunal Federal, Dantas lembrou que tampouco estão cobertas por segredo de Justiça.
Histórico
No final do último ano, Dantas determinou que a Alvarez & Marsal revelasse quanto pagou ao ex-juiz depois que ele deixou a empresa, em outubro de 2021. O ministro também ordenou um levantamento de todos os processos de recuperação judicial em que a consultoria atuou no período da "lava jato", em ordem cronológica, para acompanhar a evolução dos negócios da empresa.
Segundo o MP, é preciso investigar o conflito de interesses no fato de o ex-juiz Sergio Moro ter proferido decisões judiciais e orientado as condições para celebração de acordos de leniência da Odebrecht e, logo em seguida, ter ido trabalhar para a consultoria que faz a administração da recuperação judicial da mesma empresa.
Para especialistas ouvidos pela ConJur, há indícios suficientes para ensejar uma investigação mais profunda da conduta do ex-juiz. Mais especificamente, a ocorrência da chamada "porta giratória", quando um indivíduo pratica ações no serviço público que causam consequências em determinados segmentos econômicos e, depois, vai trabalhar na iniciativa privada, se beneficiando dos efeitos que ajudou a produzir ou utilizando informações privilegiadas.
Um dos principais argumentos de Moro e da consultoria é que o ex-juiz não atuava diretamente, na Alvarez & Marsal, nas recuperações judiciais. Para o advogado e ex-conselheiro da Comissão de Ética Pública da Presidência da República Mauro Menezes, esse argumento é "uma atitude maliciosa, para promover simulação de que ele não foi beneficiado pelo que tinha feito anteriormente".
"A 'lava jato', por seu caráter espetacularizado, acabou resultando na inviabilização financeira das companhias investigadas. Por isso, pouco importa se ele trabalhou ou não na área de recuperação judicial. Ele não está impedido de trabalhar com recuperações judiciais, mas sim nessa empresa (a Alvarez & Marsal). O que importa é ele receber o dinheiro de uma empresa que ele favoreceu economicamente", afirma.
Lenio Streck, advogado e colunista da ConJur, também aponta o evidente conflito de interesses. "Tudo é muito estranho. Ou um lance de extrema sorte da empresa em prospectar um ex-juiz. Sim, porque os números são incríveis. A alegoria que cabe é: Moro se colocou antes de uma curva da estrada e espalhou pregos; e distribuiu cartões anunciando a Borracharia A&M — casualmente, onde foi trabalhar como consultor dos borracheiros. Vejam os números: os grande clientes da A&M são empresas que estiveram enredadas na 'lava jato'. Problema? Não haveria. Desde que o juiz da 'lava jato' não tivesse sido Moro."
Sergio Renault, advogado especialista em improbidade, concorda que há indícios para justificar uma investigação. "A história envolve o juiz, a empresa de consultoria que assessorou empresas investigadas na 'lava jato' e depois contratou o ex-juiz. Há indícios que justificam a investigação", afirma.
Também é o que pensa o criminalista Pierpaolo Bottini, ressaltando que é preciso resguardar o direito de defesa dos acusados. "Os fatos devem ser apurados. Vale lembrar que houve reconhecimento de suspeição no caso, declaração de imparcialidade do magistrado. É preciso que venha à tona todo o contexto no qual se deram os atos, sempre se respeitando o direito de defesa, tão criticado por aqueles que agora dele precisam fazer uso", opina.
Para Pedro Estevam Serrano, mesmo que se possa questionar a competência do TCU para investigar o caso, como fizeram Moro e a consultoria, é possível dar continuidade à apuração no âmbito criminal, inclusive apurando a relação dos atores com o governo dos Estados Unidos.
"É preciso investigar desde a própria eventual obtenção de ganho indevido de alguém pela atuação da A&M como também a relação da consultoria com entidades do governo norte-americano e se esse governo foi beneficiado indevidamente por algum acordo produzido aqui no Brasil, e se esse benefício recebido de alguma forma interferiu na eventual contratação de Moro. São aspectos que têm de ser investigados no campo criminal e de improbidade pelo Ministério Público e pela Polícia Federal."
Para o advogado Cristiano Zanin, o caso de "porta giratória" é claro. "Você imagina um jogador tirar a camisa no intervalo e voltar para jogar os outros 45 minutos pelo outro time?", questiona. Por isso, é essencial que o ex-juiz preste contas à sociedade.
"O conflito de interesse é uma questão extremamente séria, especialmente quando a prática incontestável de lawfare (que foi identificada nas ações desse agente público) teve a capacidade não somente de abalar vidas e biografias, como também de interferir em todo o cenário político do país e de devastar as finanças de diversas empresas nacionais. O dever de transparência clama por uma prestação até mesmo voluntária das satisfações devidas à sociedade."
Marco Aurélio de Carvalho, fundador do Prerrogativas, reforça que Moro tem obrigação de prestar informações. "Talvez ele não tenha se dado conta de que ele saiu do Judiciário e hoje assumiu uma outra dimensão na condição de candidato a presidente da República. Ele continua se comportando como se estivesse blindado pela proteção da toga", opina.
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006.684/2021-1
Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2022, 16h47
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