Informações de 500 milhões de consumidores são cruzadas para traçar um perfil detalhado. E quase ninguém sabe disso
Natasha Singer, The New York Times
Ela sabe quem você é. Sabe onde você mora e sabe o que você faz.
Vasculha a vida mais do que o próprio FBI ou o IRS (Serviço da Receita dos EUA), ou do que o apurado olhar digital do Facebook e do Google. É muito provável que ela saiba coisas sobre você como idade, raça, sexo, peso, altura, estado civil, escolaridade, tendência política, hábitos de consumo, preocupações com a saúde da família, sonhos para férias – e assim por diante.
Neste momento, em Conway, cidade do Estado de Arkansas, sudeste do país, mais de 23 mil servidores capturam, comparam e analisam dados de consumidores para uma empresa de alta tecnologia que, ao contrário dos grandes nomes do Vale do Silício, raramente aparece nas manchetes.
É a Acxiom Corporation, o discreto gigante de uma indústria multibilionária conhecida como marketing de bancos de dados.
Poucos consumidores ouviram falar da Acxiom, que também atua no Brasil (mais informações na página ao lado), onde tem um registro de 175 milhões de pessoas. Analistas afirmam que ela tem o maior banco de dados de consumidores de todo o mundo – e que quer conhecer muito mais. Seus servidores processam mais de 50 trilhões de “transações” de dados por ano.
Segundo executivos da empresa, o banco de dados contém informações de 500 milhões de consumidores ativos em todo o mundo, com cerca de 1.500 categorias de dados por pessoa.
Esta coleta e análise de dados em grande escala – baseada em informações disponíveis em registros públicos, pesquisas com consumidores e outros meios – são perfeitamente legais. Entre os clientes da Acxiom estão grandes bancos, montadoras, lojas de departamentos – e todas as companhias importantes que procuram conhecer os clientes.
Para a Acxiom, o modelo é lucrativo. Entretanto, os lucros carregam um custo para os consumidores. Autoridades do governo dos EUA afirmam que a legislação atual talvez não esteja preparada para lidar com a rápida expansão de um setor em que as empresas muitas vezes coletam e vendem informações financeiras e de saúde que em geral são sigilosas.
É como se o minério de nossas vidas digitais fosse escavado, refinado e vendido para quem oferece o maior lance, em geral sem o nosso conhecimento – por empresas cuja existência a maioria das pessoas desconhece.
Julie Brill, da Comissão Federal de Comércio dos EUA, diz que gostaria que as empresas informassem às pessoas os dados que coletam, como os coletam, com quem elas os compartilham e como são utilizados. “Se a pessoa é listada como diabética ou grávida, o que acontece com esta informação? Para onde ela vai?”, questiona. “Nós, enquanto sociedade, precisamos definir as regras”.
PRIVACIDADE
Em folhetos, a Acxiom se promove como “líder global de ideias inovadoras para tratar do problema da privacidade dos consumidores e conquistar a confiança do público”. Mas especialistas em segurança e entidades de defesa do consumidor ouvidos pela reportagem a retratam como uma companhia que privilegia interesses de clientes sobre os dos consumidores.
Os folhetos da Acxiom, por exemplo, anunciam um sistema especial de segurança para que os dados enviados por clientes sejam codificados. No entanto, especialistas em segurança que examinaram o site da Acxiom para o New York Timesdescobriram descuidos fundamentais no formulário usado por consumidores que buscam acesso aos seus próprios perfis. (A Acxiom afirma que corrigiu a falha.)
Em uma economia digital em crescimento, a Acxiom tem técnicas avançadas para garimpar e refinar dados. Ela contratou talentos da Microsoft, Google, Amazon e MySpace e usa uma poderosa estratégia multiplataforma para prever o comportamento do consumidor.
Evidentemente, muitos anúncios já são personalizados, baseado nas atividades dos usuários. Basta pensar nos “cookies”, pedaços do código de computador, inseridos nos browsers para acompanhar a navegação. Mas, segundo analistas, a Acxiom funde o que sabe sobre o nosso comportamento offline, online e no celular, criando retratos detalhados. Seus executivos chamam essa estratégia de uma “visão de 360 graus” dos consumidores.
“A vantagem é que ela tem um banco de informações offline coletado por 40 anos, o que pode ampliar sua capacidade no mundo digital”, diz Mark Zgutowicz, analista do banco de investimentos Piper Jaffray.
Defensores da privacidade temem que as técnicas levem a uma nova era da divisão dos consumidores de acordo com um perfil. Jeffrey Chester, diretor executivo do Centro para a Democracia Digital, uma organização sem fins lucrativos de Washington, afirma: “É o Big Brother do Arkansas”.
RASTREAMENTO
Scott Hughes, dono de uma pequena empresa que tem uma conta no Facebook, é o consumidor ideal da Acxiom. Na realidade, foi criado por ela. Hughes é um personagem fictício usado como exemplo em uma apresentação da Acxiom para investidores em 2010. Comprador frequente, ele foi elaborado para mostrar o poder da estratégia multiplataforma.
Na apresentação, ele entra no Facebook e vê que sua amiga Ella acabou de se tornar fã da Bryce Computers, uma loja de eletrônicos imaginária e cliente da Acxiom. O post de Ella sugere a Hughes que entre na fan page da Bryce Computers e dê uma olhada em uma impressora.
A navegação parece inofensiva. Mas ela aciona um sistema que reconhece os consumidores, lembra do seu comportamento de compra, os classifica e cria um anúncio sob medida.
Quando Hughes clica em um link para a loja online da Bryce, por exemplo, o sistema o reconhece por sua atividade no Facebook e mostra-lhe uma impressora do seu interesse. Ele se registra no site, mas não compra o produto na hora, então o sistema o segue online. E, vejam só, na manhã seguinte, enquanto vê as notícias de beisebol na ESPN.com, o anúncio da impressora aparece novamente.
À noite, ele volta ao site da Bryce onde, afirma a apresentação, “é reconhecido instantaneamente”. Então o site faz uma oferta mais atraente: um desconto de US$ 10 e frete gratuito.
Não é uma oferta aleatória. A Acxiom tem um sistema de classificação, o PersonicX, que define os consumidores em uma das 70 categorias socioeconômicas e faz a oferta de acordo com ela.
A ferramenta classifica Hughes numa categoria de pessoas de classe média alta que usam serviços bancários pela internet, assistem à programação esportiva, dão atenção ao preço dos produtos – e respondem às ofertas de frete gratuito.
Corretamente catalogado, Hughes compra a impressora.
O sistema não para aí. Depois, ele envia descontos para cartuchos de tinta e papel, e sugere que ele doe a impressora antiga a uma escola próxima.
SOFISTICAÇÃO
Analistas dizem que as empresas fazem isso para que os consumidores informem espontaneamente outros dados pessoais – nomes, endereços de e-mail e número de celular. Assim, anúncios personalizados podem ser oferecidos a qualquer momento, em todo lugar.
No entanto, existe uma tênue diferença entre personalização e perseguição. Embora muitas pessoas gostem de ofertas sob medida, outras estão convencidas de que elas ocultam uma vigilância abusiva e até manipuladora.
“Olhando friamente, perceberemos que o objetivo é enganar o consumidor”, diz Dave Frankland, diretor de pesquisa de informações da empresa Forrester Research. “Por outro lado, seu negócio é entregar os anúncios para as pessoas certas”.
Décadas antes da internet que existe hoje, um empresário chamado Charles Ward plantou as sementes da Acxiom. Em 1969, Ward fundou em Conway a empresa de processamento de dados Demographics Inc., em parte para ajudar o Partido Democrata a conquistar eleitores. Na época, a Demographics e o seu solitário computador usavam catálogos telefônicos públicos para elaborar listas de mala direta para campanhas.
Hoje, a Acxiom tem em seu banco de dados cerca de 190 milhões de indivíduos e 126 milhões de domicílios apenas nos Estados Unidos. Além disso, ela trabalha com 47 das 100 maiores empresas do país listadas pela revista Fortune, em alguns casos, administrando os bancos de dados dos consumidores. E também trabalhou com o governo dos EUA depois dos ataques terroristas de 11 de setembro, fornecendo informações sobre 11 dos 19 sequestradores.
Para ampliar seus serviços, ela intensificou as contratações recentemente. Em julho, nomeou para o cargo de CEO Scott E. Howe, ex-vice-presidente corporativo do grupo de publicidade da Microsoft. E contratou Phil Mui, ex-gerente de produtos do Google Analytics, para o cargo de diretor de produtos e engenharia.
Em entrevistas, Howe definiu a Acxiom como uma “refinaria de dados” do novo milênio. A descrição posiciona a Acxiom mais como uma prestadora de serviços analíticos de altíssima velocidade, capaz de competir com Facebook e Google, em vez de um espião dos consumidores.
No entanto, quanto mais as empresas do setor garimpam dados pessoais, mais se tornam alvos de hackers – e das entidades de defesa do consumidor.
Este ano, a revista Advertising Age classificou a Epsilon, outra empresa de marketing de dados, como a maior agência de publicidade dos EUA, e a Acxiom em segundo. A Epsilon ficou relativamente conhecida no ano passado depois de uma grave falha de segurança que expôs endereços de e-mail de milhões de clientes de empresas como Citibank, JP Morgan Chase, Target, Walgreens e outros. Em 2003, também a Acxiom teve problemas de segurança.
Apesar disso, aqueles que defendem a privacidade dizem que estão mais preocupados com os sistemas de classificação, que dividem as pessoas entre aquelas que têm grande valor (e que recebem promoções e descontos melhores), e as que têm baixo valor.
Ser excluído de uma promoção para um pacote de férias não é tanto o problema, segundo Pam Dixon, diretora executiva do World Privacy Forum, uma organização sem fins lucrativos de San Diego, na Califórnia. Mas se os algoritmos julgarem que não vale a pena enviar a certas pessoas, por exemplo, ofertas de cursos universitários ou serviços de saúde, o resultado pode ser negativo. “Com o tempo, há uma porção de oportunidades que não serão vistas”, diz Dixon.
LEGISLAÇÃO
Até agora, as empresas operavam sem o público saber. Ao contrário de agências que coletam e vendem informações financeiras sigilosas sobre a capacidade de crédito de determinadas pessoas ou para fins de emprego, empresas como a Acxiom não são obrigadas por lei a mostrar aos consumidores o que sabem sobre eles, para que possam corrigir eventuais erros.
É possível que a situação mude. Este ano a Comissão Federal de Comércio dos EUA divulgou um documento pedindo mais transparência das empresas e solicitando ao Congresso do país que conceda aos consumidores o direito de acesso às informações a seu respeito.
O “Catálogo de Produtos de Dados sobre Consumidores” da Acxiom oferece centenas de detalhes de indivíduos ou domicílios. As empresas podem comprar dados precisos das residências em que as pessoas estão preocupadas, por exemplo, com alergias, diabetes ou “necessidades da terceira idade”. Além disso, estão à venda dados de financiamento de imóveis e renda.
Em geral, clientes compram os dados para preservar seus melhores consumidores ou encontrar clientes em potencial – ou ambas as coisas.
Mas o catálogo oferece informações que assustam os que defendem a privacidade, preocupados com o risco de mau uso delas. Elas incluem interesses de pessoas – obtidos, diz o catálogo, “de compras e de pesquisas respondidas por elas” – como “famílias cristãs”, “dietas/emagrecimento”, “jogos de cassino”, “aumente sua renda” e “fumo/tabaco”. A Acxiom vende também dados de raça, etnia e país de origem.
Por e-mail, a diretora de privacidade da Acxiom, Jennifer Barrett Glasgow, diz que os dados de raça e etnia são usados para “aprofundar o conhecimento destas comunidades para fins de marketing”.
Joel R. Reidenberg, especialista em privacidade e professor da Fordham Law School, afirma que isso é preocupante porque a classificação por raça pode ser incorreta e uma pessoa pode não querer ser visada por este tipo de marketing.
DIREITOS
A Acxiom tem um formulário online de solicitação de dados, anunciado como uma maneira fácil de os consumidores acessarem as informações coletadas. Entretanto, o processo não é tão fácil assim.
No início de maio, a repórter do New York Times decidiu solicitar seus dados à Acxiom, como qualquer consumidor deveria poder. Mas antes, pediu ajuda a um especialista em segurança do jornal. Ele examinou o site e observou que o formulário não utilizava um protocolo criptografado padrão – chamado https – usado no comércio eletrônico. Ao testá-lo usando um software que captura dados enviados pela internet, ele viu que o número de identidade não foi criptografado. A repórter foi aconselhada a não solicitar o seu arquivo, por causa do risco.
Ashkan Soltani, um pesquisador independente da área de segurança e ex-especialista em proteção de identidade da Comissão Federal do Comércio, também examinou o site da Acxiom e chegou à mesma conclusão.
Jennifer Barrett Glasgow, da Acxiom, diz que o site sempre usou o https, mas no dia seu sistema de segurança detectou um “link defeituoso”. Desde então, a falha foi consertada.
No dia 25 de maio, a repórter fez a solicitação online à Acxiom e incluiu um cheque de US$ 5 enviado por Correio, exigido para cobrir os custos. A resposta só chegou no fim de julho, depois que esta reportagem foi publicada, com uma lista de endereços em que ela morou nos últimos anos. Os dados detalhados – informações financeiras, histórico de compras, viagens, saúde, hábitos de lazer – não são revelados.
“Nós não temos a capacidade de encontrar dados de uma pessoa específica”, diz Barrett Glasgow. “Não há uma ferramenta para buscar pelo nome”.
A Comissão de Comércio dos EUA não quis comentar os procedimentos. Mas Jon Leibowitz, presidente da comissão, afirma que os consumidores deveriam ter o direito de ver e corrigir detalhes a seu respeito coletados e vendidos pelas empresas. “Eles não passam de uns paparazzi digitais que coletam informações de todos nós, sem ser vistos”.
/ TRADUÇÃO ANNA CAPOVIL
Fonte: ESTADO DE SP
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