Marcelo Rubens Paiva, no Estadão
Difícil detectar como surgiram alguns achados brasileiros, o chorinho [não a música, mas a dose extra que nos é servida na maioria dos bares] e o sertanejo universitário [a música, não o interiorano que entrou na faculdade].
Quando começou?
1. Chorinho.
Peça um uísque. O garçom trará a garrafa, para você conferir a procedência, exigência de uma economia que convive há séculos com contrabando e pirataria, servirá a dose numa pequena cuia de alumínio de 15 a 60 ml chamada dosador, ou medidor, passará o maltado para o copo com ou sem gelo, e em seguida banhará da própria garrafa as pedras que flutuam. É lançado o sorriso cúmplice, vem a piscada:
“Só pra você, que é exclusivo.”
Se você é da casa, sabe para que time o garçom torce e até o apelido dele, a dose extra é “no capricho”, outra expressão brasileira dúbia, pois indica que há doses e porções que não vêm caprichadas, já que existem aquelas especiais para clientes preferenciais.
Com um chorinho, o cliente se sente mimado, qualificado.
O estabelecimento aparenta ofertar mais do que o usual, fugir à regra, tratar você com devoção, sem mesquinharia, sem se importar com os lucros, pois foi com a sua cara, gostou do seu jeito, você é um cara bacana, que merece a quebra de protocolos. Ambas as partes ficam satisfeitas.
Pode-se dizer que, como em Casablanca, é o começo e a prova de uma longa amizade.
No entanto, é evidente que a dose extra já está embutida no preço, que os R$ 20 em média que você paga por uma dose de um bom escocês envelhecido é exorbitante, já que a garrafa de um litro custa perto de R$ 100, dependendo do fornecedor- se não atravessou o Rio Paraná numa balsa improvisada, proveniente das destilarias do Chaco-, garrafa em que vem muito mais do que quatro ou cinco doses, talvez 30, talvez 40, ou 66,6 doses, se utilizado o medidor de 15 ml, cuja matemática tira do coma alcoólico o mais dedicado dos boêmios: está-se pagando R$ 1.320 por garrafa, 13,2 vezes mais.
Portanto, o chorinho não é um favor, é um truque que entorpece e ilude o brasileiro.
Outro exemplo: o milk-shake que vem acompanhado pela sobra. O garçom deposita o copo de vidro e o de alumínio em que o sorvete foi batido. Em lanchonetes, a sobra dá outra dose. E tem aquela que a sobra é maior do que a dose original, como o prato “que dá pra dividir”, outra invenção brasileira.
É verdade que é difícil dosar a quantidade de cada cliente.
O que um surfista adolescente bebe ou come é diferente daquilo que uma modelo que fará teste para o próximo desfile deixa no prato, ou moças com colesterol alto e rapazes com glicemia alta evitam.
Mas se você se encanta pela generosidade de quem serve, relaxa.
Está tudo embutido no preço.
Universitário por quê?
Tem pensamento pré-socrático, semiótica, behaviorismo, sociobiologia, antropologia e darwinismo social, niilismo e hipóteses do pensamento ocidental debatidas nas letras? Algum indício das contradições do pensamento marxista? Marx aparece como historiador ou economista? A dialética é retratada num rasta pé ou bate-coxa com diploma?
Mimesis, de Auerbach, dá para ser anunciado. Rola a letra “Auerbach é das mais significativas referências, nos estudos de cunho hermenêutico, eu, eu, eu, de exegese literária, ai, ai, ai, fez uma abordagem original da questão da representação, sai do chão!”?
Nada disso. Sertanejo universitário retrata o pensamento que rola fora das salas de aula nas baladas estudantis.
Como o forró universitário, que nasceu no Remelexo, casa de Pinheiros frequentada pela juventude dourada da USP, que queria em São Paulo aquilo que dançava nas férias de Trancoso, Itaúnas e Canoa Quebrada, o sertanejo universitário se apresenta como uma releitura distanciada do modelo anterior. É influenciado pelo sertanejo de raiz, de Tonico & Tinoco, Alvarenga & Ranchinho, e pelo sertanejo mullets, de Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo, mas com um conteúdo que recupera a futilidade do novo pagode e detalha os efeitos macroeconômicos da expensão da fronteira agrícola e do lulismo- como exaltação do consumo, facilidade do crédito e mudanças na pirâmide social.
O Camaro, símbolo das pistas de corrida Nascar do Meio-Oeste americano, é retratado como uma arma para a vingança na batalha da luta de classes da sedução amorosa no sucesso de Munhoz & Mariano, Camaro Amarelo: “Agora eu fiquei doce igual caramelo, tô tirando onda de Camaro amarelo, e agora você diz ‘vem cá que eu te quero’, quando eu passo no Camaro amarelo. Quando eu passava por você na minha CG, você nem me olhava. Fazia de tudo pra me ver, pra me perceber, mas nem me olhava. Aí veio a herança do meu véio, e resolveu os meus problemas, minha situação.”
O antigo motoqueiro de uma humilde mas eficiente CG 125 cilindrada, modelo da Honda de motor 4-tempos monocilíndrico arrefecido a ar, cuja potência máxima é de 11,6 cavalos e custa em torno de R$ 5,5 mil, ficou doce e rancoroso ao adquirir um carro da Chevrolet, que custa a partir de R$ 200 mil, V8 de 406 cavalos, com câmera de estacionamento com visualização através de uma tela de LCD de sete polegadas.
“Do dia pra noite fiquei rico, tô na grife, tô bonito, tô andando igual patrão. E agora você vem, né? Agora você quer. Só que agora vou escolher, tá sobrando mulher”, finaliza o novo-rico.
Já dupla Ronny & Rangel, do sucesso Puxa, Agarra e Chupa, que virou obrigatório em formaturas universitárias, deu um troco mais ambicioso no projeto da dupla anterior.
Camaro?
“Todo mundo fala de carrinho, mas meu negócio é outro, comprei jatinho, a playboyzada sai de caminhonete, meu avião lotado só de piriguete. Estoura uma champanhe pra gente comemorar, o clima tá gostoso, o bicho vai pegar. Vai se acostumando que ninguém é de ninguém. Ai meu deus do céu, ram, hoje tem!”
Se Puxa, Agarra e Chupa era o reflexo de um evidente caso de transferência do desejo pela mãe, que impedia o autor de tomar atitudes, expor suas vontades ao viver encolhido num espectro de castração (“com as palavras eu me perco, eu não sei falar direito, e quando eu tô a fim, timidez é meu defeito”), Festa no Jatinho acredita no sonho sem limites, no projeto de redistribuição de renda, proveniente de um novo sertão rural irrigado, terra do agronegócio, de oportunidades que proporcionam inversão da pirâmide social aliada ao ProUni e sistema de cotas que oferece chances antes remotas de ascensão.
E pensar que Menino da Porteira e Chico Mineiro, compostos pela universidade da vida, deram em ganância e esnobismo “universitários”.
Fonte: PAVABLOG
Fonte: PAVABLOG
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