Movimento de apostasia defende laicidade do Estado argentino
Com mais de 21 mil membros na rede social Facebook, o movimento Apostasia Coletiva organizou eventos nas principais cidades do país, entre 24 de março (data do aniversário do último golpe militar) e a semana santa, para que grupos de pessoas que querem anular seu batismo entreguem coletivamente o pedido às dioceses.
“É uma expressão coletiva de desacordo, de protesto”, aponta Andrés Miñones, do movimento Apostasia Coletiva, em entrevista a Opera Mundi. “O trâmite é pessoal, mas fazê-lo em conjunto ajuda a compartilhar as dificuldades e a aprender com a experiência de outras pessoas que já tramitaram a anulação de seu vínculo com a Igreja.”
Andrés acredita que, com Francisco no Vaticano, a Igreja ganhou legitimidade para avançar sobre temas como aborto ou educação sexual para adolescentes em escolas públicas. “No entanto, as necessidades do país, como os direitos das mulheres, não devem mudar porque o papa é argentino”, acredita. “Queremos a possibilidade de um Estado laico, com maior separação da Igreja.”
Segundo dados do Questionário sobre Crenças e Atitudes Religiosas na Argentina, realizado pelo Conicet (equivalente ao CNPq) em 2008, 76,5% dos entrevistados se reconhecem como católicos. Ateus, agnósticos e pessoas que afirmam não ter religião aparecem em segundo lugar (11,3% dos entrevistados), seguidos por evangélicos, que somam 9% do total.
Para Fernando Lozada, um dos fundadores da Associação Civil Ateus de Mar del Plata, a apostasia é uma forma de retirar apoio à Igreja, que usa o número de fiéis na Argentina como justificativa para que o Estado sustente a instituição no país. “A Igreja legitima seu discurso com o argumento de que estão unidos ao país por uma tradição, que são parte dos processos de construção da nação. É falso. Muitas revoluções latino-americanas foram condenadas pela Igreja”, lembra. “E também se legitimam pela quantidade de fiéis que contabilizam em seus registros, para afirmar que o país é majoritariamente católico.”
O artigo 2º da Constituição argentina dispõe sobre o dever do governo federal de “sustentar o culto católico apostólico romano.” As leis 21.540 e 21.950, ambas decretadas durante a última ditadura militar e vigentes até hoje, determinam que o governo deve pagar os salários e as aposentadorias de integrantes do clero. A remuneração mais alta, de arcebispos e bispos, é equivalente a 80% do salário de um juiz federal de primeira instância, enquanto os auxiliares recebem o equivalente a 70%. do mesmo. A educação confessional católica também é subsidiada pelo governo argentino.
Em um cenário onde a separação entre Igreja e Estado não é muito clara, a apostasia coletiva passou a ser um instrumento de ativismo pelo laicismo. “A ideia de apostatar em público e de forma coletiva é inspirar outras pessoas, romper com o medo, com a sensação de que a Igreja é muito poderosa e não pode ser enfrentada. É um movimento político, uma manifestação contra seus dogmas e sua participação nefasta na história”, explica Lozada. “Rompemos o vínculo com a Igreja porque fomos filiados a ela quando não tínhamos possibilidade de escolher. Filiar bebês a partidos políticos seria uma loucura, mas filiá-los à Igreja Católica, que também é política, parece ter mais aceitação.”
O músico Fabian Lap, que já preparou os documentos e planeja apostatar em breve, conta que há cinco anos passou da indiferença à vontade de anular seu batismo. Para ele, um papa argentino pode influenciar alguns debates sobre mudanças na legislação, mas não quer que isso seja feito em seu nome. “Não é um capricho, é uma decisão íntima. Não quero que me contem na base de apoio de uma instituição que se opõe aos direitos civis de todos que não nos sentimos representados por ela.”
Ele conta que entrou em contato com o movimento Apostasia Coletiva por meio de redes sociais e que as informações sobre os trâmites burocráticos que o coletivo disponibiliza ajudam a quem deseja apostatar. “É uma forma de gerar massa crítica para pressionar a laicização do Estado. Por mais delirante e utópico que seja, contem comigo”, afirma.
Paola Raffetta sofreu na pele a interferência da Igreja Católica na esfera civil argentina. Ex-professora da Universidad del Salvador, instituição de ensino superior fundada pela Companhia de Jesus, ordem a que o papa Francisco pertence, ela foi demitida em 2009, 24 horas depois de aparecer nos meios de comunicação como uma das pessoas que participavam da primeira apostasia coletiva de Buenos Aires.
Atualmente Paola briga na Justiça para receber indenização pela demissão e o processo está na fase de apelação, segundo ela porque o valor fixado em primeira instância era muito inferior ao que corresponde em seu caso. Militante da Apostasia Coletiva, ela acredita que o maior desafio é fazer com que a Igreja se submeta à legislação civil na Argentina.
“Nós não queremos apenas que anulem nosso batismo, exigimos que nossos nomes sejam apagados dos registros da Igreja, em respeito à lei de Proteção de Dados Pessoais”, reclama Paola. Muitos apóstatas se queixam de que, mesmo após concluir o trâmite, seus nomes figuram em listas de paróquias com uma ressalva que informa que pediram a anulação de seu vínculo com a instituição. “São listas negras”, denuncia.
Em uma resolução de outubro de 2010, a Direção Nacional de Proteção a Dados Pessoais considerou, baseada em uma interpretação da Corte Suprema espanhola, que as listas de apóstatas mantidas pela Igreja Católica na Argentina não configuram registros porque não estão sistematizadas, são dados espalhados pelas paróquias. Pela lei, partidos políticos, sindicatos e outras instituições só podem ter listas de seus membros, mas não está permitido que tenham o registro de quem não está vinculado a eles.
Paola também conta que existe uma dificuldade muito grande em fazer com que a Igreja informe quais dados sobre as apostasias estão em seu poder. “A instituição não dá a menor importância à lei civil, exceto para fazer oposição a temas pontuais, como o aborto ou o casamento entre pessoas do mesmo sexo.”
Como são trâmites descentralizados, que dependem de cada diocese, o movimento Apostasia Coletiva não tem números exatos sobre a quantidade de pessoas que, desde 2009, decidiram romper o vínculo com o catolicismo na Argentina. No entanto, Fernando Lozada afirma que a eleição de Francisco teve um impacto importante na procura por apostasias em Mar del Plata.
“Desde que Bergoglio chegou ao papado, organizamos apostasias permanentes, todas as quintas-feiras às 20h”, informa. A última, realizada depois de que o ex-arcebispo de Buenos Aires foi eleito papa, reuniu 240 pessoas, segundo os números da organização. Na mesma semana, houve eventos similares nas cidades de Buenos Aires e La Plata.
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