19 de maio de 2019, 17h31
Por Ricardo Cintra Torres de Carvalho
Em artigos publicados nos dias 16 de fevereiro e 16 de março deste ano, fiz breves anotações sobre formação da hard law e da soft law e sobre a denominada tragédia dos bens comuns, segundo a qual a propriedade de todos [lembremos o art. 225 da Constituição Federal] não é propriedade de ninguém e não tem preço; tem valor apenas quando apropriado por alguém, que corre o risco de vê-lo desaparecido por outro tê-lo apropriado primeiro.
Em decorrência, a lógica econômica induz o interessado a obter agora o maior ganho ao invés de reservar parte daquele recurso para depois, pois não confia em que o outro interessado faça o mesmo. É uma lógica coerente no curto prazo, mas problemática no prazo mais longo em que o ganho ficará reduzido ou nenhum para todos.
O tratamento dado aos mares é um exemplo dessa dificuldade e dessa tragédia, conforme extraio de David Hunter, James Salzman e Durwook Zaelk, ‘International Environmental Law and Policy’, University Casebook Series, Foundation Press, 1998, Nova Iorque, também utilizado nos trabalhos anteriores.
Os oceanos, além de berço da vida na terra, controlam o clima, proveem alimento e minerais, sequestram carbono, deglutem resíduos e prestam outros serviços inestimáveis. No entanto, os oceanos sofrem com o excesso de pesca (que está destruindo a vida no mar) e com a poluição originada no mar, causada pelo lançamento de lixo, esgoto e óleo dos navios, e pela poluição originada em terra (efluentes da agricultura e da indústria, de drenagem, da descarga de esgotos); e porque o uso do mar é grátis, sem taxas ou tarifas a pagar, as externalidades dessas descargas são suportadas por todos. Embora os mares tenham uma enorme capacidade de absorção, há sinais de que nossas atividades estejam excedendo o limite de um ecossistema marinho saudável.
Baseada no costume e no direito romano, a lei do mar regula desde tempos antigos o uso e a passagem pelos mares; mas não houve necessidade de uma lei formal até a Segunda Guerra Mundial porque os estoques marinhos pareciam inesgotáveis e a poluição acontecia em pequena escala e a nível local. O mais importante princípio, antes e hoje, é o princípio da liberdade dos mares, segundo o qual os mares constituem um bem comum onde não se pode impedir que as nações livremente trafeguem e extraiam recursos, como escreveu Hugo Grotius em seu ‘Mare Liberum’, 1609: a navegação e a pesca pacífica em alto mar é um direito básico das nações, pois a lei natural impede a propriedade das coisas comuns (‘the commons’).
Segundo esse princípio, o uso de uma rota marítima por uma nação não impede que outra também a use, nem a pesca de uma impede que outra também pesque; é um arranjo que ilustra bem a tragédia dos bens comuns, onde o interesse de um em explorar tais recursos para o benefício individual de curto prazo é mais forte que o interesse comum em restringir a exploração de curto prazo para preservar o uso futuro de tal recurso. Usualmente ao direito corresponde uma obrigação; mas a doutrina da liberdade dos mares não impõe a obrigação correspondente de um trabalho coletivo para a conservação dos mares e seus recursos.
A liberdade dos mares encontrou algum limite no direito costumeiro do mar territorial, que permite o uso exclusivo de uma faixa marinha ao longo da costa, historicamente de três milhas, pois limitada então pelo alcance dos canhões situados em terra. Em 1930 a Liga das Nações tentou codificar a lei dos mares, sem sucesso; depois da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos da América desafiaram esse princípio estendendo a sua jurisdição e o seu controle dos recursos naturais pela plataforma continental (as Proclamações de Truman).
O precedente foi rapidamente seguido por outras nações latino-americanas e em 1958 quase vinte países haviam estendido sua jurisdição exclusiva sobre as respectivas plataformas continentais; essa extensão continuou nos anos seguintes, causando conflitos entre os Estados marítimos e os Estados costeiros.
As Nações Unidas promoveram a Primeira Conferência sobre a Lei do Mar (Unclos I – United Nations Conference on the Law of the Sea) em 1958, que deliberou quatro Convenções: a Convenção sobre o Mar Territorial e a Zona Contígua, a Convenção do Alto Mar, a Convenção sobre a Pesca e a Conservação dos Recursos Naturais do Alto Mar, e a Convenção sobre a Plataforma Continental.
A Convenção de Genebra sobre o Alto Mar cuidou do meio ambiente e de específicas formas de poluição, como a poluição por óleo dos navios e por substâncias radioativas; mas a proteção ambiental era fraca, pois não estabelecia o dever de proteger o ambiente marinho nem delineava os deveres e as responsabilidades dos Estados em evitar a poluição dos mares. Nenhuma das Convenções entrou em vigor.
A Segunda Conferência Sobre a Lei do Mar (Unclos II), em 1960, não chegou a um acordo sobre a largura dos mares territoriais; o conflito fundamental em Unclos I e II e na maior parte das disputas é a tensão entre o interesse das nações marítimas que usam os mares para navegação e comércio (que querem mais liberdade) e o interesse das nações costeiras que dependem dos recursos naturais do mar próximo (que querem mais jurisdição exclusiva). O conflito reflete no controle dos recursos naturais e na aplicação das leis de controle da poluição.
Após a Conferência de Estocolmo sobre o Meio Ambiente de 1972 as Nações Unidas convocaram a Terceira Conferência sobre a Lei do Mar (Unclos III), iniciada em 1973 e concluída em 1982, duração que indica a complexidade da negociação, a dificuldade de um consenso e o impacto nos interesses políticos, econômicos e científicos das várias nações. O documento final, conhecido como a Convenção das Nações Unidas sobre a Lei do Mar, também conhecida como Convenção da Lei do Mar (LOS Convention ou Unclos III), foi assinado em 1982 e entrou em vigor em 1994, constituindo a ‘Constituição’ da governança dos mares e dispondo sobre regras para o comportamento das nações e das pessoas; diferentemente de outras Convenções, quando Unclos foi assinada suas regras já eram aplicadas e haviam sido incorporadas como um costume legal internacional por muitos países. É um documento extenso com 320 artigos e nove anexos.
Em termos de proteção ambiental e como uma de suas mais importantes conquistas, Unclos regulamentou a autoridade jurisdicional, estabeleceu obrigações para proteger e preservar o ambiente marinho e tratou de uma forma compreensiva de ameaças ambientais específicas causadas pela poluição e pela pesca predatória. Cuidaremos desses aspectos em artigo futuro
Ricardo Cintra Torres de Carvalho é desembargador do TJ-SP.
Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2019, 17h31
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