Sim, devemos tirar “macacos” do nariz. E até comê-los, defende um livro publicado por um jornalista do New York Times, apoiado por cientistas que relacionam o aumento das alergias e doenças autoimunes com a vida moderna estéril e demasiado higiénica. Vamos ver, então, como podemos reforçar o nosso sistema imunitário
Sara Sá
Jornalista
Se as crianças não vão à rua brincar, vem a rua até elas. Foi mais ou menos isso que pensou a investigadora da Universidade de Helsínquia, Mira Grönroos. No caso, a terra, as folhas e a relva deverá chegar-lhes às mãos em caixas redondas de um pó compacto, que devem manusear, como se fosse um remédio. O produto, inventado na Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais, está a ser testado de forma a poder ser distribuído pelas creches e pelos infantários das zonas mais urbanas da Finlândia, para combater a tendência para a esterilidade em que vivemos hoje em dia.
Já no final do século XIX, cientistas britânicos constataram que a febre dos fenos – um tipo de alergia sazonal relacionada com os pólenes – atacava apenas “os ricos”, deixando os mais pobres a salvo.
Que Robin Hood da Medicina será este? Ao longo do século XX foram-se juntando pormenores a este enredo e a Teoria da Higiene ganhou corpo. Em resumo, esta teoria sugere que crescer num ambiente demasiado esterilizado impede o sistema imunitário de se treinar adequadamente, o que resulta no aumento de doenças autoimunes e de alergias – condições em que as defesas são apontadas ao próprio organismo ou a partículas inofensivas como os ácaros ou o amendoim.
“A subida no número de doença alérgica não começou até terem sido implementadas as principais mudanças na higiene. Em conformidade com isso, as alergias mais comuns, hoje em dia, nos países desenvolvidos, não estão presentes nas aldeias do Quénia, da Etiópia, do Equador ou em zonas pobres de grandes cidades do Gana”, escreve no Journal of Allergy and Clinical Immunology Thomas Platts-Mills, do Centro de Doenças Alérgicas e Asma, da Universidade de Virgínia. Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças norte-americano apontam para uma subida vertiginosa dos casos de alergia em crianças: mais de 50% nas alergias alimentares, de 1997 a 2011, e 69% em alergias na pele, no mesmo período.
Quanto mais nos afastamos da terra, do modo de vida primitivo, pior o problema. “A desconexão do Homem com o solo é um grande problema nos países desenvolvidos, ao qual se junta o aumento significativo nos níveis de higiene. Isso resulta em diminuição da diversidade de microbiota ambiental [conjunto dos micro-organismos que habitam um ecossistema] no quotidiano dos habitantes das cidades”, escreve Mira Grönroos num artigo da Frontiers in Microbiology, em que apresenta o projeto de levar caixinhas de “lixo da rua” às crianças dos infantários.
Nos testes, a cientista deu a um grupo de crianças uma argamassa “enriquecida” com bactérias que normalmente existem no solo. Depois de brincarem com este material, a pele das crianças ganhou diversidade microbiana, que se traduziu também em maior riqueza na composição das fezes. Em ratinhos, outra experiência relatada na revista científica Current Biology mostrou que a infeção com vermes protegeu os animais de alergias e ainda que a transferência de células do sistema imunitário de ratos infetados também conferia proteção e que até uma proteína extraída do verme era suficiente para produzir o mesmo tipo de resposta – o que nos poupa ao convívio com alguns seres repugnantes.
Arejar e ir para a rua
Num livro acabado de editar, com o título An Elegant Defense: The Extraordinary New Science of the Immune System, o jornalista do New York Times Matt Richtel conta a história desta teoria e apresenta dados novos que sustentam a ideia de que não é preciso entrar em paranoia de cada vez que um bebé apanha uma migalha do chão e a enfia na boca. “As crianças devem tirar macacos do nariz e comer terra?”, questiona o jornalista de Ciência do jornal norte-americano. “Talvez. O corpo precisa de conhecer que desafios imunológicos existem no ambiente”, sustenta. “Quando alguém deixa cair comida no chão, eu digo, ‘por favor apanha e come’”, conta no livro a dermatologista Meg Lemon, que atende pacientes com alergias e doenças autoimunes. Por outro lado, a utilização de sabonetes antibacterianos e géis desinfetantes leva um rotundo “não”.
A pediatra e especialista em alergologia Ana Isabel Diniz não vai tão longe. Mas em 30 anos de carreira a médica tem testemunhado, por um lado, uma cada vez maior preocupação com a higiene por parte dos pais, bem como uma tendência crescente para o enclausuramento durante a infância. E, por outro, um aumento no número de crianças com problemas alérgicos. “Para o bem e para o mal, nota-se que os pais têm mais atenção às questões relacionadas com a higiene, há um maior cuidado”, sustenta. “As crianças vivem numa redoma, ao primeiro sinal de doença, ataca-se logo com antibióticos. Havendo menos infeções, a estimulação do sistema imunitário faz-se de maneira diferente. Esta modificação da resposta imunológica pode predispor para o aparecimento de alergias”, conclui a médica, que recorda um importante estudo que veio dar força à Teoria da Higiene.
Após a reunificação da Alemanha, verificou-se que as crianças do Leste, que cresceram num ambiente mais rural mas cujo património genético era semelhante ao das crianças da Alemanha Ocidental, sofriam de muito menos problemas alérgicos do que as crianças do outro lado da fronteira. “Costumo incentivar os pais a arejarem a casa, o colchão, a deixarem os filhos ir brincar para a rua”, diz Ana Isabel Diniz. “O problema é que em consultas de 15/20 minutos, que é o tempo que normalmente nos é destinado, torna-se difícil chegar às questões comportamentais”, lamenta.
Mais poluição e sedentarismo
Em 2011, uma em cada quatro crianças europeias sofria de algum tipo de alergia, com tendência para subir, aponta um relatório da Organização Mundial de Alergia. No documento assinala-se ainda o facto de os filhos de imigrantes nascidos na América terem mais alergias do que os nascidos fora daquele país.
“As alergias respiratórias e alimentares cresceram em linha com o nível de vida. Mais dinheiro, que em geral está relacionado com um maior grau de educação, representa maior risco de alergia – o que pode ter impacto no próprio diagnóstico do problema. Mas não deixa de traduzir diferenças no ambiente”, continua a pediatra Ana Isabel Diniz.
A limpeza, per se, não é, no entanto, a culpada de tudo. “Também há mais poluição, a qualidade do ar que se respira é pior”, diz a especialista. “As principais mudanças em higiene aconteceram até 1920, mas a asma nas crianças não começou a aumentar até 1960”, nota Thomas Platts-Mills. Depois, em 1990, tornou-se claro o crescimento de casos em todos os países em que as crianças adotaram um estilo de vida mais voltado para ambientes interiores.
Esta vida de clausura obriga a um maior convívio com os alérgenos de interior, implica menores níveis de atividade física, tendo ainda sido acompanhada de alterações na dieta. Para o especialista da Universidade da Virgínia, “a doença alérgica desenvolveu-se em grande parte como resultado das mudanças no estilo de vida”, levando a que 50% da população se tenha tornado sensível a proteínas estranhas, que deveriam ser irrelevantes. “Primeiro foram os pólenes, depois os alérgenos interiores e agora a comida”, enumera. “O aumento dos casos de asma, na década de 60 do século passado, coincide com a adoção de uma vida mais sedentária e também com o aparecimento de programas de televisão para crianças”, observa o médico norte-americano. Com tendência a piorar, agora na era do YouTube.
Avanços para uma sociedade mais limpa
- Separação total da água para beber da água dos esgotos
- Presença de cloro na água
- Controlo dos excrementos dos animais
- Regulação dos matadouros
- Uso de sapatos
- Controlo da qualidade da água e dos alimentos
- Restrição de natação em águas contaminadas
- Controlo de vermes
- Diminuição da exposição a animais
- Diminuição da exposição a outros irmãos e primos, à medida que as famílias foram ficando mais pequenas
- Menos contacto com as bactérias do solo
Como ajudar o sistema imunitário dos adultos
- Dormir bem
- Comer fruta e vegetais
- Não fumar
- Praticar exercício físico
- Manter um peso saudável
- Beber com moderação
- Lavar as mãos com frequência
- Evitar o stresse das crianças
- Preferir o parto vaginal, sempre que possível
- Deixar as crianças brincar ao ar livre e ter mais contacto com a terra e com os animais
- Não sobremedicar (principalmente com antibióticos); deixar o corpo atuar para combater as infeções
- Acabar com o uso de géis desinfetantes e sabonetes antibacterianos
Sara Sá
Jornalista
Se as crianças não vão à rua brincar, vem a rua até elas. Foi mais ou menos isso que pensou a investigadora da Universidade de Helsínquia, Mira Grönroos. No caso, a terra, as folhas e a relva deverá chegar-lhes às mãos em caixas redondas de um pó compacto, que devem manusear, como se fosse um remédio. O produto, inventado na Faculdade de Ciências Biológicas e Ambientais, está a ser testado de forma a poder ser distribuído pelas creches e pelos infantários das zonas mais urbanas da Finlândia, para combater a tendência para a esterilidade em que vivemos hoje em dia.
Já no final do século XIX, cientistas britânicos constataram que a febre dos fenos – um tipo de alergia sazonal relacionada com os pólenes – atacava apenas “os ricos”, deixando os mais pobres a salvo.
Que Robin Hood da Medicina será este? Ao longo do século XX foram-se juntando pormenores a este enredo e a Teoria da Higiene ganhou corpo. Em resumo, esta teoria sugere que crescer num ambiente demasiado esterilizado impede o sistema imunitário de se treinar adequadamente, o que resulta no aumento de doenças autoimunes e de alergias – condições em que as defesas são apontadas ao próprio organismo ou a partículas inofensivas como os ácaros ou o amendoim.
“A subida no número de doença alérgica não começou até terem sido implementadas as principais mudanças na higiene. Em conformidade com isso, as alergias mais comuns, hoje em dia, nos países desenvolvidos, não estão presentes nas aldeias do Quénia, da Etiópia, do Equador ou em zonas pobres de grandes cidades do Gana”, escreve no Journal of Allergy and Clinical Immunology Thomas Platts-Mills, do Centro de Doenças Alérgicas e Asma, da Universidade de Virgínia. Dados do Centro de Controle e Prevenção de Doenças norte-americano apontam para uma subida vertiginosa dos casos de alergia em crianças: mais de 50% nas alergias alimentares, de 1997 a 2011, e 69% em alergias na pele, no mesmo período.
Quanto mais nos afastamos da terra, do modo de vida primitivo, pior o problema. “A desconexão do Homem com o solo é um grande problema nos países desenvolvidos, ao qual se junta o aumento significativo nos níveis de higiene. Isso resulta em diminuição da diversidade de microbiota ambiental [conjunto dos micro-organismos que habitam um ecossistema] no quotidiano dos habitantes das cidades”, escreve Mira Grönroos num artigo da Frontiers in Microbiology, em que apresenta o projeto de levar caixinhas de “lixo da rua” às crianças dos infantários.
Nos testes, a cientista deu a um grupo de crianças uma argamassa “enriquecida” com bactérias que normalmente existem no solo. Depois de brincarem com este material, a pele das crianças ganhou diversidade microbiana, que se traduziu também em maior riqueza na composição das fezes. Em ratinhos, outra experiência relatada na revista científica Current Biology mostrou que a infeção com vermes protegeu os animais de alergias e ainda que a transferência de células do sistema imunitário de ratos infetados também conferia proteção e que até uma proteína extraída do verme era suficiente para produzir o mesmo tipo de resposta – o que nos poupa ao convívio com alguns seres repugnantes.
Arejar e ir para a rua
Num livro acabado de editar, com o título An Elegant Defense: The Extraordinary New Science of the Immune System, o jornalista do New York Times Matt Richtel conta a história desta teoria e apresenta dados novos que sustentam a ideia de que não é preciso entrar em paranoia de cada vez que um bebé apanha uma migalha do chão e a enfia na boca. “As crianças devem tirar macacos do nariz e comer terra?”, questiona o jornalista de Ciência do jornal norte-americano. “Talvez. O corpo precisa de conhecer que desafios imunológicos existem no ambiente”, sustenta. “Quando alguém deixa cair comida no chão, eu digo, ‘por favor apanha e come’”, conta no livro a dermatologista Meg Lemon, que atende pacientes com alergias e doenças autoimunes. Por outro lado, a utilização de sabonetes antibacterianos e géis desinfetantes leva um rotundo “não”.
A pediatra e especialista em alergologia Ana Isabel Diniz não vai tão longe. Mas em 30 anos de carreira a médica tem testemunhado, por um lado, uma cada vez maior preocupação com a higiene por parte dos pais, bem como uma tendência crescente para o enclausuramento durante a infância. E, por outro, um aumento no número de crianças com problemas alérgicos. “Para o bem e para o mal, nota-se que os pais têm mais atenção às questões relacionadas com a higiene, há um maior cuidado”, sustenta. “As crianças vivem numa redoma, ao primeiro sinal de doença, ataca-se logo com antibióticos. Havendo menos infeções, a estimulação do sistema imunitário faz-se de maneira diferente. Esta modificação da resposta imunológica pode predispor para o aparecimento de alergias”, conclui a médica, que recorda um importante estudo que veio dar força à Teoria da Higiene.
Após a reunificação da Alemanha, verificou-se que as crianças do Leste, que cresceram num ambiente mais rural mas cujo património genético era semelhante ao das crianças da Alemanha Ocidental, sofriam de muito menos problemas alérgicos do que as crianças do outro lado da fronteira. “Costumo incentivar os pais a arejarem a casa, o colchão, a deixarem os filhos ir brincar para a rua”, diz Ana Isabel Diniz. “O problema é que em consultas de 15/20 minutos, que é o tempo que normalmente nos é destinado, torna-se difícil chegar às questões comportamentais”, lamenta.
Mais poluição e sedentarismo
Em 2011, uma em cada quatro crianças europeias sofria de algum tipo de alergia, com tendência para subir, aponta um relatório da Organização Mundial de Alergia. No documento assinala-se ainda o facto de os filhos de imigrantes nascidos na América terem mais alergias do que os nascidos fora daquele país.
“As alergias respiratórias e alimentares cresceram em linha com o nível de vida. Mais dinheiro, que em geral está relacionado com um maior grau de educação, representa maior risco de alergia – o que pode ter impacto no próprio diagnóstico do problema. Mas não deixa de traduzir diferenças no ambiente”, continua a pediatra Ana Isabel Diniz.
A limpeza, per se, não é, no entanto, a culpada de tudo. “Também há mais poluição, a qualidade do ar que se respira é pior”, diz a especialista. “As principais mudanças em higiene aconteceram até 1920, mas a asma nas crianças não começou a aumentar até 1960”, nota Thomas Platts-Mills. Depois, em 1990, tornou-se claro o crescimento de casos em todos os países em que as crianças adotaram um estilo de vida mais voltado para ambientes interiores.
Esta vida de clausura obriga a um maior convívio com os alérgenos de interior, implica menores níveis de atividade física, tendo ainda sido acompanhada de alterações na dieta. Para o especialista da Universidade da Virgínia, “a doença alérgica desenvolveu-se em grande parte como resultado das mudanças no estilo de vida”, levando a que 50% da população se tenha tornado sensível a proteínas estranhas, que deveriam ser irrelevantes. “Primeiro foram os pólenes, depois os alérgenos interiores e agora a comida”, enumera. “O aumento dos casos de asma, na década de 60 do século passado, coincide com a adoção de uma vida mais sedentária e também com o aparecimento de programas de televisão para crianças”, observa o médico norte-americano. Com tendência a piorar, agora na era do YouTube.
Avanços para uma sociedade mais limpa
- Separação total da água para beber da água dos esgotos
- Presença de cloro na água
- Controlo dos excrementos dos animais
- Regulação dos matadouros
- Uso de sapatos
- Controlo da qualidade da água e dos alimentos
- Restrição de natação em águas contaminadas
- Controlo de vermes
- Diminuição da exposição a animais
- Diminuição da exposição a outros irmãos e primos, à medida que as famílias foram ficando mais pequenas
- Menos contacto com as bactérias do solo
Como ajudar o sistema imunitário dos adultos
- Dormir bem
- Comer fruta e vegetais
- Não fumar
- Praticar exercício físico
- Manter um peso saudável
- Beber com moderação
- Lavar as mãos com frequência
- Evitar o stresse das crianças
- Preferir o parto vaginal, sempre que possível
- Deixar as crianças brincar ao ar livre e ter mais contacto com a terra e com os animais
- Não sobremedicar (principalmente com antibióticos); deixar o corpo atuar para combater as infeções
- Acabar com o uso de géis desinfetantes e sabonetes antibacterianos
Fonte: http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/2019-05-19-Reforce-o-seu-sistema-imunitario-tire-macacos-do-nariz
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