Atuação do país com judeus antes e durante conflito é foco de pesquisa.
Estudo mina imagem de 'abdutores benignos' e reacende memória de heróis.
Paul VitelloDo NYT
Os italianos tomaram tudo da família de Ursula Korn Selig durante a Primeira Guerra Mundial, incluindo um hotel que a família possuía na Riviera e o dinheiro que traziam depois de terem fugido da perseguição dos judeus na Alemanha, em 1938.
Os italianos também salvaram sua família da morte quase certa em campos de concentração nazistas, disse Selig, escondendo-os numa sucessão de abrigos secretos na Itália entre 1938 e 1944, muitas vezes sob o risco de morte.
O Museu da Herança Judaica, memorial sobre o Holocausto em Nova York (Foto: ancy Siesel / The New York Times)
As duas faces da Itália diante dos cidadãos e refugiados judeus pouco antes e durante a Segunda Guerra se tornaram o foco de uma pesquisa histórica recente, que mina a imagem do país como um lugar de abdutores benignos e ao mesmo tempo reacende memórias de italianos heróicos.
Selig, de 85 anos, que vive em Manhattan desde 1950, ofereceu seu testemunho duplo após a discussão recente de um painel sobre os novos conhecimentos no Museum of Jewish Heritage, em Battery Park City – dias antes de os judeus comemorarem a Kristallnacht, a noite dos ataques mortais pelos alemães nazistas em novembro de 1938.
As novas descobertas contradizem a crença tradicional de que os italianos só começaram a fazer cumprir leis anti-semitas depois que as tropas alemãs ocuparam o país em 1943, e mesmo assim o fizeram com relutância. Em vários estudos, muitos deles com base num relatório pouco divulgado encomendado pelo governo italiano em 1999, os pesquisadores revelaram vários registros dos tempos de guerra, detalhando uma sistemática negação dos direitos dos judeus italianos, começando no verão de 1938, logo depois dos ataques da Kristallnacht em novembro.
Naquele ano, o governo fascista de Benito Mussolini proibiu crianças judias de freqüentar escolas públicas ou particulares, ordenou a demissão de judeus do corpo docente de todas as universidades e proibiu os judeus de realizar serviço militar e ocupar cargos em repartições públicas, além da indústria dos bancos e seguros.
Ilaria Pavan, professor da Scuola Normale Superiore de Pisa, afirmou que uma séria de leis muito mais onerosas em 1939 e 1940 revogou as permissões dos vendedores ambulantes e das licenças de funcionamento dos donos de lojas, exigindo que empresários judeus - assim como os que possuíam ações ou títulos – vendessem todos esses ativos aos "arianos". Contas de banco tiveram que ser entregues a autoridades do governo, aparentemente para evitar a transferência de dinheiro para o exterior.
Pôsteres judeus da Primeira Guerra Mundial em exposição no Museu Nacional de História da Arte Judaica, na Filadélfia (Foto: Ryan Collerd / The New York Time)
Há poucos registros em relação à quantidade de dinheiro envolvida nos confiscos e nas vendas forçadas de propriedades que pertenciam a judeus entre 1938 e 1943, disse Pavan, que foi membro da comissão oficial do governo responsável por investigar essa pilhagem anti-semita.
No entanto, entre 1943 e 1945, quando o governo italiano estava sob supervisão direta da Alemanha, o roubo de propriedades de cidadãos italianos judeus e refugiados que tinham chegado à Itália na esperança de obter proteção, ela disse, totalizou quase US$ 1 bilhão de dólares, em valores atuais.
Depois da guerra, encorajados em parte pela ocupação americana na Itália, os italianos abraçaram um espírito de reconciliação nacional que "permitiu a construção de uma memória coletiva mais aceitável", disse Alessandro Cassin, diretor de publicação para o Centro Primo Levi, instituto de pesquisa em Manhattan que promove o estudo da história italiana judaica, e que organizou o painel de discussão.
Essa ocultação foi possível, em parte, porque em comparação com os horrores causados pela Alemanha nazista o governo italiano não foi "tão letal", disse Guri Schwarz, professor adjunto da Universidade de Pisa. O governo não permitiu o abuso físico de cidadãos judeus, não executou ninguém nos campos de concentração estabelecidos para judeus no sul da Itália, nem começou a enviar judeus para campos de concentração nazistas até a ocupação alemã em 1943, ele disse.
Dos 45 mil judeus contabilizados no censo de Mussolini em 1938, cerca de 8 mil morreram em campos nazistas. Cerca de 7 mil conseguiram fugir. Aproximadamente 30 mil viveram escondidos antes de serem liberados pelas tropas aliadas, contou Schwarz.
Selig foi uma das pessoas a se esconder.
"É uma situação muito complexa", ela disse, quando questionada sobre seus sentimentos em relação à Itália em tempos de guerra e aos italianos. Ela tinha 13 anos quando sua família fugiu de Berlim e se estabeleceu no norte da Itália, em 1938. Selig disse que sua experiência na Itália nos oito anos seguintes incluiu desespero pela privação e êxtase pela liberdade.
"Eles tomaram tudo de nós", ela disse. "Meu pai e minha mãe eram ricos quando chegaram à Itália. Mas, quando vieram para os Estados Unidos depois da guerra, ele teve de trabalhar como vigia noturno, e ela trabalhou numa confecção de roupas".
Por outro lado, como Selig contou durante um período de perguntas e respostas depois de sua apresentação, "eu não estaria aqui se não fosse pelos italianos. Uma mulher italiana me escondeu, um padre italiano me colocou num convento, onde usei hábito de freira, e um garoto italiano arriscava sua vida para nos trazer comida", ela disse.
Harry Arlin, 83 anos, que estava na plateia, disse que sua família esteve internada num campo italiano por vários anos. Ele também se levantou para contar suas experiências: "Se os italianos não tivessem nos levado para seus campos, teríamos sido enviados aos campos dos alemães e mortos".
Michele Sarfatti, autora de vários livros sobre o anti-semitismo fascista italiano, afirmou que uma grande proporção de judeus italianos sobreviveu à guerra em comparação aos judeus da maioria dos outros países europeus.
No entanto, a culpabilidade italiana pela perseguição dos judeus permanece relativamente desconhecida e amplamente inadmitida pelos italianos, disse Pavan. "As pessoas ficaram sem posses, foram transformadas em fantasmas em seu próprio país", disse. "Isso também faz parte da verdade".
Tradução: Gabriela d'Ávila
Estudo mina imagem de 'abdutores benignos' e reacende memória de heróis.
Paul VitelloDo NYT
Os italianos tomaram tudo da família de Ursula Korn Selig durante a Primeira Guerra Mundial, incluindo um hotel que a família possuía na Riviera e o dinheiro que traziam depois de terem fugido da perseguição dos judeus na Alemanha, em 1938.
Os italianos também salvaram sua família da morte quase certa em campos de concentração nazistas, disse Selig, escondendo-os numa sucessão de abrigos secretos na Itália entre 1938 e 1944, muitas vezes sob o risco de morte.
O Museu da Herança Judaica, memorial sobre o Holocausto em Nova York (Foto: ancy Siesel / The New York Times)
As duas faces da Itália diante dos cidadãos e refugiados judeus pouco antes e durante a Segunda Guerra se tornaram o foco de uma pesquisa histórica recente, que mina a imagem do país como um lugar de abdutores benignos e ao mesmo tempo reacende memórias de italianos heróicos.
Selig, de 85 anos, que vive em Manhattan desde 1950, ofereceu seu testemunho duplo após a discussão recente de um painel sobre os novos conhecimentos no Museum of Jewish Heritage, em Battery Park City – dias antes de os judeus comemorarem a Kristallnacht, a noite dos ataques mortais pelos alemães nazistas em novembro de 1938.
As novas descobertas contradizem a crença tradicional de que os italianos só começaram a fazer cumprir leis anti-semitas depois que as tropas alemãs ocuparam o país em 1943, e mesmo assim o fizeram com relutância. Em vários estudos, muitos deles com base num relatório pouco divulgado encomendado pelo governo italiano em 1999, os pesquisadores revelaram vários registros dos tempos de guerra, detalhando uma sistemática negação dos direitos dos judeus italianos, começando no verão de 1938, logo depois dos ataques da Kristallnacht em novembro.
Naquele ano, o governo fascista de Benito Mussolini proibiu crianças judias de freqüentar escolas públicas ou particulares, ordenou a demissão de judeus do corpo docente de todas as universidades e proibiu os judeus de realizar serviço militar e ocupar cargos em repartições públicas, além da indústria dos bancos e seguros.
Ilaria Pavan, professor da Scuola Normale Superiore de Pisa, afirmou que uma séria de leis muito mais onerosas em 1939 e 1940 revogou as permissões dos vendedores ambulantes e das licenças de funcionamento dos donos de lojas, exigindo que empresários judeus - assim como os que possuíam ações ou títulos – vendessem todos esses ativos aos "arianos". Contas de banco tiveram que ser entregues a autoridades do governo, aparentemente para evitar a transferência de dinheiro para o exterior.
Pôsteres judeus da Primeira Guerra Mundial em exposição no Museu Nacional de História da Arte Judaica, na Filadélfia (Foto: Ryan Collerd / The New York Time)
Há poucos registros em relação à quantidade de dinheiro envolvida nos confiscos e nas vendas forçadas de propriedades que pertenciam a judeus entre 1938 e 1943, disse Pavan, que foi membro da comissão oficial do governo responsável por investigar essa pilhagem anti-semita.
No entanto, entre 1943 e 1945, quando o governo italiano estava sob supervisão direta da Alemanha, o roubo de propriedades de cidadãos italianos judeus e refugiados que tinham chegado à Itália na esperança de obter proteção, ela disse, totalizou quase US$ 1 bilhão de dólares, em valores atuais.
Depois da guerra, encorajados em parte pela ocupação americana na Itália, os italianos abraçaram um espírito de reconciliação nacional que "permitiu a construção de uma memória coletiva mais aceitável", disse Alessandro Cassin, diretor de publicação para o Centro Primo Levi, instituto de pesquisa em Manhattan que promove o estudo da história italiana judaica, e que organizou o painel de discussão.
Essa ocultação foi possível, em parte, porque em comparação com os horrores causados pela Alemanha nazista o governo italiano não foi "tão letal", disse Guri Schwarz, professor adjunto da Universidade de Pisa. O governo não permitiu o abuso físico de cidadãos judeus, não executou ninguém nos campos de concentração estabelecidos para judeus no sul da Itália, nem começou a enviar judeus para campos de concentração nazistas até a ocupação alemã em 1943, ele disse.
Dos 45 mil judeus contabilizados no censo de Mussolini em 1938, cerca de 8 mil morreram em campos nazistas. Cerca de 7 mil conseguiram fugir. Aproximadamente 30 mil viveram escondidos antes de serem liberados pelas tropas aliadas, contou Schwarz.
Selig foi uma das pessoas a se esconder.
"É uma situação muito complexa", ela disse, quando questionada sobre seus sentimentos em relação à Itália em tempos de guerra e aos italianos. Ela tinha 13 anos quando sua família fugiu de Berlim e se estabeleceu no norte da Itália, em 1938. Selig disse que sua experiência na Itália nos oito anos seguintes incluiu desespero pela privação e êxtase pela liberdade.
"Eles tomaram tudo de nós", ela disse. "Meu pai e minha mãe eram ricos quando chegaram à Itália. Mas, quando vieram para os Estados Unidos depois da guerra, ele teve de trabalhar como vigia noturno, e ela trabalhou numa confecção de roupas".
Por outro lado, como Selig contou durante um período de perguntas e respostas depois de sua apresentação, "eu não estaria aqui se não fosse pelos italianos. Uma mulher italiana me escondeu, um padre italiano me colocou num convento, onde usei hábito de freira, e um garoto italiano arriscava sua vida para nos trazer comida", ela disse.
Harry Arlin, 83 anos, que estava na plateia, disse que sua família esteve internada num campo italiano por vários anos. Ele também se levantou para contar suas experiências: "Se os italianos não tivessem nos levado para seus campos, teríamos sido enviados aos campos dos alemães e mortos".
Michele Sarfatti, autora de vários livros sobre o anti-semitismo fascista italiano, afirmou que uma grande proporção de judeus italianos sobreviveu à guerra em comparação aos judeus da maioria dos outros países europeus.
No entanto, a culpabilidade italiana pela perseguição dos judeus permanece relativamente desconhecida e amplamente inadmitida pelos italianos, disse Pavan. "As pessoas ficaram sem posses, foram transformadas em fantasmas em seu próprio país", disse. "Isso também faz parte da verdade".
Tradução: Gabriela d'Ávila
Fonte: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2010/11/estudiosos-revelam-outra-faceta-da-italia-com-judeus-na-primeira-guerra.html
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