Eis um clássico da sétima arte a refletir sobre esta condição de se estar fechado em casa, seja por uma perna partida seja pela covid-19. Hitchcock dá-nos todas as sensações sem sair de um apartamento.
Grace Kelly e James Stewart em Janela Indiscreta
Inês N. Lourenço25 Março 2020 — 17:55
Uma janela aberta com vista para um pátio das traseiras. Um gato faz as honras do filme ditando o primeiro movimento da câmara que o segue à medida que sobe umas escadinhas no interior desse pátio tipicamente nova-iorquino. A câmara prossegue com o seu trajeto e passa do chão para as outras janelas. O que se vê agora? Um homem a barbear-se enquanto escuta o rádio (ficaremos a saber que é um compositor), depois um casal que acorda no seu colchão colocado na varanda (são noites de verão), ainda uma bailarina (Miss "Torso") que aperta o soutien e prepara o pequeno-almoço com enérgicos alongamentos de ginasta e... voltamos à janela onde tudo começou, com o espaço íntimo do apartamento a ser-nos revelado por essa câmara marota de Alfred Hitchcock que faz uma tour pelos objetos - fotografias e material fotográfico - para apresentar ao espectador a profissão do protagonista, antes do próprio.
Em Janela Indiscreta (1954), um dos títulos mais populares de Hitchcock, o fotógrafo Jeff (James Stewart) está confinado em casa há seis semanas com uma perna engessada e tenta contornar o seu "pântano de aborrecimento" com as diversas narrativas (ou seja, janelas) que se oferecem ao seu campo de visão. Chama-se a isto voyeurismo, sim, e a sua questão ética será algumas vezes levantada ao longo da película. "Tornámo-nos uma raça de voyeurs" diz a enfermeira Stella (Thelma Ritter) pouco depois de entrar no apartamento e de se aperceber da ocupação diária de Jeff. Mas enquanto não há sarilhos, o seu passatempo parece inocente. Esta afigura-se, aliás, a evasão mais sugestiva para alguém limitado às quatro paredes da casa, tal como nós por estes dias da covid-19. Ou não.
O fotógrafo que está em casa e que se torna um voyeur da vizinhança
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Revisitar esta obra-prima de Hitchcock numa altura em que ficar em casa é absolutamente essencial para a saúde de todos torna-se uma experiência, ao mesmo tempo, estranha, fascinante e reflexiva. Tudo aquilo que já se sentia antes - a ansiedade partilhada com o protagonista por ver algo de excitante a acontecer, a procura de uma manta de retalhos de outras vidas para suportar o quotidiano... - é exponenciado pela circunstância de estarmos agora todos metaforicamente com uma perna engessada. No interior daquele apartamento, os dias e as noites preenchem-se com as visitas matinais da enfermeira, as visitas noturnas de Lisa (Grace Kelly), essa sofisticadíssima namorada de Jeff, e sobretudo com o jogo de atrações da vizinhança, desde o casal recém-casado à Miss "Lonely Heart", que passa o tempo em frente ao espelho do toucador a aprontar-se para jantar sozinha, apesar de pôr mesa para dois. Animação e solidão estão escancaradas neste pátio.
Mas de entre todas as histórias humanas aqui enquadradas há um par de janelas abertas que fazem levantar o sobrolho de Jeff e, por efeito de mímica, a nós também. Trata-se do apartamento de um caixeiro-viajante, Lars Thorwald, e da sua esposa inválida, Emma Thorwald, onde reina um evidente mal-estar que se apanha à distância. Um dia, a mulher, que estava sempre no quarto, desaparece do campo de visão de Jeff e todos os movimentos suspeitos de Lars nos dias seguintes indiciam o pior: crime, diz ele! Não sem um brilhozinho nos olhos.
A arte de Hitchcock assenta nesta deliciosa iniquidade de trocar as voltas ao moralismo e colocar o princípio erótico como alavanca do desejo de crime. É, aliás, depois de Lisa/Grace Kelly se converter à religiosa obsessão de Jeff/James Stewart, e se tornar na sua audaz detetive, que ele desperta para uma nova e verdadeira atração por ela... Tudo isto ganha magnitude em escassos metros quadrados e através do olho, primeiro, depois dos binóculos, e por fim da câmara fotográfica com uma lente teleobjetiva que guarnece o mais perfeito ato de voyeurismo do cinema.
A vista do apartamento
No decorrer de Janela Indiscreta sente-se a dormência do estar em casa. Envergando o seu pijama azul claro, Jeff nunca larga o posto de vigia e por isso adormece invariavelmente na cadeira de rodas perto do parapeito, como que à espera de ser acordado pela vida fora do apartamento. Transpondo para uma fria linguagem tecnológica, o que está à frente da sua janela poderia equivaler a um mural do Facebook. Mas não: é bem mais colorido do que isso. Talvez possamos ver nas cantorias e serões ao piano que se ouvem naquele pátio aquilo que os italianos nos ensinaram para afastar a mágoa da covid-19. E a este maldito vírus nem o filho de Grace Kelly, o príncipe Alberto do Mónaco, escapou... As voltas que é possível dar sem se sair da vizinhança.
Fonte: https://www.dn.pt/cultura/janela-indiscreta-o-que-nao-fazer-quando-se-esta-confinado-em-casa--11973952.html
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