A esta altura, não é novidade que o presidente Jair Bolsonaro tem inexplicável fixação pelo uso indiscriminado de medicamentos à base de cloroquina para solução da epidemia do novo coronavírus no Brasil. Soprassem ventos normais na República, as "recomendações" do bolsonarismo entrariam por um ouvido e sairiam pelo outro, causando apenas algum embrulho no estômago. Hoje, com a sociedade brasileira em curto-circuito autoritário, as consequências são bem mais graves.
Inicialmente, o Ministério da Saúde autorizou a disponibilização destes medicamentos apenas para o tratamento de pacientes com formas graves da Covid-19 [1], mas, no último dia 20 de maio, o órgão — já comandado por "militar de confiança" do presidente — alterou o protocolo, recomendando o tratamento precoce com cloroquina a todos os pacientes. Como se percebe, os médicos brasileiros foram lançados ao tormento de campanhas oficiais de desinformação e contrainformação que aumentam os perigos à saúde pública, ao mesmo tempo em que incrementam riscos de responsabilização criminal deles próprios.
Independentemente da disseminação do novo coronavírus, o Brasil não é um lugar juridicamente seguro para médicos, o que se verifica, por exemplo, pela ausência de previsão de exclusão da tipicidade penal da atividade médica, como disposto no Código Penal Português [2].
A experiência pandêmica trouxe novos problemas, especialmente se considerarmos que a finalidade assumida pela difusão de fake news no campo da saúde, ao invés de se dirigir ao assassinato de reputações ou influir em processos eleitorais, visa — por interesses políticos — a neutralizar o acesso da população a informações fidedignas envolvendo o tratamento adequado para a Covid-19 [3]. Esse conjunto de ações, estratégias e recursos empregados pelo governo federal, fundados em notícias falsas sobre o sucesso da droga no tratamento da Covid-19, na prática opera um sistema de contrainformação da qual decorre forte impacto na autonomia dos pacientes. Esse cenário aumenta severamente os riscos criminais a que os médicos e demais profissionais de saúde estão submetidos pelo exercício das suas atividades.
Como premissa, o ato médico deve ser considerado regular e legítimo sempre que amparado em determinados requisitos objetivos e subjetivos, o que vale tanto para o tratamento curativo, quanto aos tratamentos de finalidade exclusiva ou preponderantemente experimental, em que se incluiriam o uso da cloroquina, hidroxicloroquina ou outras drogas não testadas integralmente para o tratamento da Covid-19 [4].
Além de praticada por médico ou pessoa habilitada, a intervenção médica penalmente atípica — em que se inclui a prescrição ordinária de medicamentos — deve estar amparada em uma indicação médica, praticada com intenção terapêutica e estar de acordo com o "estado dos conhecimentos e experiência da medicina (lexis artis)" [5]. A esses requisitos, somam-se o dever de assistência, o dever de esclarecimento e o consentimento informado, circunstâncias que, se adequadamente atendidas, implicarão em exclusão da tipicidade penal, ou ao menos causa de justificação da conduta médica [6].
Afinal, o médico incorre em crime ao receitar medicamentos para a Covid-19 que não estejam convalidados, em definitivo, pelo conhecimento biomédico? Em específico, a prescrição de cloroquina/hidroxicloroquina para o tratamento da moléstia causada pelo coronavírus sujeita os médicos a riscos de responsabilização criminal?
Todo tratamento experimental incrementa riscos jurídicos, pois, embora vise à cura de um paciente, o médico emprega técnicas, métodos e medicamentos em fase de afirmação e convalidação científica. Em concreto, a indicação que sustenta a prática médica experimental deve justificar-se, empiricamente, na ineficácia das ferramentas até então "experimentadas e consagradas na medicina". O médico deve ter condições de demonstrar, como se refere Mantovani, a "real idoneidade curativa do tratamento adotado, quer dizer, a sua utilidade terapêutica" [7].
No Brasil, o registro de medicamentos sujeita-se à regulação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, que determina a especificação das indicações médicas na bula. Evidentemente não se obsta que um dado medicamento tenha o uso ampliado para o tratamento de outra doença, ou para fase diferente da mesma patologia para a qual a indicação fora aprovada. A Anvisa pode deliberar sobre a validade de outras indicações médicas a um remédio já existente, mas, após a aprovação, estas passarão a constar na bula.
Na prática da medicina, entretanto, é possível que um profissional médico entenda necessário, para enfrentar circunstâncias gravosas e emergenciais, a prescrição "off label do medicamento". Nesse caso, o emprega de forma diversa das orientações da bula, via indicações e posologias não usuais, administração por via diferente da preconizada ou em faixas etárias para as quais o remédio não foi totalmente testado.
A prescrição off label de medicamentos não é desconhecida, tampouco proibida. Segundo posicionamento do ministro do Superior Tribunal de Justiça [8] Luís Felipe Salomão, o off label trata-se de uso "essencialmente correto de medicação aprovada em ensaios clínicos e produzida sob controle estatal, apenas ainda não aprovado para determinada terapêutica". No entendimento do Conselho Federal de Medicina no Despacho Sejur nº 482/2013 [9], conquanto não vedada, a responsabilidade pela indicação off label do medicamento é "pessoal do médico”, logo, assume as consequências da prescrição por sua conta e risco.
Em síntese: a intervenção médica invasiva (lícita) depende da demonstração — ancorada em provas (epistemologicamente) confiáveis — de concreta idoneidade curativa da medida ou, do contrário, o paciente converte-se em cobaia, mesmo que presente, por parte do médico, alguma intenção curativa.
Sem que esteja amparado em uma indicação segura ou em conformidade à generalidade das condutas profissionais em casos análogos, o médico se submete a severo risco de responsabilização criminal.
Quanto ao uso de cloroquina e hidroxicloroquina, sabe-se que Organização Mundial da Saúde (OMS) suspendeu os estudos [10], na linha defendida recentemente nos Estados Unidos, em pesquisas fomentadas pelo Instituto Nacional de Saúde e da Universidade da Virgínia. Segundo os resultados, não existem benefícios no seu uso para o tratamento da Covid-19, com indícios, em alguns casos, de agravamento do quadro clínico, e até mesmo óbito [11]. Entre os possíveis efeitos colaterais atribuídos a essas drogas encontram-se insuficiência hepática, lesões na retina ocular e distúrbios cardiovasculares.
É legítimo concluir, nesse contexto, que a prescrição de remédios à base destes ativos, seja para o tratamento precoce ou grave de pacientes portadores do novo coronavírus, constitui espécie de tratamento médico experimental que não atende ao critério objetivo da indicação "cientificamente experimentada", da qual se presume a atipicidade da intervenção médica.
Suponha-se, entretanto, que estejamos errados a este respeito (já que juristas, não médicos) e que haja estudos confiáveis a respeito do uso de cloroquina para o tratamento experimental de pacientes com coronavírus. Do ponto de vista penal, neste caso, mesmo diante da evolução negativa da situação clínica, seria possível defender a prática regular da atividade médica. Diz-se em tese porque há de se perquirir um elemento fundamental da responsabilidade médica: a integridade e confiabilidade do consentimento livre e esclarecido do paciente.
O "consentimento do ofendido" possui desdobramentos no Direito Penal que não se pode dar conta neste espaço. Vale salientar, contudo, que o Código Penal brasileiro refere-se ao consentimento — relativo à atuação do médico — apenas no artigo 146, no qual estabelece que não constitui crime de constrangimento ilegal "a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou de seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida" [12].
Ante a urgência da intervenção, veja-se que a lei dispensa o médico da exigência de obter o consentimento do paciente, tendo sido ele (ou família) devidamente informado ou não do procedimento. Apesar da frágil regulação, fato é que o consentimento livre e esclarecido do paciente pode ser considerado, em toda e qualquer intervenção médica, dispositivo central na definição do caráter injusto do comportamento médico.
O tema conduz às questões levantadas no início desse texto. Tratando-se de medidas e protocolos médicos e sanitários para enfrentamento da Covid-19, é impossível falar em "consentimento esclarecido" no Brasil. O país governado por Jair Bolsonaro — visando à conservação de um projeto autoritário de poder, ameaçado pela crise econômica — contaminou o campo da saúde com práticas de desinformação e contrainformação, fundadas na disseminação de notícias falsas sobre o tratamento do coronavírus no país.
A politização — ou mesmo militarização — da ciência brasileira deu lugar ao obscurantismo. O presidente da República já fala em armar a população para reagir às políticas pautadas pelo isolamento social. Em concreto, a guerra de contrainformação, no trato de uma das maiores crises sanitárias no país e no mundo, criou uma probabilidade concreta de lesão à vida e saúde de um número indeterminado de brasileiros e estrangeiros em território nacional.
A aposta em tratamentos experimentais recomendados por autoridades públicas brasileiras, em especial, prescrição de remédios à base de cloroquina para o tratamento da Covid-19, deve ser recusada pelos médicos e demais profissionais habilitados. Os dados e indicações provenientes do governo federal não são confiáveis, uma vez que as políticas públicas se orientam por interesses políticos e critérios anticientíficos. Esse estado de coisas, lamentavelmente, incrementa os riscos penais que recaem sob o exercício profissional da medicina, além de confundir os cidadãos brasileiros que, perdidos entre crises políticas artificiais e milícias digitais, não têm condições adequadas de consentirem, livre e autonomamente, a respeito do tratamento a que devem se submeter.
[1] O tema foi abordado na Nota Informativa nº 5/2020-DAF/SCTIE/MS.
[2] Artigo 150 do Código Penal Português.
[3] Os motivos que orientam tal política podem ser melhor compreendidos na categoria necropolítica, empreendida pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para descrever a dinâmica de poder típica de regimes autoritários. MBEMBE, Achille. Necropolítica. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018.
[4] Ambos não se confundem com as denominadas experiências clínicas, caracterizadas pela intervenção que se realiza em uma pessoa sem que se vise diretamente o seu tratamento, mas com o fim de produzir conhecimento terapêutico geral. Cf. Gomes Rodrigues, Álvaro da Cunha. A Negligência Médica Hospitalar na Perspectiva Jurídico-Penal. Estudo sobre a responsabilidade criminal médico-hospitalar. Coimbra: Almedina, 2013, p. 59.
[5] A denominada lex artis implica em uma regra de avaliação da conduta do médico, a partir do qual se realiza um juízo da sua conformidade com a “técnica normal requerida, ou seja, se a atuação médica corresponde ou está conforme à generalidade das condutas profissionais em casos análogos.” Ibid, p. 40.
[6] A divergência doutrinária acerca do tema dá ensejo a duas correntes. De um lado, a teoria dualista preconiza a distinção entre “acordo” – capaz de excluir a tipicidade penal – e consentimento propriamente dito – este sim, excludente de ilicitude. BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 269. Noutro giro, a teoria unitária preconiza que o consentimento do ofendido teria, em todos os casos, o efeito de excludente de tipicidade, ainda que o dissenso não faça parte da redação do tipo penal. Segundo Roxin: “no puede existir lesión alguna del bien jurídico cuando una acción se basa em una disposición del portador del bien jurídico que no menoscaba su desarrollo, sino que, por el contrario, constituye su expresión.” Derecho Penal – Parte General. Fundamentos. La Estructura de la Teoria del Delito. Madri: Civitas, 1997.
[7] Mantovani, Ferrando, I Trapianti e la Sperimentazione Umana nel Diritto Italiano e Straniero. CEDAM, 1974.
[8] STJ – 4ª Turma - REsp. 1729566, j. em 04.10.2018, DJe de 30.10.2018, Rel. Min. Luís Felipe Salomão.
[9] Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/notasdespachos/CFM/2013/482_2013.pdf. Acessado em: 01/05/2020.
[10] Disponível em: https://www.who.int/news-room/q-a-detail/q-a-hydroxychloroquine-and-covid-19. Acessado em: 26/05/2020.
[11] Disponível em: https://forbes.com.br/colunas/2020/04/hidroxicloroquina-nao-mostra-beneficio-contra-coronavirus-em-estudo-nos-eua/. Acessado em: 24/04/2020.
[12] Ao seu turno, o Código Civil refere-se a exigência médica no artigo 13, quando a ressalva da proibição do ato de dispor do corpo, “quando importar diminuição permanente da integridade física”, e no artigo 15, quando indica que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
Antonio Pedro Melchior é advogado criminalista, sócio-fundador do escritório Melchior Advogados, professor de Direito Processual Penal e doutor em Direito.
Taiguara Líbano Soares é advogado criminalista, sócio do escritório Melchior Advogados, professor de Direito Penal da UFF e do IBMEC-RJ e doutor em Direito.
Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2020, 13h01
Nenhum comentário:
Postar um comentário