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domingo, 27 de março de 2022

O churrasco segundo costumes gerais

(...) estando as casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, pois muitos devem quanto têm) providas de todo o necessário, porque têm escravos, pescadores e caçadores que lhes trazem a carne e o peixe (...) (*), falar em churrasco passou a ser uma heresia econômica, nos dias atuais.

Para iludir os miseráveis, que não possuem capacidade financeira para consumir carne, alguns, como COELHO NETO ("A conquista"), já noticiaram: (...) com argumentos sutis, mostrou ao negro como a carne (sobretudo a fresca) conduz ao pecado e ao crime quando não é sofreada prudentemente. 

Notícias sobre o consumo de carne no Brasil já nos foi dada por um dos nossos primeiros historiadores (*):

Há também muitos porcos monteses, alguns como os javalis de Espanha, os quais andam em manadas e, se o caçador fere algum, há logo de subir-se a alguma árvore, porque, vendo eles que não podem chegar-lhe, remetem todos ao ferido e aos outros em que se pegou algum sangue, com tanta ferocidade que se não apartam até não deixarem três ou quatro mortos no campo, e então se vão em paz, e o caçador também com a caça. 

Outros há que têm o umbigo nas costas, e é necessário tirar-lho com uma faca antes que o esquartejem, sob pena de ficar toda a carne fedendo a raposinhos. 

Outros há o que chamam capivaras, que quer dizer comedores de erva: andam sempre na água, tirando quando saem a passear pelos vales e margens dos rios, e alguns tomam e criam em casa fora da água, pelo que se julgam por carne e não por pescado.

Escrevendo sobre a anta, o mesmo historiador registrou: A carne destes animais é no sabor severa como de vaca, e do couro curtido se fazem mui boas couras pera vestir e defender de setas e estocadas: algumas têm em o bucho umas pedras que na virtude são como as de bazar, mas mais lisas e maciças.

Referindo-se ao consumo de carne de tamandoçu (tamanduá): A carne deste animal comem os índios velhos, e não os mancebos, por suas superstições e agouros. (*)

Há muito os hábitos mudaram, principalmente com a vinda das primeiras reses, trazidas de Cabo Verde. O consumo mais expressivo é, sem a menor dúvida, da carne de gado vacum, de norte a sul do Brasil, como já nos idos de 1627, acentuava um religioso e historiador (*).

Outros se dão à criação de vacas, que multiplicam muito. E são as carnes mais gordas que em Espanha, principalmente os cevados, que se cevam com milho-zaburro e com pinhões de grandes pinhais que há agrestes, tão férteis e viçosos que cada pinha é como uma botija, e cada pinhão depois de limpo como uma castanha ou belota de Portugal.(*)




VASCONCELLOS - Notícias curiosas e necessárias das coisas do Brasil (1668), p. 141, noticiou o uso, pelos índios de um artifício que torna a carne (e ainda o peixe) saborosíssimo, a saber: fazem na terra uma cova, cobrem-lhe o fundo com folhas de árvores, e logo lançam sobre estas a carne ou peixe, que querem cozer ou assar; cobrem-na de folhas e depois de terra; feito isto, fazem fogo sobre a cova, até que se dão por satisfeitos, e então a comem; chamam a este modo Biariby. Os peixes miúdos embrulham em folhas, e mete-os embaixo do borralho, em breve tempo ficam cozidos, ou assados. (...) LUIS DA CÂMARA CASCUDO - História da alimentação no Brasil,  sustenta que herdamos dos costumes indígenas, os peixes e carnes assados no calor do borralho e dos fornos subterrâneos, a mixira, são simplesmente a técnica requintada dos "estufados" (etoujfée), evitando a penetração do ar e concentrando os valores nutritivos. (...) Recorria a cunhã ao assado, apresentando-o na sua forma, moquém, nas brasas, ao borralho, com folhas envolvendo; carnes de caça, carne do gado trazido de Portugal, moluscos, peixes, crustáceos, muito mais consumidos assados que cozidos, como presentemente usamos. Assim a cozinha brasileira nasce na insistência do assado, emprego do sal que o português valorizava pela indispensabilidade, e o molho de pimentas, as da terra, inarredáveis na manducação. O assado sangrento, sangue-por-dentro, mal-passado, não era português. Era uma legitimidade indígena que a cunhã certamente oficializou para o paladar europeu. O roast-beef no Brasil é uma permanente local e não inglesa. Quando o súdito de Sua Majestade Britânica chegou, influente e poderoso sob D. João, Príncipe Regente, em 1808, a carne mal-passada era maior de trezentos anos nacionais. (...) O cão era assado, chamuscado o couro à maneira do preparo do porco, para limpar, por maior festa. Presentemente comem-no cozido, como o gato em Coimbra, caçado pelos estudantes do século passado. Gato por lebre. Eram previamente engordados para os dias jubilosos. O grande folclorista aduz muitas outras informações sobre o tema que estamos abordando (assados), valendo a pena uma leitura atenta da sua respeitável obra. 

APOLINÁRIO PORTO-ALEGRE – O vaqueano – Edit. Três/RJ/1973, p. 45, convidou: Vamos a meus pagos (...) Lá temos bons assados de veado, tatu, anta e o mais que queiram.

E na pampa argentina, o que acontecia, em tempos passados?




- (...) y no pierdo la esperanza de comer contigo, a la sombra de un viejo y carcomido algarrobo, un churrasco de guanaco, o de gama, o de yegua, o de gato montés, o una picana de avestruz, boleado por mi, que siempre me ha parecido la más sabrosa - LUCIO VICTORIO MANSILLA -  Una excursión a los indios Ranqueles.


Não se pode esquecer que tribos indígenas antropófagas comiam também os humanos inimigos, mas não sei se isso ocorria entre os da pampa ou só entre os da selva brasileira, onde imperava o moquém e naturalmente comia-se carne de macacos, de tatu, de paca, de quati (preferência para a carne de fêmeas, pois a dos machos era de gosto ruim), de muitas aves também.

No litoral, obviamente, os assados também são feitos com peixes.

Em Cabo Verde, como aqui na Ilha de SC, comia-se carne de tartaruga, senão vejamos:

- Não é preciso dizer de que modo os insulares do Cabo Verde se servem de sua carne, assim como as demais pessoas fazem com o boi e o carneiro.

Em gosto, a carne da tartaruga assemelha-se ou é quase igual à do vitelo.

Mas, os selvagens das Índias Americanas de modo algum a comem, levados pelo tolo preconceito de que esse alimento os tornaria morosos, prejudicando-os, sobretudo nos combates; por isso que, se não se tornavam desembaraçados, certamente estariam impossibilitados de perseguir os inimigos, ou escapar de suas mãos.- Fr. ANDRÉ THEVET - Singularidades da Rança Antártida.

O mesmo historiador, na obra por último citada, ainda sobre a carne de tartaruga, noticiou:

Plínio, quando estuda a tartaruga, tanto em seu aspecto alimentício quanto em seu aspecto medicinal, não diz que o uso desse réptil é recomendado contra a lepra; mas afirma, entretanto, que a sua carne constitui um poderoso antídoto contra vários venenos, sobretudo o produzido pela salamandra, em virtude da animosidade mortal existente entre ambos os animais.

Noticia mais o ilustrado historiador:

A Etiópia, como já o disse, possui elefantes, que se apanham na caça. O método de caçar o elefante é semelhante ao dos javalis, com algumas poucas diferenças nos seus ardis e processos.

Os negros comem a carne do animal, afirmando ser saborosíssima (e prefiro acreditar nisso do que discutir mais longamente a questão, ou tirar do fato a prova experimental).O elefante, animal cuja razão se aproxima da humana.

Não é meu intento prolongar o assunto, descrevendo as virtudes e predicados do elefante, – o mais dócil e racional dos animais, o qual já tem sido celebrado pelos antigos e modernos.

Plínio, Aristóteles e vários outros tratam dele suficientemente, afirmando que sua carne é medicinal e própria para a lepra. A carne, destinada à cura da lepra, deve ser ingerida; os dentes, ou os marfins, aplicados exteriormente na pele, em forma de pó. Também a sua carne conforta o coração e o estômago, assim como favorece a criança no ventre materno. Mas, não quero repetir o que outros já descreveram, a fim de não prolongar, repito, o assunto, ou a fim de não me afastar muito de meu propósito.

Na Ilha de SC, como em muitas outras comunidades, também era comum comer-se a carne de jacarés (crocodilos), de lagartos e de gambás.

Um ensinamento indígena, para nós que usamos e abusamos do sal nos churrascos, lição também noticiada pelo estudioso THEVET:

Os selvagens não apreciam os alimentos salgados e interditam o uso deles a seus filhos.

Tanto que, quando assistem a um europeu comer carne salgada, acham isso um costume estranho.

Acreditam que a carne salgada encurta a vida. (**)

JOSUÉ DE CASTRO (Geografia da Fome), confirmou o desapego do índio ao sal: O tempero que o índio sempre admirou foi a pimenta, não ligando muita importância ao sal, comendo carne ou peixe insosso mas sempre embebidos num bom molho de pimenta. “O índio em geral se acostuma à falta de sal, mas nunca à de pimenta”, diz Nunes Pereira, com a convicção de quem conviveu com várias tribos amazônicas e partilhou muitas vezes de seu menu exótico.

Ainda segundo THEVET:

E note-se que os antigos se alimentavam, comumente, mais de peixe que de carne (assim como afirma Heródoto dos babilônios, que só se serviam de peixe.)

As leis de Triptolemo, segundo Xenofonte, proibiam aos atenienses o uso da carne.

Não é, pois, estranho que se possa viver sem o uso de tal alimento.

Finalmente, socorrendo-me, novamente, de JOSUÉ DE CASTRO, cabe lembrar uma das alternativas para o consumo de carne:

Fruto da região que merece também um destaque especial por seu extraordinário valor nutritivo é a castanha-do-pará, produto da Bertholletia excelsa, fruto oleaginoso, contendo uma proteína com uma riqueza em ácidos animados idêntica à da carne; donde o epíteto, que deu Bolazzi a este fruto, de “carne vegetal”. Infelizmente, essa proteína completa, a única de origem vegetal até hoje conhecida, encontra-se associada a uma proporção demasiado alta de gordura.(68% de gordura e 17% de proteína), o que torna o fruto indigesto, com baixo coeficiente de digestibilidade, portanto de uso pouco aconselhável numa zona de clima quente e úmido como o da Amazônia. Aí a razão pela qual a castanha-do-pará, constituindo uma das riquezas desta região, não é absolutamente um produto de sustentação regional, mas de simples exportação para as zonas frias e temperadas. -=-=-=-=

(*) FR. VICENTE DO SALVADOR - História do Brasil.

(**) Possivelmente porque, como lembra JOSUÉ DE CASTRO, no seu festejado Geografia da Fome, é preciso não esquecer que na elaboração destas comidas entram certos molhos preparados com sucos de ervas locais e de pimentas, das quais as populações nativas fazem um largo consumo. Os indígenas sempre foram grandes comedores de pimenta — não só o consumo da pimenta ralada dando sabor picante aos molhos, às pastas e às carnes, como as pimentas inteiras comidas como fruta, aos punhados.




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