Crise econômica e disputas entre secularistas, islamitas e movimentos radicais atingem as nações que depuseram seus governos em 2011, enquanto Síria mantém impasse sangrento
iG São Paulo | 19/12/2012 05:00:35
Dois anos depois de uma mobilização popular na Tunísia ter desencadeado levantes no Oriente Médio e norte da África contra governos autocráticos, o movimento conhecido como Primavera Árabe parece ter-se tornado uma disputa em menor ou maior grau entre secularistas e islâmicos nos países onde as populações tiveram êxito em destituir seus ditadores de longa data: Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen. Além disso, esses países passam por transições políticas tumultuadas e problemas econômicos.
Na Síria, onde um conflito sangrento se arrasta há 21 meses, a questão que surge é se a eventual deposição de Bashar al-Assad terá como sucessor um Estado secular ou um governo formado por forças radicais que estão em ascensão entre os grupos de oposição.
Conheça a situação atual desses países na ordem cronológica das revoltas:
1. Tunísia
A Tunísia, o mais secular das nações do mundo árabe, tornou-se o epicentro dos levantes populares da Primavera Árabe ao pôr fim em 14 de janeiro de 2011 ao governo de 23 anos do presidente Zine El Abidine Ben Ali, que renunciou sob pressão de manifestações iniciadas quase um mês antes - em 17 de dezembro de 2010.
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Mulher gesticula durante protesto contra visita do presidente Moncef Marzouki a Sidi Bouzid, epicentro da revolução da Tunísia (17/12)
Após a deposição de Ben Ali, eleições de outubro de 2011 levaram ao poder os islâmicos moderados do Partido Ennahda, que repetidamente disseram que não tinham intenção de introduzir a lei islâmica (sharia) ou diminuir os direitos das mulheres.
No entanto, grupos salafistas - sunitas fundamentalistas que acreditam ser os únicos a interpretar de forma correta o Alcorão - começaram a intimidar mulheres, artistas e intelectuais no país. E, segundo a oposição, com o consentimento tácito do Ennahda.
Exemplo da ascensão dos salafistas é o ataque de abril de 2011 contra o cineasta Nouri Bouzid, que foi atingido por uma barra de ferro após defender uma Constituição secular. Em junho, manifestantes invadiram um cinema que veicularia um filme sobre religião considerado herético pelos salafistas. Quatro meses mais tarde, islamitas tentaram incendiar uma emissora de TV privada que havia transmitido a animação "Persépolis", da iraniana no exílio Marjane Satrapi, que contém uma breve cena de descrição de Alá - algo que muitos muçulmanos consideram blasfêmia.
Em junho deste ano, a polícia da moralidade atacou a exposição "Primavera das Artes", destruindo dezenas de pinturas e, em setembro, salafistas atacaram a embaixada americana. Mas a situação mais emblemática do atual período da Tunísia pode ser a Universidade de Manouba , onde fundamentalistas não aceitam as determinações de um corpo docente secular que rejeita um campus universitário com salas de oração ou mulheres que cobrem o rosto .
Além das questões religiosas, o partido também é acusado de incompetência econômica, com uma taxa anêmica de crescimento de 2,7% neste ano e um desemprego de 17,6% entre os 10 milhões de habitantes. A situação é particularmente difícil no interior do país, onde os residentes não veem tantos benefícios em comparação com as áreas costeiras que prosperam por causa dos portos e das praias turísticas. Os problemas econômicos levaram a uma disputa entre o governo o principal sindicato do país, com protestos em algumas regiões.
2. Egito
O Egito é palco da mais clara disputa pela identidade do movimento popular que, inspirado pelo sucesso da população da Tunísia, conseguiu forçar o fim de quase 30 anos de governo Hosni Mubarak em 11 de fevereiro de 2011, após 18 dias de incansáveis protestos de rua.
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Egípcio com a máscara de Guy Fawkes poso em frente mural representando presidente Mohammed Morsi e líder deposto Hosni Mubarak (08/12)
Eleições no ano passado levaram os partidos islâmicos ao Parlamento e à presidência . Desde então, há uma crescente tensão entre islamitas e secularistas no país, com a mais recente controvérsia tendo sido desatada em 22 de novembro, quando o presidente Mohammed Morsi emitiu um decreto que garantia imunidade judicial a todas as suas decisões com o argumento de que o mecanismo era necessário para proteger a revolução perante um Judiciário ainda dominado por elementos da era Mubarak.
Sob a pressão de protestos que deixaram oito mortos e centenas de feridos e a acusação de que agia de forma ditatorial, Morsi revogou a medida no dia 8 , no entanto mantendo a data para um referendo sobre o projeto da nova Constituição, aprovada às pressas em meio à crise.
Saiba mais: Veja o especial sobre a Primavera Árabe
Para seus críticos, o esboço da nova Carta, aprovada sem a participação dos membros liberais e cristãos, não protegeria alguns direitos fundamentais, incluindo a liberdade de expressão, e abriria caminho para uma aplicação mais rigorosa da lei islâmica (sharia).
No sábado, houve a primeira etapa do referendo constitucional, cuja segunda etapa está marcada para o dia 22. De acordo com dados oficiais, o "sim" venceu na primeira rodada da votação, mas a oposição mantém os protestos afirmando que o resultado não é legítimo por causa do baixo comparecimento.
De acordo com a agência Reuters, um jornal calculou que, no primeiro turno, de cada cem egípcios, 18 votaram "sim", 13 votaram "não" e o restante não participou. Por causa da continuidade do impasse, ainda não há sinais de que a tensão e a disputa de poder diminuirão no país, que também enfrenta o desafio da recuperação econômica.
3. Líbia
A Líbia foi um dos países em que, confrontados com a resistência de líderes agarrados ao poder, os movimentos antigoverno se tornaram violentos. Muamar Kadafi , cujo regime caiu em agosto de 2011 sob pressão de um levante popular iniciado seis meses antes, foi morto em 20 de outubro do mesmo ano por forças revolucionárias e em meio a uma guerra civil.
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Manifestante em frente ao consulado dos EUA na Líbia (11/09)
As autoridades conseguiram realizar eleições gerais em julho - em que liberais derrotaram partidos com vínculos religiosos - e restabeleceram a produção petrolífera, mas a insegurança, a disputa de poder entre os diferentes grupos que lutaram contra Kadafi e as ameaças extremistas continuam.
Os oito meses do conflito armado que acabou com o antigo regime deixou sequelas: a proliferação das milícias armadas, o tráfico de armas e a emergência de ameaças terroristas como a exemplificada peloataque de 11 de setembro que deixou quatro mortos no Consulado dos EUA em Benghazi, incluindo o embaixador Christopher Stevens.
Apesar disso, segundo a revista alemã Der Spiegel, a Líbia tem uma sociedade religiosamente homogênea, com os muçulmanos sunitas correspondendo a quase 100% da população. Assim, as divisões do país são primariamente entre clãs: as disputas não se referem a diferentes visões sobre a verdadeira prática do islamismo, mas a interesses tribais e à distribuição da renda petrolífera.
4. Iêmen
Assim como a Líbia, o Iêmen também foi palco de manifestações e confrontos violentos que deixaram centenas de mortos desde o início da revolta popular, em janeiro de 2011. O presidente Ali Abdullah Saleh só aceitou um acordo para sua renúncia em 23 de novembro do mesmo ano, com seus 22 anos de governo chegando ao fim em fevereiro deste ano, quando transferiu o poder a seu sucessor.
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Iemenita mostra punho com as bandeiras de Líbia, Síria, Iêmen, Tunísia e Egito. Na parte superior da mão lê-se: 'Venceremos' (27/10/11)
Com uma sociedade tribal, o país mais pobre da Península Arábica tem a presença de um braço da rede terrorista Al-Qaeda em áreas de seu território. Mas, segundo especialistas, a cooperação ocasional entre as células terroristas e as federações tribais não tem como base fatores ideológicos, mas interesses coincidentes em relação a dinheiro, contrabando e comércio de armas. Crescentes ataques com aviões americanos não-tripulados (chamados de drones) contra as células da Al-Qaeda têm desestimulado a cooperação entre os dois.
Em um país fortemente islamita, Saleh, segundo a Der Spiegel, assegurou seu poder por meio de um pacto com o Partido Islâmico Islah e por anos promoveu o imã radical e amigo da Al-Qaeda Abdul Majeed al-Zindani. Atualmente, porém, as ideias liberais estão mais disseminadas no país. Apesar disso, ninguém questiona a sharia, que está em vigor no Iêmen.
5. Síria
Conflito mais mortífero da Primavera Árabe, o levante na Síria começou de forma pacífica em janeiro de 2011 e passou a se configurar em uma insurreição popular nacional em 15 de março daquele ano em resposta à violenta repressão do regime de Bashar al-Assad - há 11 anos no poder após suceder a 30 anos de governo de seu pai, Hafez Al-Assad.
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Rebeldes sírios participam de treinamento em Maaret Ikhwan, perto de Idlib (17/12)
Desde então, a violência que escalou para um guerra civil deixou mais de 40 mil mortos, segundo ativistas. Nas últimas semanas, os rebeldes que lutam para depor o líder sírio aumentaram a pressão contra o regime ao capturar bases aéreas e instalações militares dentro e nos arredores da capital, Damasco.
O conflito causou uma crise humanitária, com cerca de 3 milhões de sírios tendo sido forçados a deixar suas casas. Entre os desalojados estão mais de 500 mil que fugiram para os países vizinhos à Síria - Turquia, Líbano e Jordânia.
Os refugiados não são o único efeito para os países da região. Crucial na geopolítica do Oriente Médio por seu peso no mundo árabe e seu papel nos conflitos e tensões regionais, a Síria também afeta outras nações internamente, com grupos favoráveis e contrários a Assad tendo entrado em confronto no Líbano. O mais recente deles deixou 17 mortos na cidade de Trípoli.
A área de fronteira da Turquia também foi alvo de bombardeios do vizinho, estimulando a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) a aprovar a instalação de baterias antimíssil Patriot para proteger o membro da Aliança Atlântica. No início do mês, o Exército de Israel disparou contra a Síria por dois dias consecutivos após queda de morteiro nas Colinas de Golan - território que Israel tirou do controle sírio durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967.
Atualmente, em meio a sinais de enfraquecimento do regime, potências mundiais fizeram alertas para a possibilidade de o regime de Assad recorrer a armas químicas para coibir o avanço dos rebeldes, que são representados por grupos heterogêneos e com objetivos distintos. Entre eles estão poderosas facções islâmicas. Há temores de que elas possam ter acesso aos estoques de armamento químico após a eventual queda do regime.
*Com AP, AFP e informações da revista alemã Der Spiegel
Fonte: ULTIMO SEGUNDO
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