Movimento fundamentalista da Birmânia incita a violência e o boicote às mercadorias feitas por muçulmanos
Nove de cada 10 pessoas na Birmânia são budistas, assim como são quase todos os líderes de altos escalões no paísFoto: Adam Dean / NYTNS
Thomas Fuller
Após a prece do ritual de expiação dos pecados cometidos, Ashin Wirathu, monge budista com um número de seguidores na Birmânia digno de um astro de rock, sentou-se diante de uma enorme multidão de milhares de adeptos e fez um discurso inflamado contra o que ele chamou de "o inimigo" – a minoria muçulmana do país.
— Você pode ser cheio de bondade e de amor, mas não pode dormir perto de um cachorro louco — Wirathu disse, se referindo aos muçulmanos.
— Eu os chamo de agitadores, porque são agitadores. Tenho orgulho de ser chamado de budista radical — Wirathu falou a um repórter após seu sermão com duração de duas horas.
O mundo ficou acostumado com a imagem gentil do budismo definida por palavras de autoanulação de Dalai Lama, a popularidade mundial da meditação inspirada no budismo e cenas perfeitas de cartões-postais do sudoeste da Ásia, além dos monges com vestes vermelhas, descalços recebendo esmolas dos aldeões no amanhecer.
Entretanto, no último ano, imagens de budistas birmaneses esbravejando portando espadas e os sermões difamatórios de monges como Wirathu têm ressaltado o aumento do budismo extremista na Birmânia. Bandos de linchamento budistas já mataram mais de 200 muçulmanos e expulsaram mais de 150.000 pessoas, muçulmanas na maioria, de suas casas.
Wirathu nega ter qualquer papel nos tumultos. Porém, seus críticos afirmam que, no mínimo, a sua pregação anti-islamismo está ajudando a inspirar a violência.
O que começou no ano passado às margens da sociedade birmanesa cresceu em um movimento fundamentalista nacional cuja agenda atualmente inclui boicotes às mercadorias feitas por muçulmanos. A sua mensagem está se espalhando através de sermões regulares por todo o país, atraindo milhares de pessoas, e através de DVDs amplamente difundidos dessas palestras. Monastérios budistas associados ao movimento também estão abrindo centros comunitários e programas de escolas dominicais para 60.000 crianças budistas nacionalmente.
Os discursos cheios de ódio e violência puseram em perigo o caminho à democracia da Birmânia, levantando dúvidas sobre a capacidade do governo de manter cidades pequenas e grandes em segurança e questionando a sua disposição de reprimir ou processar budistas em um país com maioria budista.
O budismo aparentemente teria um local garantido na Birmânia. Nove de cada 10 pessoas são budistas, assim como são quase todos os líderes do alto escalão do mundo dos negócios, do governo, da força militar e da polícia. Estimativas da minoria muçulmana variam de quatro a oito por cento dos aproximadamente 55 milhões da população birmanesa, enquanto o restante é na maioria cristãos ou hinduístas.
No entanto, Wirathu, que se descreve como nacionalista, afirma que o budismo está sitiado pelos muçulmanos, que estão tendo mais filhos que os budistas e comprando suas terras. Em parte, ele está explorando as queixas históricas que datam da época em que o país era colonizado pelo Império Britânico quando os indianos, muitos deles muçulmanos, foram trazidos para o país como trabalhadores civis e como soldados.
As mensagens rígidas e nacionalistas que ele tem difundido inquietaram budistas de outros países.
O Dalai Lama, após os tumultos em março, disse que matar em nome da religião era "impensável" e exortou os budistas birmaneses a contemplar o rosto de Buda para orientação.
Phra Paisal Visalo, acadêmico budista e monge proeminente na vizinha Tailândia, afirma que a noção de "nós e eles" promovida pelos monges radicais da Birmânia é anátema para o budismo. Por outro lado, lamentou que a sua crítica e a de outras lideranças budistas de fora do país tenha tido "muito pouco impacto".
— Os monges das Birmânia são bastante isolados e têm um relacionamento distante de budistas de outras partes do mundo — Phra Paisal disse.
Uma exceção é Sri Lanka, outro país historicamente atormentado por conflitos étnicos. Os monges birmaneses foram inspirados pelo firme papel político desempenhado pelos monges do Sri Lanka, país de maioria budista.
Conforme a Birmânia polarizava-se, surgiam sinais nascentes da rejeição às pregações anti-islâmicas.
Entre os decepcionados com os surtos de violência e de retórica de ódio estão alguns dos líderes da Revolução de Saffron de 2007, uma insurreição pacífica liderada por monges budistas contra o governo militar.
— Não esperávamos por essa violência quando cantamos pela paz e reconciliação em 2007 — disse Ashin Nyana Nika, de 55 anos, o abade do monastério de Pauk Jadi, que participou da reunião em junho endossada por grupos muçulmanos para discutir a questão.
Ashin Sanda Wara, diretor da escola monástica em Yangon, diz que os monges no país estão dividos quase que igualmente entre moderados e extremistas.
Ele considera-se parte da facção moderada. Todavia, como uma medida das suspeitas profundamente arraigadas na sociedade acerca dos muçulmanos, ele disse que tinha "medo dos muçulmanos porque a população deles estava aumentando tão rapidamente".
Wirathu explora essa ansiedade, que alguns descrevem como "pressões demográficas", vindas da vizinha Bangladesh.
Existe um desprezo generalizado na Birmânia por um grupo de aproximadamente um milhão de muçulmanos apátridas, que chamam a si mesmos de rohingya, alguns dos quais migraram de Bangladesh. Confrontos entre os rohingyas e budistas no ano passado na Birmânia ocidental agitaram a comunidade budista e parecem ter tido um papel nos posteriores surtos de violência em todo o país. Wirathu disse que os confrontos serviram como inspiração para difusão de seus ensinamentos.
A canção tema do movimento de Wirathu fala de pessoas que "vivem em nossa terra, bebem a nossa água, e são ingratos conosco".
"Construiremos uma cerca com nossos ossos se necessário", fala o refrão da canção. Os muçulmanos não são mencionados explicitamente na canção, mas Wirathu disse que a letra se refere a eles.
Panfletos distribuídos em seu sermão demonizando os muçulmanos diziam que "a Birmânia está atualmente sofrendo com o veneno mais perigoso e temível que é severo o bastante para erradicar toda a civilização".
Muitos na Birmânia especulam, sem fornecer provas, que Wirathu esteja aliado a elementos da linha dura budista do país que querem aproveitar o nacionalismo de seu movimento a fim de reunir apoio antecipado para as eleições de 2015. Wirathu nega tais ligações.
Entretanto, o governo tem feito pouco para controlá-lo. Durante a visita de Wirathu aqui em Taunggyi, policiais de trânsito esvaziaram os cruzamentos para a sua carreata.
Uma vez dentro do monastério, como parte de uma visita altamente coreografada, seus seguidores fizeram uma procissão através de multidões de seguidores que se prostravam enquanto ele passava.
O movimento de Wirathu se denomina de 969, três dígitos que os monges afirmam simbolizar as virtudes de Buda, as práticas e a comunidade budista.
Adesivos com o logotipo do movimento agora são onipresentes em toda a nação, em carros, motocicletas e nas lojas. O movimento também deu início a uma campanha de coleta de assinaturas convocando a proibição de casamentos entre pessoas de crenças diferentes, e panfletos são distribuídos nos sermões listando as marcas muçulmanas e as lojas a serem evitadas.
Em Mawlamyine, uma cidade multicultural no sudoeste de Yangon, um monastério ligado ao movimento 969 montou os cursos infantis de instrução budista, que é chamado de "escolas dominicais dhamma". Líderes dos monastérios por lá buscam apresentar a campanha como uma forma de movimento de renascimento budista.
— O ponto principal é que a nossa religião e nacionalidade não desapareçam — disse Ashin Zadila, monge veterano do monastério em Myazedi Nanoo fora da cidade.
No entanto, apesar dos esforços para descrever o movimento como não ameaçador, muitos muçulmanos estão preocupados.
Duas horas antes de Wirathu entrar por Taunggyi em uma carreata que incluía 60 motocicletas buzinando, Tun Tun Naing, comerciante muçulmano no mercado central da cidade, falou sobre a visita sussurrando.
— Estou muito assustado — disse, parando no meio da frase quando clientes entraram na loja.
— Dizemos às crianças para não sair caso não seja absolutamente necessário — completou.
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