Luis A. Gómez | Calcutá
Em um país cuja produção de energia depende basicamente do carvão, o uso do mineral rendeu negócios milionários a várias corporações e, ao mesmo tempo, provocou a desapropriação e a morte de milhares de indígenas
No dia 10 de agosto de 2013, aconteceu um acidente na mina de carvão de Kulda, no Estado de Odisha, ao norte da Índia. Pelo menos 14 trabalhadores morreram com o desabamento em um reservatório de resíduos e foram sepultados pela pedra. A companhia paraestatal que opera a mina, Mahanadi Coalfields, decidiu buscá-los com maquinário pesado e revirou com pressa todo o local. As famílias dos mortos foram recuperando-os por partes entre as pedras: durante três dias, as máquinas tiraram dali braços, pés, pedaços de carne.
Menos de duas semanas depois, a mina foi reaberta para produzir suas regulares 5 mil toneladas diárias de carvão. Nenhuma família recebeu a compensação prometida. Mas o caso de Kulda não é isolado, como demonstram os relatórios de ONGs e os processos judiciais recentes, como o iniciado em maio passado contra a Reliance Power pela instalação de um complexo minerador em Singrauli, no centro da Índia: desaparecimentos forçados, compensações por debaixo do pano e a derrubada de casas com seus habitantes dentro são alguns dos crimes dos quais a companhia é acusada.
Divulgação/Greenpeace
Catadores trabalhando nas minas de carvão na Índia
Desde que, em 1994, a Índia abriu suas minas à exploração paraestatal e privada, mais de 218 concessões de exploração de carvão foram entregues. A maioria das minas a céu aberto, como Kulda, derrubam as florestas que protegem os povos ancestrais e deslocam comunidades inteiras. Em todas trabalham “catadores” que vivem de transportar e comercializar os resíduos de baixa qualidade das minas, caminhando descalços sobre perdas ardendo, expostos a explosões ou incêndios repentinos. Muitos são crianças, quase todos são indígenas deslocados pela mineração (como os de Kulda).
O negócio não é pequeno: a Índia é o terceiro maior produtor mundial de carvão. Sua riqueza carbonífera chegou a 613 milhões de toneladas em 2013 e é utilizada, em sua grande maioria, para produzir 71% da energia elétrica do país, em cidades como Nova Déli, Mumbai e Calcutá, ou em imensas refinarias de aço que foram construídas nos últimos 20 anos (propriedade das mesmas corporações que controlam o carvão e a produção de energia elétrica).
Assim, extrair carvão é uma prioridade e, como consequência, as concessões foram entregues de maneira direta, sem concurso. Mas a história de privatizações e de desapropriações teve uma virada inesperada três meses atrás: em uma ação judicial sem precedentes na Índia (e no mundo), a Corte Suprema decretou que as concessões eram ilegais, ordenando seu fechamento e posterior licitação, assim como pagamentos milionários como compensação para o Estado.
Perdas e ameaças corporativas
Em 2012, o escritório do auditor-geral da Índia ordenou a avaliação das concessões de mineração de carvão. Depois de vários processos de interesse público e de numerosas denúncias de abusos, decidiu-se revisar todo o processo. Em dois anos de investigações, foram descobertas muitíssimas violações às leis que regem a mineração, os direitos dos povos indígenas e a administração e o uso das florestas na Índia, sem contar as violações aos direitos humanos.
O relatório final do auditor-geral deixou, sobretudo, claros os temas que revelam a negligência de governos anteriores: as concessões deveriam ter sido licitadas, em primeiro lugar, e, além disso, forem entregues por preços inferiores ao valor real dos jazigos.
Então, a Corte Suprema entrou em cena, recuperando e analisando todos os casos pendentes do processo, já conhecido como coalgate [termo genérico em inglês para designar o escândalo do carvão], e terminando com a sentença do último dia 25 de agosto: entre 1993 e 2010 foram entregues 218 concessões de forma ilegal e arbitrária, resultando em uma “distribuição injusta da riqueza nacional.”
A corte ordenou o fechamento imediato de 168 minas, o fechamento parcial de 46 e a continuação da operação das 4 minas restantes para garantir a distribuição de energia elétrica em duas regiões do país. As ações de corporações como Jindal, Tata e Reliance começaram a cair nesse dia, tanto em suas divisões de carvão como na produção de aço.
Evidentemente, a primeira ameaça veio das empresas privadas, que previram uma escassez de energia elétrica nos meses seguintes, como foi publicado por alguns meios de comunicação. No entanto, o governo de Narendra Modi, enquanto resolvia como acatar à decisão da Corte Suprema, lhes respondeu que poderiam usar suas reservas registradas do minério pelo tempo que lhes resta de operação. Suas ações continuaram caindo por mais algumas semanas.
Regularizando o roubo
Os “catadores” das minas em Dandhad, no estado de Bengala Ocidental, trabalham de forma muito parecida a seus colegas nos lixões. Ao seu redor, a paisagem é escura, o ar é sujo e não há árvores nem mananciais. Todos têm a pele cinza e brilhante. Ao escurecer, são como fantasmas que brilham no meio dos montes e do maquinário. Muitos têm menos de 15 anos. Suas organizações e alguns sindicatos ameaçaram greves se os patrões perdessem suas concessões.
Arquivo Pessoal
A decisão da Corte Suprema tampouco produziu otimismo social. A questão, como nos explicou o conhecido ativista Ramesh Agarwal, é que a exploração do carvão não se deteve completamente. “As licenças sairão depois da licitação e os donos atuais formarão um cartel com elas”, concluiu Agarwal, que recebeu o prêmio Goldman de Meio-Ambiente em 2014, por sua defesa das florestas em Chhatisgarh, seu estado natal.
[Ramesh Agarwal venceu prêmios por sua militância ambiental na Índia]
“Parte do protesto no coalgate”, reforça Feliz Padel, antropólogo especialista em conflitos de mineração e povos indígenas, “era devido ao fato das mineradoras não estarem explorando plenamente as minas que controlavam”.
Nesse cenário, o governo publicou, no último dia 22 de outubro, uma ordem que delimita o processo pelo qual mais de 200 concessões de carvão serão leiloadas eletronicamente. Nesse dia, o mercado reagiu alegre e as corporações envolvidas recuperaram o fôlego. Arun Jaitley, ministro de Finanças e responsável pelo processo de leilão eletrônico, explicou que todas as companhias, inclusive as atuais concessionárias, poderiam participar do processo, a não ser as que tinham processos pendentes.
O coalgate, opina Padel, “serviu de máscara para desviar a atenção das áreas reservadas (que representa um terço das minas de carvão) sobre as quais o escritório do primeiro-ministro quer ter controle”. Isto é, voltariam a licitar também as concessões em reservas naturais com florestas e habitadas por indígenas, sem que se aplique necessariamente a legislação vigente, que impede que se passe por cima de seus direitos. Padel conclui: “Não vejo nada positivo para os indígenas, a não ser empregos temporários e misérias desse tipo.”
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