Recentemente acordamos todos com um barulho espetacular: graças à colaboração de uma dedicada agente de trânsito, a imprensa brasileira, confirmando a sua vocação para os temas mais sérios, finalmente conseguiu demonstrar o que há muito se desconfiava: juízes não são deuses!
Seria, entretanto, necessário dar maior divulgação à boa nova, pois, como demonstram parte das pretensões cotidianamente deduzidas em juízo, muitos ainda se dirigem ao Judiciário convencidos de que os juízes têm poderes sobrenaturais. Para falar a verdade, as coisas andam bastante sérias. Equiparados a profetas de uma nova religião (como se o Brasil já não tivesse crenças em demasia), os juízes brasileiros são permanentemente confrontados com pedidos que vão muito além da multiplicação de pães ou da transformação da água em vinho. As demandas se sofisticaram e hoje envolvem a necessidade de multiplicar leitos (já ocupados) de UTI, vagas em universidade onde elas não existem, posse em cargos públicos para quem sequer foi aprovado em concurso e, se não fosse o bastante, não é incomum o pedido de aposentadoria rural para quem, entrevistado pelo magistrado, revela sincera dificuldade em distinguir um bovino de um equino.
Essa lista de demandas judiciais pode não ser caprichosa, como poderão demonstrar os interessados, mas certamente não tem similar em nenhum lugar do planeta e nada indica que terá um fim. Já não consiste, por exemplo, qualquer novidade o pedido individual ou coletivo para a dispensação pelo SUS de estimulantes sexuais (Viagra e similares). Há ainda pedidos de tratamentos experimentais no exterior, além de uma inabarcável lista de medicamentos de alto custo — alguns atingindo a cifra de R$ 1 milhão por ano — cuja importação ou produção no país sequer foi autorizada pela Anvisa.
O surpreendente em todos esses casos, insisto, não está propriamente nos pedidos em si, na maior parte das vezes absolutamente legítimos quando considerada a situação da parte que, em desespero, os formula. O problema é que passam ao largo da implementação de qualquer política pública governamental ou legislativa, além de não terem previsão orçamentária e nem mesmo se ocuparem de demonstrar a existência de fonte de custeio.
Desde que alguns teóricos passaram a professar o dogma de que, além de dizer o Direito, os juízes têm condições de produzir justiça perfeita e acabada para todos os casos concretos, fomos caminhando progressivamente para esse estado de coisas, onde já se encontra aqui e ali quem de fato acredite que, para além das maravilhas do artigo 6º da Constituição (educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados), já seria possível obter do Judiciário, em respostas certas e indiscutíveis (a quadratura do círculo da “única resposta correta”), entre outras maravilhas, honestidade na política, amor paternal e mesmo felicidade. (Tudo isso sem esforço pessoal ou custo coletivo.)
Como se vê, depois de certificada a condição terrena da magistratura nacional, devemos agora iniciar uma outra batalha, certamente mais difícil, considerada a resistência dos convictos, consistente em aceitar que os juízes também não são profetas, magos ou bruxos e, por isso mesmo, não dominam nenhuma ciência oculta que lhes permita, por mera habilidade hermenêutica, produzir coisas de palavras. O Judiciário não detém nenhuma pedra filosofal de onde possa operar milagres a partir do direito.
É certo que o direito, como sistema, pode influenciar o seu meio-ambiente, mas nem mesmo Kelsen, na mais bem sucedida tentativa de pureza metódica já alcançada pela ciência do direito, ousou desconsiderar que a realidade (social, política e moral) será sempre um limite intransponível para as decisões judiciais.
Como esse espaço de reflexão pretende harmonizar-se com o Direito Constitucional, alguém poderia nos confrontar legitimamente com a seguinte questão: se o sentido deste texto é que não existe atalho para a felicidade, então não seria correto afirmar que a Constituição de 1988 fez promessas em demasia?
A pergunta, contudo, é menos incômoda do que parece. De fato, a resposta tem menos a ver com o texto constitucional do que com aqueles que têm o poder-dever de implementá-lo. A Constituição brasileira de 1988 veio ao mundo como podia, isto é, paradoxalmente compromissória. Precisava veicular valores que representassem os mais variados grupos de interesses existentes em nossa sociedade, pois, do contrário, caso se identificasse ideologicamente com uma visão de mundo exclusiva, certamente atrairia a má vontade dos demais grupos de poder, o que certamente comprometeria a sua força normativa (Konrad Hesse).
Contudo, mais de 25 anos de sua promulgação, e nisso está o paradoxo, a vocação compromissória de nossa Constituição não deixou de revelar alguns efeitos deletérios, sendo o principal deles o fato de que sendo a Constituição “de todo mundo” muitas vezes é a Constituição “de ninguém”. Assim, uma das mais benfazejas virtudes de nossa Constituição tem se convertido num de seus mais difíceis e complexos problemas: precisamente por buscar representar o maior número de expectativas sociais, a Constituição não pode revelar identidade com nenhum dos grupos de interesses que conformam a nossa comunidade nacional e, com isso, acaba muitas vezes relegada à própria sorte.
Além disso, suspeito que por instituir em seu texto interesses e valores tão diversos como conflitantes, próprios de uma Constituição compromissória, especialmente voltada a uma sociedade complexa, a Constituição de 1988, infelizmente, conferiu às decisões judiciais uma péssima marca de distinção, que é a de parecer autorizar que quase tudo seja feito em seu nome.
Os problemas, contudo, não são apenas de ordem prática e normativa. Do ponto de vista teórico, estamos numa névoa. Todos que se propõem a tarefa de estudar o Direito no Brasil ainda não conseguiram destacar da realidade jurídica que vivenciamos um sistema teórico minimamente coerente. Perguntas corriqueiras a qualquer experiência do direito comparado não conseguem aqui uma resposta adequada e direta. Aliás, não parecem alcançar nenhuma resposta. Por exemplo: quais os sinais ou características essenciais que de fato distinguem o Direito brasileiro? Quais os princípios e/ou métodos que o governam? Que lugar deve ocupar no Brasil os precedentes, nomeadamente num sistema que deveria ser de Direito estrito e escrito? Qual o papel que as regras e os princípios devem ter em nosso sistema de decisão judicial? Devemos mesmo, como já sustentam alguns e sem qualquer rubor, conferir prevalência às opções judiciais em detrimento das decisões políticas?
Não obstante, fosse necessário para a orientação dos atores jurídicos que essas questões recebessem dos tribunais e academia uma resposta minimamente coerente, para nada disso se tem encontrado respostas claras e diretas.
Num quadro de crescente e paradoxal indecisão sobre quem decide o quê, o Poder Judiciário vem assumindo com alegre desenvoltura o papel de tutor e às vezes de executor de algumas políticas públicas. Até mesmo a nossa Suprema Corte tem se curvado a essa novidade (vide o caso das prestações em matéria de saúde).
Apesar de assistir a tudo isso com indisfarçável admiração, busco eu próprio conferir alguma coerência à minha condição de magistrado e, não obstante a ressalva de meu ponto de vista pessoal, não considero justo negar ao jurisdicionado o que, considerada a jurisprudência predominante, ele encontraria em outros tribunais, especialmente quando se cuida de orientação jurisprudencial colhida das decisões dos nossos tribunais superiores.
Se o Poder Judiciário, contudo, quer um lugar de preponderância política, ele tem de assumir a responsabilidade por essa opção. O cidadão tem o direito de saber onde pode cobrar a responsabilidade — inclusive política — por suas alegrias e tristezas.
O judiciário não pode pretender o confortável lugar do bom mago, aquele que, nos contos de fadas, alcança a maravilha de produzir decisões que, parecendo não implicar custos ou dificuldades a ninguém, permite a todos viver felizes para sempre. Tem que aceitar que, ao assumir o poder das opções políticas primárias e das respostas que agradam/desagradam a população, deve também aceitar a responsabilidade pelo resíduo de dificuldade que implica e pressupõe toda escolha política. (Designo de política qualquer decisão que não se limita a aplicar uma decisão genérica e abstrata legalmente preexistente, mas que tem o sentido de inovar primariamente a ordem jurídica criando direitos e obrigações.)
A sociedade deveria aceitar, contudo, que o juiz, não sendo deus nem profeta, não pode revelar poderes mágicos para instituir ou predizer o paraíso entre nós. Onde quer que se atribua direitos a alguns, estar-se-á sempre pressupondo, ainda que isso não seja visível, custos e deveres a serem suportados por outros.
Se a Academia e parte da magistratura, por não aceitarem o lugar de coadjuvante do Poder Judiciário diante de políticas públicas, advogam uma espécie de juiz que, indo além do direito posto, deve realizar a mal explicada “justiça social” ou “justiça do caso concreto”, também não podem, para manter coerência, iludir o público, devendo prepará-lo para o incremento de técnicas e decisões que são, ainda que se negue, essencialmente políticas.
Quando a jurisdição desdenha o seu lugar de estrita e humilde aplicação da legislação aos casos concretos, tem que fazê-lo com clareza de propósitos e honestidade institucional e, principalmente, tem que se submeter a um regime de responsabilidade política, isto é, de accountabiliy e aceitar submeter-se a algum crivo do eleitor/cidadão. A frontalidade é também uma virtude das instituições, não apenas dos indivíduos.
Entretanto, com Alexander Bickel, também creio que se pode esperar de uma instituição grave e serena como deve ser o Judiciário a virtude passiva de quem deve reconhecer que alguns problemas e dificuldades da vida em sociedade ultrapassam em muito a esfera do direito para se situar em outros planos da ação e da comunicação humana, como é o caso da economia, da política, da moral, da arte, da educação e do amor (Niklas Luhmann).
Infelizmente, ao invés de incentivarmos a autocontenção da magistratura, tem-se assistido em nosso país a um discurso mal posto, que nasce na própria Academia, em que a “dificuldade contramajoritária” do Judiciário, de que falava Bickel, se transforma em “virtude”; e a “virtude passiva” dos juízes, defendida pelo mesmo grande jurista, vai sendo censurada como fraqueza institucional. Em termos mais simples, o juiz vai sendo convencido de que o seu déficit de representação democrática — a “dificuldade contramajoritária” referida por Bickel —, que deveria ser justificado com a autocontenção de suas “virtudes passivas”, é na verdade uma qualidade — uma virtude — que justifica a sua atuação ao largo das decisões e das políticas públicas democraticamente adotadas pelos que receberam o voto do eleitor (Executivo e Legislativo).
De fato, o que já não representa nenhum segredo, um vasto setor da Academia aceitou conjurar com a grande mídia, propugnando uma em tudo deletéria judicialização da política. Mas não se parou por aí. Como ninguém terá coragem de negar, é perfeitamente legítimo falar-se hoje de uma judicialização da saúde, judicialização da economia, judicialização da educação, judicialização moral e da família e até mesmo judicialização do amor[1]. Tudo isso exige, naturalmente, uma confiança em poderes verdadeiramente mágicos na atuação do Poder Judiciário. Contudo, a convicção de que exista uma inteligência última, uma teoria ou hermenêutica fundamental no direito, que permitiria ao magistrado, em cada caso concreto, com certeza e cientificidade, decidir pela única decisão correta em todos esses planos da vida (economia, administração da saúde, educação, moral, família e amor), apenas consegue nos tirar do chão da realidade, mas sem nos levar a lugar algum.
A única certeza de uma fantasia tão maravilhosa é, obviamente, a decepção. Isso certamente também explica por que o Poder Judiciário, não obstante a sua boa vontade e ânsia em responder a todos os azares da vida humana, ao contrário do que seria de esperar, vem, segundo pesquisas persistentes, perdendo legitimidade.
O Direito não pode dar lições para os outros subsistemas sociais. Não deveria ser difícil de compreender que onde a economia, a política, a ciência, a moral e família, naquilo que é essencialmente seu, falharem, muito provavelmente o Direito não terá melhor sorte.
O código do direito (licitude/ilicitude) não é absoluto em relação aos demais códigos dos outros subsistemas da sociedade. Por isso, o Judiciário deveria se contentar com uma atuação residual, isto é, restrita ao que de fato, pela importância do conflito que não se resolveu naqueles outros sistemas, não pode permanecer sem decisão. Infelizmente, e não consigo entender por que, muitos enxergam no direito uma esfera de decisão total das dificuldades humanas.
Lembrando Richard Rorty e Milan Kundera, a verdade, hoje, de tão difusa e especializada em áreas distintas e diferenciadas, está muito mais para a narrativa de um romance, em que os personagens são aceitos e admirados precisamente por suas diferenças e idiossincrasias, do que para uma teoria filosófica sistematizada, lógica e totalizante.
No romance que cada sociedade escreve de si mesma, o juiz é apenas um personagem entre os muitos personagens existentes. Certamente, não é um deus, nem profeta, nem mago, e, na verdade, se a obra for bem estruturada, não deveria nem mesmo ter qualquer protagonismo.
Alguns professores de direito, ou magistrados que pregam a predominância do papel do Poder Judiciário perguntariam: mas é só isso? Não. Se a tese das virtudes passivas de Alexander Bickel estiver, como penso, correta, quando o magistrado voltar a ocupar o seu lugar de prudente recato, é mais do que provável que a sociedade lhe reconhecerá a legitimidade da autoridade perdida.
[1] Recentemente, o respeitabilíssimo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul decidiu prudentemente, a propósito de lide em que se discutia o tema dos danos morais por abandono afetivo, que “a obrigação civil de dar cuidado correspondente ao direito do filho à convivência familiar não se confunde com a obrigação de dar amor”. Contudo, aos fins a que se propõe essa distinção é de fato possível e mesmo desejável?
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.Fonte: CONJUR
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