por Leneide Duarte-Plon, de Paris — publicado 25/07/2015 09h07
O responsável pela descoberta da "fraude fiscal do século” diz que ainda há segredos há ser revelados e fala em "financiamento de partidos"
Serio Perez/Latinstock
Falciani não é delator, e sim lanceur d'alerte, herói contemporâneo, como SnowdenLeia também
Hervé Falciani, 42 anos, sabe que o segredo bancário favorece todo tipo de fraude e que o crime organizado pelos bancos suíços é contra a economia do mundo. Por isso, como engenheiro de sistemas de informática do banco HSBC de Genebra, resolveu correr o risco de se tornar um criminoso à luz do direito suíço. Violou o segredo bancário entregando aos serviços de informação franceses e à Justiça francesa, em 2009, uma lista de 106 mil contas secretas de cidadãos de diversos países, que representavam um total de 180 bilhões de euros.
“Por que enfrentar o poder dos bancos correndo riscos e ameaças?”, pergunto a Falciani.
“Era minha responsabilidade”, responde. “Tinha a possibilidade de fazer e não via outros que a tivessem. Aliás, trabalho com quantos vão se unindo a essa aventura. Na união, o fardo é compartilhado, mais leve. Amanhã, se tiver a possibilidade de trabalhar com um organismo brasileiro, se pensar que esse trabalho pode ser determinante, eu me arriscarei a ser extraditado.”
“Trata-se de investigar o sistema financeiro dos paraísos fiscais – acrescenta –, o que pode ser útil ao Brasil. Esse trabalho há de ser desenvolvido tanto no plano administrativo quanto no judiciário. Mas deve haver vontade política, como na Argentina. Na Espanha, quando comecei a trabalhar com as autoridades judiciárias, foi contra a vontade do governo, mesmo assim o trabalho pôde ser feito.”
De origem italiana, Hervé Falciani nasceu em Mônaco. O principado foi o primeiro paraíso fiscal que conheceu de perto, pois seu pai era bancário. Em seu livro Séisme sur la Planète Finance – Au cœur du scandale HSBC, recém-lançado em Paris e escrito com a colaboração do jornalista italiano Angelo Mincuzzi, Falciani conta como seu pai trabalhava noite e dia para contar o dinheiro dos ricos franceses que exportaram somas monumentais para Mônaco, em 1981. Temiam o governo do socialista François Mitterrand, recém-eleito presidente. Na época, o dinheiro ainda tinha uma existência material e era transportado em valises.
“O HSBC tem o maior sistema informático privado do mundo”, informa Falciani, um lanceur d’alerte (whistle blower, em inglês), não um delator. Basta ver a definição no dicionário. Sua causa é o direito dos cidadãos à informação sobre o que se passa no mundo opaco da finança. Com esse affaire já chamado de “fraude fiscal do século”, ele arriscou a vida pensando em mudar o sistema. Um herói do mundo moderno, o lanceur d’alerte é um cidadão engajado. Por isso, Falciani foi comparado pelo New York Times a Edward Snowden.
Depois de começar sua carreira profissional em Mônaco, Falciani tornou-se engenheiro informático do banco HSBC em Genebra. No dia a dia, participou do sofisticado sistema que se dedica a burlar todas as leis que os Estados aprovam para combater a fraude e a evasão de impostos. E, como responsável pelo sistema informático, acompanhou de perto os malabarismos do banco para dissimular em diversas sucursais do mundo as fortunas de clientes bilionários.
Até o dia em que resolveu decifrar a “Pedra de Roseta”, como ele chama o elaboradíssimo sistema dos “bancos privados”, que não funcionam como um banco comercial e lesam as economias de praticamente todos os países do mundo.
Segundo Falciani, o SwissLeaks ainda não revelou todos os segredos do HSBC. “O problema é que quem tem interesses nos paraísos fiscais não vai lutar contra a opacidade financeira. E o financiamento dos partidos políticos tem uma relação com os Estados onde o dinheiro está escondido. Por isso, poucos políticos tomam posição contra os paraísos fiscais”, explica, falando por Skype da Espanha, onde vive atualmente.
CartaCapital: Seu livro fala de uma “rede” que decidiu revelar a opacidade do sistema bancário suíço. Com que objetivo?
Hervé Falciani: Tudo começou ao verificar que os gerentes de conta, chamados a controlar os clientes pelos quais são responsáveis, não o fazem. Ciente disso, quando tive a possibilidade de provar e de compartilhar o que sei, pedi ajuda a quem podia colaborar. Começamos a estudar a chance de mostrar os problemas do HSBC de Genebra. Os próprios diretores do banco reconheceram algumas irregularidades.
CC : O que o senhor fez é ilegal para o Direito suíço, que protege o segredo bancário e sua opacidade…
HF: A rede é integrada por peritos em superar os diferentes obstáculos técnicos, recorri a eles quando estava no banco, pois não tinha acesso aos dados sensíveis. E também os obstáculos jurídicos, porque não há leis que permitam colaborar com outra Justiça além da suíça. A Promotoria de Genebra reconheceu não poder investigar casos de lavagem de dinheiro, seria muito dispendioso.
CC: Quem integra a rede?
HF: Os envolvidos vêm de vários países. A colaboração com as autoridades argentinas deu-se através de uma rede informal de cidadãos determinados e corajosos, prontos a convocar seus superiores para a tarefa de ir ao fundo da questão. No Brasil, espero haver quem queira colaborar com as autoridades brasileiras para ajudá-las a entender o mecanismo do banco.
CC: O trabalho da Receita francesa em relação às contas do HSBC está terminando?
HF: Não, tudo é muito complexo, há o contexto geopolítico. Não nos esqueçamos de que quem dirige as instituições europeias, atualmente, são Luxemburgo e Holanda. Em termos políticos, o que predomina é a união bancária que se sobrepõe a qualquer outra na Europa. Veja o que se passa com a Grécia. A América do Sul tem um papel autônomo, muito importante. Se Brasil e Argentina trabalhassem juntos nesse sentido, tudo seria mais fácil. O responsável brasileiro da Receita pode pedir a colaboração de seu colega argentino, Ricardo Echegaray, que já investiga o caso.
CC: As autoridades brasileiras já fizeram contato com o senhor pedindo sua colaboração no exame da lista?
HF: A mim, nunca. E também não tenho muitas oportunidades de falar a jornalistas brasileiros. A única certeza que tenho quanto ao Brasil é de que houve uma colaboração administrativa, o que quer dizer uma cooperação mínima.
CC: No Brasil, há quem entenda que o profissional brasileiro do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (Icij), encarregado de trabalhar com as listas no mundo todo, serve ao interesse dos patrões da mídia e, portanto, dos graúdos nativos listados.
HF: Toda polêmica pode ser útil para que o maior número de pessoas seja informado. Acho que tanto no Brasil quanto em outros países é difícil sensibilizar o cidadão.
CC: Segundo seu livro, parte das contas está em nome de sociedades offshore. Com sua expertise, o governo brasileiro poderia identificar a pessoa que se esconde nesse tipo de conta?
HF: Nas informações disponíveis, pode-se encontrar todo o contexto de uma conta. Pode-se descobrir quem são os laranjas, os intermediários, os gerentes das contas.
CC: Alguém que não conheça os programas e os códigos tem condições de chegar lá?
HF: Os que podem fazer isso não são os jornalistas, e sim os investigadores, da Justiça ou da administração estatal.
CC: É preciso decodificar as informações?
HF: Sim, e há diversas formas de fazê-lo. A França pode dar seu suporte, mas não parece querer. Já houve alguma recusa de cooperação da parte da França. A cooperação com a Argentina permitiria disponibilizar mais informações para a Justiça e para a administração brasileira.
CC: O senhor está colaborando com a Argentina?
HF: Claro, eles me solicitaram. Fui ouvido por uma delegação bicameral argentina no Senado francês no dia 18 de junho.
CC: O Parlamento brasileiro pode ajudar a investigação com a CPI do Senado instaurada para o caso HSBC?
HF: Claro, esse é um dos caminhos.
CC: O jornalista brasileiro Amaury Ribeiro Jr., que pertencia ao Consórcio Internacional, não teve acesso à sua lista. Solicitou-a a Marina Walker Guevara, vice-diretora do Consórcio. Ela lhe negou o acesso e ele deixou o consórcio.
HF: Repito, até mesmo as polêmicas podem chamar a atenção para o caso HSBC. As pessoas devem questionar. Mas é preciso uma ação administrativa. A mídia é que deveria sensibilizar a opinião pública, mas para o assunto. Prioritária é a ação governamental. Para tanto, é preciso ter coragem política para enfrentar a raiz do problema, sem a preocupação com a ressonância dos listados.
CC: O senhor estaria disposto a trabalhar com o governo e a Justiça brasileiros?
HF: Claro. A pior coisa é o silêncio que favorece o segredo, a corrupção e a opacidade. Estou disposto a assumir todos os riscos. Já corri o risco de ser extraditado da Espanha para poder trabalhar com o Ministério Público anticorrupção espanhol.
CC : E por que o senhor aceita correr todos esses riscos?
HF: Primeiramente, porque eu ocupava uma posição única para poder fazê-lo. Quando houver outras pessoas capazes de assumir, passo a responsabilidade. Aliás, já trabalho com outras pessoas que pouco a pouco se juntaram à aventura.
CC: Mas a anistia decretada na Espanha para os que fraudaram não invalidou o trabalho de vocês ?
HF: Ao contrário. Permitiu que todas as manobras políticas fossem conhecidas, que o assunto fosse valorizado para se fazer a mudança política necessária. Na Espanha, esse processo durou dois a três anos e pode ter um efeito positivo sobre as eleições do fim do ano. Também nesse país, tudo começou por causa de um promotor corajoso, disse “corro o risco juntamente com você”, e começou a investigar.
CC: Christine Lagarde era ministra da Economia quando o senhor começou a colaborar com as autoridades francesas. A “lista Lagarde”, da qual o senhor fala no seu livro, é a sua?
HF: Sim, com menos elementos.
CC: O senhor acredita que em países largamente expostos à corrupção, como o Brasil, esta possa ser investigada em profundidade?
HF: Isso está além da corrupção. Trata-se do controle da soberania de um Estado, da sua capacidade de cobrar impostos. Eu diria que em um país em que a corrupção existe, é o meio de facilitar certas transações impossíveis em outras circunstâncias. Vi isso em outros países, além da Argentina. Mas a evolução natural é no sentido da simplificação, no sentido da compreensão do que se deve evitar. Para simplificar o imposto, é preciso compreender os mecanismos que o tornam injusto.
CC: Qual seria o melhor resultado do affaire HSBC?
HF: O interesse maior é de que os cidadãos entendam o que se passa. Se os cidadãos compreendem que isso diz respeito a
suas vidas, que é um problema de sociedade, avançaremos no sentido de mais equidade, no sentido de melhorar a economia e não deixá-la nas mãos de predadores. Isso tem um interesse transcendente para a cidadania, pois representa milhares de bilhões de euros.
CC: O senhor tem os números da evasão?
HF: Somente na Europa, 1 trilhão de euros, conforme a estimativa da Comissão Europeia.
CC: Seu livro revela que o dono do banco Santander, Emilio Botín, falecido depois, estava na lista HSBC. Ele fez um acordo para pagar somente 10% dos impostos devidos, em uma fraude estimada em 2,8 bilhões, e não foi processado penalmente. Os grandes fraudadores do Fisco saem sempre ganhando?
HF: Hoje em dia, sim. Por isso lhe digo que a resposta tem de ser política.
CC: A Espanha rejeitou o pedido da Suíça de extraditar o senhor. Mas o mandado internacional de prisão feito pelos suíços continua em vigor. Em que condições o senhor aceitaria ir ao Brasil colaborar com as autoridades brasileiras?
HF: Bastaria ter uma autorização especial da Justiça. É preciso que se compreenda que um país pode decidir por razões de interesse nacional não extraditar alguém sem que isso passe pela Justiça. É o direito soberano de cada nação decidir se responde ou não à Interpol, que não está acima da soberania nacional.
CC: O senhor escreve no livro: “Um dia, altos funcionários franceses me disseram que, se a Índia obteve uma lista das contas do HSBC, foi porque ela era menos corrompida que a Rússia ou a China. Na realidade, foi porque o governo francês queria vender aviões de guerra aos indianos é que resolveu transmitir as informações. A mesma coisa para o Brasil, com quem o governo francês negociava alguns contratos de armamentos”. Um pouco depois: “O Brasil, contudo, não pediu oficialmente as informações. Ele as obteve de maneira discreta e ninguém soube como as coisas terminaram. Tudo se desenrolou no contexto de um acordo e os dados foram objeto de negociações”. E hoje, como estão essas relações?
HF: Penso que em termos de trocas o governo Sarkozy não foi tão eficaz como o atual governo. Depois que a Índia comprou aviões franceses, a colaboração em termos de luta contra a corrupção melhorou. Algumas semanas depois da compra, novas informações sobre o HSBC foram comunicadas pela França de maneira oficial. A informação é um elemento de negociações.
CC: Ninguém pode ver sua lista, nem mesmo com o compromisso de não publicá-la?
HF: Diversas ações são necessárias. O que o consórcio tem é uma pequena parte da lista, pequena parte das informações disponibilizadas para a Justiça. A primeira ação é da Justiça. E isso demanda tempo. O consórcio obteve a lista porque os autores do “furo ”, os jornalistas do Le Monde, permitiram.
CC: O senhor escreve em seu livro que a lista desapareceu na Grécia, como em outros países onde uma investigação nunca foi feita. Mas no Le Monde de 9 de julho uma matéria dizia que o governo de Alexis Tsipras trabalha desde março em um projeto que visa repatriar em condições vantajosas dezenas de bilhões de euros de contas na Suíça, em Londres e em outras praças offshore. A Grécia trabalha com sua lista agora?
HF: Claro. Temos a prova de que foi necessária uma mudança de governo para que as coisas evoluíssem. No caso da opacidade financeira são os governos que devem agir.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/
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