Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Colhe-se dos papéis da antiga Consultoria-Geral da República uma das mais prosaicas manifestações burocráticas de nossa reminiscência histórica. Em 1923 o Ministro da Guerra consultou o Consultor-Geral da República, demandando se deveria atender a requerimento de guardião de um Convento, que pretendia receber soldo devido a um santo, que detinha patente militar. O santo em apreço era titular da patente de Tenente-Coronel do Exército brasileiro, por sucessivas promoções, desde o reinado de Afonso VI. Ele teria auxiliado na vitória dos brasileiros várias vezes. Uma ordem de 18 de outubro de 1810 (portanto do período joanino) dispunha sobre o pagamento de um soldo ao valioso santo, sem descontos ou recolhimento de impostos ou quaisquer emolumentos. Mais de cem anos depois, o guardião do convento queria receber o soldo devido, em nome do santo pranteado.
Confira-se a solução dada, e compare-se a profundidade do problema com discussões recentes, em torno do voluntarismo e da idiossincrasia de quem detém o poder de decidir. Segue o parecer, que nos comprova o bizantinismo de discussões atuais, preocupadas apenas com particularismos de regras de interpretação, e que se esquecem que nós advogados somos técnicos a serviço de uma ordem social mais digna, e nada mais. Como adverte o mais importante intelectual brasileiro da atualidade, falta-nos imaginação institucional. O parecer mostra-nos que essa imaginação detínhamos em demasia. Deu no que deu.
“Gabinete do Consultor-Geral da República – Rio de Janeiro, 3 de abril de 1923.
Exmo. Sr. Ministro de Estado dos Negócios da Guerra – Consultou-me V. Exa. com o Aviso nº 7, de 22 de fevereiro do corrente ano, sobre o requerimento do guardião do Convento de Santo Antônio desta Cidade, pedindo pagamento do soldo que a imagem desse Santo, nesse Convento existente, percebia como Tenente-Coronel do Exército e desde algum tempo deixou de lhe ser pago.
Infelizmente o requerimento não foi informado pelas repartições competentes desse Ministério de modo a se apurar se de fato tal soldo era pago, em virtude de que ordens, até quando foi pago e em virtude de que ordens deixou de o ser. Apenas acompanha o requerimento cópia de uma informação prestada em tempo, sobre o caso por um funcionário que servia de Consultor- Jurídico do Gabinete do Ministro.
Procurei instruir-me sobre os antecedentes desta questão e encontrei em obras de MELLO MORAES, FURTADO DE MENDONÇA, CUNHA MATTOS e VIEIRA FAZENDA interessantes documentos e informações de onde se apura que tendo mandado sentar praça no Regimento de Lagos, do Exército Português, no reinado de Affonso VI, o venerado Santo de Lisboa era habitualmente invocado pelos capitães quando entravam em combate. Assim ocorreu em Pernambuco quando foi da batalha contra o reduto de Palmares. Atribuído ao Santo o sucesso das armas reais, foi ele então nomeado tenente. Posteriormente, por se atribuir ainda à sua milagrosa intervenção a vitória das forças portuguesas sobre a ocupação de Duclerc de parte do litoral da Cidade do Rio de Janeiro, foi o Santo, no mesmo dia da vitória, 18 de setembro de 1710, personificado na imagem existente no Convento desta Cidade e que fora colocado nos muros do Convento, olhando para o sitio do combate, promovido a capitão, concedendo-se lhe patente que foi confirmada em 1711, depois de audiência do Conselho Ultramarino e aprovação régia. A carta-régia de confirmação de 21 de março de 1711, mandava que a importância dos soldos se aplica-se em sua festa e ornato de sua capela.
Em 14 de julho de 1810, o Príncipe Regente, já do Brasil, o promoveu a sargento-mor. O decreto real é do teor seguinte: “Sendo-me presente a viva devoção do povo do Rio de Janeiro para o glorioso Santo Antônio, que moveu um dos meus augustos predecessores a dar ao mesmo Santo, em 1711, o posto de capitão, tendo antes praça de soldado, depois do feliz assalto em que os habitantes da Cidade resistiram ao ataque dos franceses e tendo o céu abençoado os meus esforços para salvar a monarquia da grande e difícil crise a que se tem achado exposta, esperando ainda maior auxílio para sua final e inteira restauração, para que muito há de concorrer, como devo piamente esperar, a intercessão do mesmo glorioso Santo a quem tenho particular devoção: Hei por bem que se eleve-o ao posto de sargento-mor de infantaria desta Capitania e que pela Tesouraria se lhe fique pagando o competente soldo. O Conselho Supremo Militar o tenha assim entendido e faça executar. Palácio do Rio de Janeiro, em 14 de julho de 1810. (Com a rubrica do Príncipe Regente). Cumpra-se e registre-se (Com 5 rubricas do Conselho de Guerra).”
Em vista deste ato, o Conde Linhares Ministro de Estado mandou, por Aviso de 18 de outubro de 1810, pagar à referida imagem o soldo sem dedução de emolumento algum. E ainda de major foi o Santo promovido a tenente-coronel pelo mesmo príncipe já então Dom João VI, por decreto de 26 de julho de 1814, mencionando a respectiva patente que tem a data de 31 de agosto do mesmo ano, que o Rei houvera por bem que se elevasse o Santo ao posto de tenente-coronel de Infantaria e com ele houvesse o respectivo soldo, que lhe seria pago na forma das suas reais ordens.
E aí acabou a carreira militar do Santo.
O requerimento do Guardião do Convento, que provocou a consulta a que tenho a honra de responder, se diz, e essa declaração não foi contestada, que o soldo de tenente-coronel foi pago até abril de 1911. Não consta, porém, do processo por ordem de quem e por que fundamento se não continuou a pagar esse soldo.
Cabendo-me dizer sobre esse pedido de pagamento e havendo ponderado maduramente sobre o caso, parece-me, Sr. Ministro, que o requerimento não é de ser deferido.
Não encontrei em coleções oficiais nos documentos do Arquivo Público e do Instituto Histórico os originais dos documentos referidos pelos mencionados historiógrafos e cronistas. Sua autenticidade não pode, entretanto, ser contestada, desde que é notório que tais atos produziram efeito e foram respeitados e cumpridos até bem pouco tempo.
É evidente, porém, que o pagamento em questão, sendo, como é, expresso no documento acima referido, para ser aplicado na festa do Santo e ornato de sua capela, infringe o preceito do § 7º do art. 72 da Constituição Federal, por força do qual nenhum culto ou igreja gozará de subvenção oficial.
O pagamento pelo Estado de um soldo à imagem de um santo, e, declaradamente, para ser aplicado à sua festa e ornato de sua capela, não pode deixar de ser considerado subvenção oficial ao culto desse santo.
O que se poderia objetar a essa conclusão é que os atos transcritos e o cumprimento deles por longo tempo teriam criado um direito adquirido de ordem patrimonial, contra o qual não valeriam leis e atos oficiais posteriores.
Ocorre, porém, que para o reconhecimento de um direito adquirido é mister a existência de um titular desse direito, que não pode deixar de ser uma pessoa, física ou jurídica. O direito adquirido se incorpora no patrimônio e para aquisição de patrimônio é indispensável capacidade jurídica, que só nas pessoas se reconhece. Ora, essa capacidade jurídica, essa qualidade de pessoa, não pode ser encontrada quer no Santo, impessoalmente, quer na sua imagem existente no Convento desta Cidade.
Nesta conformidade, os atos referidos, de manifesta inspiração religiosa, eram benefícios que, não constituindo direito, e tendo sido outorgado dentro do espirito da legislação do tempo, podem ser afetados por atos posteriores, mormente tendo se manifestado tão profunda modificação no espírito da legislação a respeito das relações da Igreja com o Estado.
Por estes fundamentos, que sujeito à apreciação de V.Exa. é meu parecer que o requerimento não merece favorável despacho desde que se apure que as ordens anteriores foram competentemente revogadas.
Devolvo os papéis e tenho a honra de reiterar a V.Exa. os meus protestos de elevada estima e mui distinta consideração.
Rodrigo Octavio”
Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP, professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2015, 19h02
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