Sem a opção do isolamento remunerado, trabalhadores autônomos se expõem a riscos e podem comprometer tentativas de controlar disseminação do vírus.
Antes de iniciar a corrida, Carlos Nogueira, de 40 anos, avisa que a viagem acontecerá com os vidros abertos e coloca um pote de álcool em gel à disposição. São as únicas medidas de prevenção ao alcance do motorista da Uber, que tem um filho pequeno no grupo de risco da epidemia do novo coronavírus (Covid-19) por ter bronquite. O isolamento ou home office não são uma opção para Carlos. Sem reservas financeiras, ele paga a prestação do carro que dirige para trabalhar, com dois anos de parcelas pela frente.
A situação dele é a mesma de vários outros motoristas ouvidos pela DW Brasil no Rio de Janeiro e retrata a vulnerabilidade criada pela fragilização dos vínculos empregatícios no país ao longo dos últimos cinco anos. "Eu gostaria de estar recolhido, só que, infelizmente, as contas não vão parar por 15 dias", lamenta Carlos. Ele estima ter havido uma queda de 30% no número de corridas desde segunda-feira (16/3), quando as aulas foram suspensas no estado e começou a aumentar a adesão ao isolamento.
A Uber anunciou, na terça-feira, que continuará a remunerar os motoristas obrigados a deixar as atividades por estarem infectados ou com suspeita da doença em todo o Brasil. O pagamento irá levar em consideração a média de rendimentos diários dos últimos seis meses do motorista. Entretanto, não há, até agora, qualquer plano da empresa para os 850 mil motoristas e entregadores que, nas ruas, ficam expostos à epidemia e tornam-se vetores do contágio. O mesmo vale para as empresas concorrentes.
Nesta quarta-feira, o governo anunciou um aporte de R$ 15 bilhões para custear vouchers para trabalhadores informais de baixa renda durante três meses. O valor será de R$ 200 mensais, próximo ao que é pago às famílias beneficiárias do Bolsa Família. Hoje, o trabalho informal abrange 41,1% da população economicamente ativa, o equivalente a 38,4 milhões de pessoas, segundo dados do IBGE. O grupo não havia sido contemplado pelo pacote de R$ 147 bilhões anunciado pelo governo na segunda-feira para conter os efeitos da epidemia.
O economista Bruno Ottoni, pesquisador da consultoria IDados, avalia que a medida vai na direção certa, após a resposta do governo ter deixado a desejar. "Parece que o governo está começando a compreender a gravidade da situação, a começar pelo pedido de decretação de calamidade pública ao Congresso", avalia. Ele lembra, porém, que o valor está bem abaixo do rendimento médio de trabalhadores autônomos, sobretudo no Rio de Janeiro e em São Paulo, áreas mais afetadas até agora. Dessa forma, será insuficiente para cobrir as despesas das famílias afetadas.
Ottoni avalia que o governo poderá rever o valor após obter maior elasticidade no orçamento com a expectativa do decreto de calamidade. E enxerga, ainda, dificuldades logísticas para implementação do auxílio anunciado pelo governo, com 45 milhões de pessoas sem conta bancária no país. "Como esses indivíduos serão cadastrados e, no caso dos 'desbancarizados', como receberão o benefício? Sem um cadastro prévio, como saber quem realmente está perdendo a renda?", questiona.
Recorde de autônomos
Do total de 38,4 milhões de informais, 24,2 milhões são trabalhadores autônomos, o maior nível da série histórica iniciada em 2012. O percentual deles que não possui CNPJ chega a quase 80%. A informalidade inclui, ainda, as categorias de trabalhador sem carteira, trabalhador domésticos sem carteira, empregador sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar. O crescimento da informalidade foi determinante para conter o aumento da taxa de desemprego nos últimos anos. De 2014 a 2019, a população desocupada quase dobrou, tendo crescido 87,7% e chegado a 12,6 milhões de brasileiros.
Carlos trabalha como motorista há quase um ano. Antes, tinha ficado por tempo semelhante em outra função do aplicativo, a de entregador. Foi a solução encontrada para driblar o desemprego após ter exercido a profissão de adestrador de cães por 14 anos. Com o trabalho de carteira assinada e serviços realizados fora do horário, sua renda mensal girava entre R$ 7 mil e R$ 8 mil. Atualmente, ele só tira folga para ficar com a família nos dois últimos domingos do mês. As jornadas variam de 12 a 15 horas por dia, o que gera um rendimento mensal entre R$ 4 mil e R$ 5 mil. O valor cai para pouco mais de R$ 3 mil se descontados os gastos de combustível, reparos do veículo, pedágio e alimentação.
"Muita gente reclama que está ruim, mas é o aplicativo que me permite levar o sustento para dentro de casa e pagar minhas contas de forma honesta", conforma-se o motorista. Ele admite não ter planos caso a circulação nas ruas seja proibida com o avanço da epidemia e considera que o governo deveria estudar algum tipo de auxílio para a classe. "Mas não é justo que seja só para nós, teria que ser para toda a população que trabalha de modo informal", pondera.
Outra categoria que concentra um contingente expressivo de pessoas e vive dias de incerteza é a dos trabalhadores domésticos, que totalizam 6,3 milhões, dos quais 71,4% com vínculos informais. A categoria é predominantemente composta por mulheres, muitas delas mães solteiras. É o caso de Jennifer Vieira, de 30 anos, diarista de limpeza na grande São Paulo. Dona de casa até três anos atrás, ela foi abandonada pelo marido quando estava grávida do quarto filho e ingressou no mercado informal. Na quarta-feira, todos os seus contratantes haviam pedido a ela que não fosse trabalhar.
"Eu liguei para vários contatos e disse que poderia trabalhar de luva, de máscara, como fosse. Só preciso trabalhar. Poder ficar em casa é um luxo. Tem muito trabalhador se arriscando a pegar o vírus e que vai morrer, mesmo, porque o Brasil nunca pensa no pobre", desabafa. Após ela ter anunciado que reduziria o valor da diária de R$ 160 para R$ 110, dois contratantes pagaram o valor reduzido sem que ela precise ir trabalhar. Jennifer ficou emocionada com o gesto, mas ainda não sabe como poderá pagar as contas e colocar comida na mesa caso a situação se agrave.
Cenário macroeconômico desfavorável
O alto índice de informalidade do mercado de trabalho brasileiro só é comparável, em anos recentes, aos piores momentos da crise econômica dos anos 1980. Especialistas ouvidos pela DW Brasil atribuem o cenário atual a uma combinação de fatores, que passam pela escalada do desemprego a partir de 2015 e decisões políticas que fragilizaram os vínculos no mundo do trabalho, como a reforma trabalhista e a lei da terceirização.
As transformações, ocorridas no contexto da estagnação econômica iniciada há cinco anos, romperam uma trajetória de formalização que vinha sendo observada nos anos 2000. Nessa década, 93% dos empregos criados eram formais. Entretanto, 63,7% dos postos de trabalho abertos no período estavam no setor de serviços, de remuneração mais baixa, como lembra o professor de economia Ruy Braga, da USP.
"A construção de um mercado regulado de trabalho, que articulava emprego e cidadania salarial, com direitos e uma forte presença do poder público protegendo o trabalhador, tomou décadas e esteve muito associado ao projeto de industrialização do país", afirma. Em 2018, a participação da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro atingiu o menor patamar desde o final dos anos 1940: 11,3%. Nos anos 1980, a taxa chegou a se aproximar dos 30%.
"O horizonte de integração social via trabalho e direitos está se esfacelando. Temos uma parcela enorme da juventude exposta aos riscos desse modelo autoempreendedor popular sem uma formação profissional. Isso pode construir um mercado bastante desregulado, e até selvagem, mas não constrói um país, segregando as pessoas do acesso a direitos básicos, como a aposentadoria", complementa Braga.
A professora da área de Saúde do Trabalhador Márcia Bandini, da Unicamp, afirma que o Estado precisa formular medidas de amparo que podem variar da isenção de contas básicas ao auxílio financeiro efetivo para os setores mais vulneráveis. "Quando se criam tratativas diferentes com base nos vínculos que estão sendo precarizados, formam-se bolsões de proteção e bolsões de vulnerabilidade", diz a professora.
"Estamos falando de quem tem onde morar. Pensando em certas comunidades e até nos moradores de rua, deve haver um nível de atenção diferenciado. Essas pessoas precisam ser alcançadas por uma força-tarefa liderada pelo Estado com mobilização da sociedade para cuidar delas. Se não for assim, vamos asfixiar o sistema como um todo, porque não será possível fazer controle epidemiológico", alerta.
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