Como funciona uma ditadura? Tomando-se por base a experiência brasileira, o texto do Ato Institucional 5 prevê a possibilidade do Presidente da República decretar o recesso do Congresso Nacional, e, neste período, legislar em seu lugar, para todos os fins. E a base pra isso é assegurar a liberdade, a ordem democrática, o respeito à dignidade da pessoa humana (olha ela aí!), a luta contra a corrupção e afastar ideologias contrárias às tradições, dentre outros ‘objetivos’ mais. Também se diz expressamente que um governo "responsável pela execução daqueles objetivos e pela ordem e segurança internas não pode permitir que pessoas ou grupos anti-revolucionários contra ela trabalhem, tramem ou ajam, sob pena de estar faltando a compromissos que assumiu com o povo brasileiro”.
O mesmo AI-5 tem também outra parte interessante, ao prever que "no interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional [Olha mais um conselho aí!], e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais". Bem drástico. Claro, porque oriundo de um autêntico golpe de Estado, explícito, inequívoco. Golpe e ditadura, sim, mas pelo menos não pretendia parecer uma democracia.
Agora pensemos no que se vivencia hoje no Judiciário brasileiro. Hoje, você, cidadão, não tem qualquer garantia de que o que está escrito na Lei será aplicado, na medida em que o Judiciário pode não apenas afastar a lei — o que é legítimo, se devidamente fundamentado na inconstitucionalidade dela — mas simplesmente ignorar a existência dessa lei. E será um desafio hercúleo tentar comprovar que a lei foi ignorada, embora exista e esteja vigente. Isso acontece todos os dias, em todos os ramos judiciais. Por quê? Pode-se afirmar com simplicidade: porque estamos em flagrante momento de ditadura judicial, cujo nome mais usado é ativismo. Quem milita no direito sanitário, por exemplo, vê isso com clareza solar. A legislação de regência da matéria é sumariamente ignorada e relevante parcela do Poder Judiciário, com base no direito à saúde que ela considera irrestrito, independentemente do que esteja escrito na Constituição, nas leis ou nos regulamentos do Sistema Único de Saúde, concede o que entender adequado. E ao gestor público caberá simplesmente cumprir a decisão do Soberano, que não deve ser questionado, mas simplesmente obedecido.
Tudo isso já é conhecido por todos nós que respiramos os ares do Direito e da Justiça, e o tema é quase semanalmente suscitado pelo professor Lênio Streck em suas publicações aqui na revista Consultor Jurídico. Mas nesta terça-feira (7/10), veio a cereja do bolo: o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão criado para controle externo do Poder Judiciário, resolveu legislar e conceder aos seus beneficiários um aumento salarial de R$ 4.377,37, e sem incidência de imposto de renda e de plano de seguridade social. Limpinho. Líquido, como costumamos dizer. A Lei Complementar que prevê essa possibilidade, e que já se disse revogada pela Emenda Constitucional que instituiu o regime de subsídio, prevê também a necessidade de lei para a instituição do benefício, o famoso “nos termos da lei”. Mas quem se importa?! O Judiciário é soberano, quem pode questionar? E, se questionar, quem vai decidir? Bingo! O próprio Judiciário. E antes disso tudo teve a liminar que simplesmente ignorou a súmula absolutamente consolidada do mesmo tribunal, que para os reles serviçais da República é aplicada sem dó. Ah, importa registrar que a verba deferida não pode ser chamada de remuneração, ou de subsídio, senão fica submetida ao teto. Então, é ajuda de custo para moradia, mas se aplica inclusive a quem tem moradia no local onde está e de onde e inamovível, porque essa distinção é uma filigrana irrelevante.
O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), órgão também criado para controle externo, mas do Ministério Público, seguiu a mesma linha e também regulamentou o pagamento do mesmo benefício para todos os membros do Ministério Público. Cabe lembrar que o Judiciário ao menos dispunha da decisão judicial em seu favor, enquanto o Ministério Público nem isso. Mas é preciso garantir a simetria entre o Poder Judiciário e o Ministério Público. Confesso que nunca compreendi a contento essa tal simetria, adiantando que não se afigura suficiente o parâmetro o parágrafo 4º do artigo 129 da Carta Magna, especialmente para fins de fixação de subsídios (leia-se, especialmente, o inciso V do artigo 93, que prevê diferença entre 5% e 10%, afigurando-se legítimo e constitucional qualquer parâmetro aí inserido, conforme escolha da lei). Mas, seja como for, também aqui foi afastada a necessidade de lei que preveja qualquer pagamento de verba a qualquer pessoa remunerada pelo Estado Brasileiro (não os quero chamar de servidores públicos, porque não quero que pareça que há aqui qualquer objetivo de ofensa gratuita). A Lei Complementar que abre a brecha prevê o benefício, mas por ato do Procurador-Geral da República, vinculando só o Ministério Público da União e, principalmente, observado o requisito que lá consta, qual seja “lotação em local cujas condições de moradia sejam particularmente difíceis ou onerosas”. Em tempos de eleição é de se pensar que o país deve mesmo estar em crise, porque se reconheceu, de maneira objetiva e abstrata, que viver aqui na Terrinha, em qualquer lugar dela, representa uma condição de moradia particularmente difícil ou onerosa.
Há alguns outros probleminhas de somenos importância, como a autonomia dos entes federados, porque as resoluções se estendem a magistrados e membros do Ministério Público dos Estados. O probleminha diz respeito ao Pacto Federativo, que garante aos Estados autonomia para legislar para seus soberanos (estranho isso, né, soberano vinculado a alguma coisa?!). Ou seja, em suma, os tais Conselhos, órgãos da União (também aqui não há intenção de ofensa, apenas não encontrei outra qualificação mais exata) determinaram que os Estados paguem verbas que não estão previstas em lei estadual, e em valor que os Conselhos, órgãos da União, decidiram. Importa registrar que havia Estados da Federação que já previam em lei própria o pagamento dessa verba de ajuda de custo. Nesses casos, os Conselhos apenas alteraram as leis estaduais, determinando por si mesmos o valor a ser pago. E aí também tem um jogo de palavras interessante: o artigo 2º da Resolução do CNMP faz parecer que o valor do auxílio pago aos ministros do STF é apenas um parâmetro máximo; só que o parágrafo 2º do mesmo artigo enuncia que não, que na realidade todo mundo vai receber o limite máximo mesmo. E o CNJ limitou-se a dizer que seus valores não serão inferiores aos do CNMP, então, bingo! Máximo de novo.
O CNMP agiu em nome da preservação da simetria. O CNJ agiu em nome de preservar a unidade do Judiciário, porque havia patamares díspares pelo país, ou seja, valores diferentes pagos a esse título, nos casos em que havia lei que regulamentava a tal ajuda de custo. Todos sabem que há valores de remuneração, ou subsídio para os mais crédulos, diferenciados pelo país, em todas as carreiras “simétricas”, jurídicas ou não. Portanto, está dado o primeiro passo para que em breve os dois Conselhos determinem que essa diferença não ocorra mais, e que todo mundo pague, claro, o maior que existir. E nem se venha falar da necessidade de lei, pois aí está em jogo um valor muito maior, a simetria. Vejam, por oportuno, que há aí outro jogo de palavras: simetria não é necessariamente igual a isonomia... Bingo! Afastada a Súmula STF 339 para o caso.
Voltando ao início do texto, o afamado AI-5 previa que "no interesse de preservar a Revolução, o Presidente da República, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e sem as limitações previstas na Constituição, poderá suspender os direitos políticos de quaisquer cidadãos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos eletivos federais, estaduais e municipais”. É de se destacar a semelhança que há aqui, fazendo um jogo de palavras, pra aproveitar a lógica atual: ‘no interesse de preservar a simetria, o Judiciário e o Ministério, ouvidos seus respectivos Conselhos Nacionais, e sem as limitações previstas na Constituição (legalidade, teto constitucional, dentre outras), poderá editar atos que resguardem os direitos e prerrogativas de seus membros’. Viram a semelhança? Viram a natureza e o risco representado pelo precedente? Convido-os à reflexão.
Se a mesma ajuda de custo tivesse sido instituída por lei, por cada ente federado, observados os trâmites necessários à preservação do Pacto Federativo e da Separação de Poderes, seria possível questionar o mérito, a viabilidade constitucional do benefício, mas nesse caso a discussão seria outra. No entanto, a opção por se afastar a necessidade de lei, de forma ostensiva e aparentemente despreocupada, bem como o afastamento de súmula de jurisprudência absolutamente consolidada para qualquer servidor público geram inevitável consternação, ao nos fazer deparar com uma face do Poder que talvez não quiséssemos ver. Enfim, esses casos mostram-se realmente estarrecedores. E, principalmente, arrefecem a esperança dos cidadãos num país mais justo, democrático e de Instituições sólidas e respeitáveis. O que se mostra particularmente triste e desolador em tempos de eleição nacional, especialmente uma eleição tão enérgica como se mostra a atual. Vejamos como decidirá o Supremo Tribunal Federal nas provocações que lá já estão, e também em eventuais outras que vierem. A depender da decisão, será possível outra simetria com o já referido AI-5: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos.” Naquela ocasião, a ditadura militar impôs que o Judiciário deixasse de ser a última trincheira do cidadão. E o momento atual parece caminhar no mesmo sentido, só que agora, pasme-se, por opção.
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