Por Raul Haidar
A Instrução Normativa da Receita Federal nº 1.500, publicada no último dia 30 de outubro, com 114 artigos e 9 anexos, é praticamente um regulamento do Imposto de Renda para as pessoas físicas. Mas ainda permanece em vigor o Decreto federal 3.000/1999, com todos os seus 1.004 artigos, que ostenta o pomposo título de Regulamento do Imposto de Renda.
Como já demonstramos em nossa coluna de 30/6/2014 — clique aqui para ler — nossa Constituição não admite delegação de poder a quem não foi eleito pelo povo, a não ser observadas rigorosamente as limitações legais. Assim, o chefe do Poder Executivo tem o poder de sancionar e regulamentar as leis feitas pelo povo através do Legislativo.
Como disse Sobral Pinto no memorável Comício das Diretas, “todo poder emana do Povo e em seu nome deve de ser exercido”. Não bradava o jovem de pouco mais de 90 anos seu próprio texto: apenas repetia o que está no texto constitucional.
Não tendo o Executivo alterado o Regulamento por decreto, permanece seu texto em pleno vigor. A tal IN e outros atos administrativos (portarias, resoluções etc.) são atos a que se subordinam só os servidores do Fisco, ante sua submissão hierárquica aos chefes. Nós só nos curvamos diante da lei! Face ao exposto, qualquer pessoa que encontrar entre os mais de 100 artigos e respectivos anexos algo que não esteja previsto em lei, pode e deve procurar o Judiciário para a defesa de eventuais direitos que tenham sido prejudicados. Não estamos a incentivar litígio, mas a registrar a garantia constitucional do acesso à Justiça.
Quem atravanca o Judiciário são os três Poderes da República: o Legislativo, ao aprovar o que o Executivo apresenta por cumplicidade, comodismo ou preguiça mental — ou ainda por falta de conhecimento do que faz, incluídos seus assessores impostos pela cúpula partidária; o Executivo faz sua parte na galhofa (eis aqui o preciosismo, pessoal!) ao enviar projetos mal elaborados, sem adequados estudos, feitos às pressas nos laboratórios sinistros de gabinetes mal cheirosos. Não leva a sério seu trabalho, e chega a limitá-los a ensandecidas disputas pelo poder, onde o que interessa é a próxima eleição e, entre uma e outra, promessas que todos sabem que dificilmente serão cumpridas. Se o forem, isso só ocorrerá fora do prazo; e o Judiciário, o mais respeitável dos Poderes, deixa a desejar quanto à eficácia e rapidez de suas decisões. Ao manter solenidades, pompas e tratamentos medievais, parece viver ainda no século XIX, quando a Justiça era um favor de Deus, que El Rei, seu representante, concedia aos súditos.
Nesse quadro surgem as novas galhofas do tal leão, esse ridículo símbolo do Fisco brasileiro: os limites de dedução para dependentes e instrução no próximo ano: R$ 2.156,52 e R$ 3.375,83, respectivamente!
Trocando em miúdos: se o estimado leitor tiver um filho, poderá deduzir do seu rendimento para sustentar o fedelho R$ 179,71 por mês! Por extenso: cento e setenta e nove reais e setenta e um centavos! Isto é: R$ 6 por dia!
Se o fedelho estudar em colégio privado, o gasto admitido sobe um pouco: são mais R$ 281,31 por mês! Não vamos pedir aos leitores que façam cálculos: não dá para pagar UMA aula por dia, de um professor de primeiro grau que resida numa favela — ou “comunidade” como se diz hoje.
Mas, em compensação, a tabela de retenção do Imposto de Renda na fonte...Bem isso é outra galhofa.
O STF, no RE 388.312, negou o pedido de entidade sindical que pretendia obter a correção da tabela de retenção do Imposto de Renda de acordo com a variação da UFIR.
Com irritante frequência, temos procurado apoio em nossa luta por JustiçaTributária no preâmbulo da CF, onde garante-se que o nosso Estado democrático é “destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança (...), a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna (...)”.
Ora, ao não permitir a atualização monetária integral e automática dos valores da tabela, a legislação viabiliza a incidência do tributo não sobre o “rendimento”, mas sobre parcela do rendimento que não existe, posto que corroída pelo impacto inflacionário. Trata-se, portanto, de uma tributação de característica confiscatória, contrariando expressamente o que estabelece o artigo 150, inciso IV, da Constituição Federal.
A legislação do Imposto de Renda possuía normas expressas, até 1988, no sentido de que todos os valores expressos em moeda deveriam ser corrigidos anualmente, conforme a variação do custo de vida. Era a correção automática de todos os valores.
O voto do ministro Marco Aurélio, que ficou vencido, traz todos os ingredientes para que a verdadeira justiça se fizesse. O voto inteiro mereceria transcrição, mas limitemo-nos ao seguinte trecho:
Os princípios da legalidade, da capacidade contributiva e do não-confisco direcionam, a mais não poder, à atualização automática da tabela decorrente da lei em comento — nº 9.250/95 — mantendo-a com a mesma força normativa que tinha em 1995, e aí, cumpre notar a conversão dos débitos fiscais, das pessoas naturais, da expressão Ufir para reais (...)
Ora, se o poder público cobra correção monetária quando o particular vai pagar tributos em atraso, isso é uma declaração oficial de que existe uma inflação, uma perda do poder aquisitivo da moeda nacional que exige indexação, tenha isso o nome que se lhe queira dar.
Como diz ainda o ministro Marco Aurélio em seu voto, “o Estado não pode ludibriar, espoliar ou prevalecer-se da fraqueza ou ignorância alheia. Não se admite que tal ocorra nem mesmo dentro dos limites em que seria lícito ao particular atuar.”
Quando o cidadão assiste a uma demora de mais de oito anos na mais elevada corte de Justiça do país e constata que ela consagra a iniquidade e enaltece o confisco como forma de arrecadar imposto, chega-se a duvidar de que estamos num Estado Democrático de Direito.
Corrigir a tabela e também os valores dos abatimentos do Imposto de Renda é uma simples questão de justiça, para diminuir o confisco de que são vítimas os trabalhadores. Enquanto isso não acontecer, somos todos vítimas de um governo insensível, que usa e abusa da figura idiota do leão assaz galhofeiro.
Aliás, já que não vai dar para comprar um dicionário, registrem aí: galhofeiro é o mesmo que brincalhão, zombeteiro, gracejador. É o que zomba, desrespeita, trata com desdém. É o leão, sem dúvida.
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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