Indicadores apontam recorde nas mortes por intervenção policial em 2019. A execução sumária, segundo especialistas, é tolerada quase como uma política de segurança pública no estado. E parte da sociedade parece apoiar.
Oitenta tiros: a execução de um músico pelo Exército nacional virou símbolo da violência das forças de segurança no Rio
Os nove acusados pelos 80 disparos que levaram à morte o músico Evaldo Rosa e o catador Luciano Macedo no Rio de Janeiro, em abril, alegaram ter confundido o carro que levava as vítimas, em depoimentos prestados à Justiça Militar. Mais cedo, um veículo do mesmo modelo teria trocado tiros com os agentes do Exército. O argumento dos militares explicita a lógica operacional que se instaurou no estado com a maior letalidade policial do país. Atirar, avaliam especialistas, deixou de ser a última opção para virar regra.
"Vai ser difícil olhar para o rosto da minha filha e me lembrar de tudo. Não sei nem o que vou falar quando ela perguntar quem é o pai dela", desabafa Dayana Horrara da Silva, viúva do catador Luciano Macedo, em vídeo divulgado pela ONG Rio de Paz.
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Aos 27 anos e grávida de cinco meses, ela vai se juntar a tantas outras tantas famílias do Rio que buscam obter reparação do estado pela perda de seus parentes.
É a situação vivida até hoje pela família do pedreiro Amarildo, torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da Rocinha em julho de 2013. Em 2016, a Justiça do Rio condenou o governo do Rio a pagar R$ 3,5 milhões à família – R$ 500 mil pela viúva e cada um dos filhos –, mas a indenização ainda não saiu do papel.
O caso virou uma referência no debate público, fato que motivou o jornalista e sociólogo Leandro Resende a se debruçar sobre a recorrência do episódio no imaginário coletivo. No livro Cadê o Amarildo? O desparecimento do pedreiro e o caso das UPPs, que será lançado no dia 20 deste mês pela editora Baioneta, ele analisa o uso político feito pelos mais diversos atores e estima o impacto que o desaparecimento do pedreiro teve no projeto das UPPs.
"O caso mobiliza muito da nossa história e revela um preconceito inato que a opinião pública e autoridades têm ao lidar com populações negras de favelas, entendidas como desviantes. No Rio, criou-se essa ideia que determinados cidadãos estão sujeitos a determinados tipos de coisas por sua cor de pele ou endereço. Dentro e fora da academia, ouvi que estava dando cartaz para bandido, sendo que ele foi inocentado pelo Ministério Público, Polícia Civil e Tribunal de Justiça", comenta Resende.
Bolsonaro, Witzel e a licença para matar
A repercussão em torno do desaparecimento de Amarildo foi só o primeiro baque sofrido pelo projeto das UPPs no Rio. Com a grave crise econômica enfrentada pelo estado, a estrutura do projeto veio se fragilizando desde 2016, ano dos Jogos Olímpicos na cidade. A ambição de construir uma polícia cidadã foi abandonada, enquanto as mortes decorrentes de intervenção policial escalaram progressivamente.
O ano de 2018 registrou um recorde nesse indicador. Foram 1.534, o maior número desde 1998, quando teve início a série histórica do Instituto de Segurança Pública (ISP). Entre janeiro e março deste ano, houve 434 novos homicídios desse tipo – a maior ocorrência trimestral dos últimos 20 anos. Nesse período, ocorreu a chacina do Fallet-Fogueteiro, quando PMs mataram 13 homens durante uma incursão em favelas no centro da cidade. Nove deles estavam em uma casa e foram mortos por 30 tiros de fuzil, com marcas de execução, segundo os laudos da necropsia.
As estatísticas coincidem com o início de novos governos, nas esferas federal e estadual, de políticos que se elegeram com discursos favoráveis ao arbítrio policial. Entre eles Jair Bolsonaro, em seu próprio programa de governo: "Policiais precisam ter certeza de que, no exercício de sua atividade profissional, serão protegidos por uma retaguarda jurídica. Garantida pelo Estado, através do excludente de ilicitude. Nós brasileiros precisamos garantir e reconhecer que a vida de um policial vale muito e seu trabalho será lembrado por todos nós”.
O pacote anticrime do ministro da Justiça Sergio Moro formalizou a proposta. Pelo texto enviado ao Congresso, fica anistiado ou pode ter redução de pena "o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem". Em entrevista concedida dois dias após as mortes decorrentes dos 80 disparos no Rio, Moro argumentou que o caso em questão, ao qual se referiu como "um incidente bastante trágico", não configura legítima defesa e, portanto, não seria contemplado pelas modificações propostas em seu projeto.
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Bolsonaro seguiu na mesma linha ao se pronunciar apenas quatro dias depois do episódio. "O Exército não matou ninguém não. O Exército é do povo. A gente não pode acusar o povo de ser assassino. Houve um incidente", afirmou. Alegando que o crime será apurado na esfera militar, o governador Wilson Witzel se recusou a comentar o caso. "Não sou juiz da causa. Não estava no local. Não era a Polícia Militar. Quem tem que avaliar todos esses fatos é a administração militar. Não me cabe fazer juízo de valor e nem muito menos tecer qualquer crítica a respeito dos fatos", declarou.
A mesma postura foi adotada pelo governador após a chacina que deixou 13 vítimas pela polícia. "O que aconteceu no Fallet-Fogueteiro foi uma ação legítima da Polícia Militar. Agiu para defender o cidadão de bem. Não vamos mais admitir qualquer bandido usando armas de fogo, de grosso calibre, fuzis, pistolas, granadas, atentando contra a nossa sociedade. Vamos continuar agindo com rigor”, disse, antes mesmo da investigação da Polícia Civil sobre as mortes.
Uma das propostas de Witzel que teve maior repercussão durante a campanha foi a utilização de atiradores de elite para abater criminosos armados com fuzis. "A polícia vai mirar na cabecinha e... fogo", afirmou ao jornal Estado de S. Paulo. No final de março, o governador disse ao jornal O Globo que os chamados snipers já atuam em ações da polícia, sem divulgação oficial. Na mesma entrevista, não deu importância ao número recorde de mortes por policiais nos três primeiros meses do ano. "Zero preocupação. Eu confio na polícia e tenho dito isso para eles". Na última terça-feira (30/04), Witzel posou empunhando uma metralhadora de guerra apreendida em uma operação no Complexo do Alemão, ao lado de comandantes da PM.
A polícia como sintoma
A socióloga Silvia Ramos, coordenadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), condena o que chama de cultura do confronto, praticada pela Polícia Militar no Rio e assimilada pelo Exército durante a intervenção federal do ano passado. Ela acredita que os posicionamentos de Bolsonaro e Witzel contribuem para o aumento das mortes por policiais, mas considera prematuro associar o número recorde de mortes por policiais no início deste ano ao novo governo.
"O indicador já vinha em uma crescente desde 2017. Os policiais sabem que, de quatro em quatro anos, entra um novo governador e a orientação pode não ser a mesma. A carreira deles dura 30 anos, e a maioria não vai querer sujar a ficha por causa de uma orientação política. Até agora, o Witzel não apresentou qualquer plano de governo concreto para a Segurança Pública", comenta.
Para o coronel da reserva da Polícia Militar do Rio Robson Rodrigues, ex-chefe do Estado-Maior da corporação, a ação arbitrária dos agentes não deve ser avaliada isoladamente. "A lógica de extermínio é o ponto final de uma estrutura que permite esse tipo de conduta. Grande parte da população aprova isso. Políticos buscam maior aprovação no eleitorado, e a gente vem nessa espiral", diz Robson, pesquisador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (LAV/Uerj).
"A polícia é um sintoma, lá na ponta, dos nossos problemas de sociedade. Nossas instituições nunca foram capazes de diminuir diferenças sociais e promover uma cultura de paz. Sobra para os segmentos mais pobres, que enfrentam a tragédia do cotidiano e ainda são vítimas de um mecanismo míope, que vê neles o inimigo a ser eliminado. A própria política é incapaz de superar esses problemas pela retórica, pois os discursos são muito violentos", analisa.
Especialista na atuação das milícias e grupos de extermínio no Rio, o sociólogo José Cláudio Alves sustenta a tese de que a execução sumária se tornou política de segurança pública no estado. Ele afirma que não é possível diferenciar os arbítrios praticados por policiais no exercício da função e milicianos. "O Estado tem uma face legal, na qual fala em direitos humanos e outras coisas bonitas, e uma face ilegal, do crime organizado, em que utiliza esses agentes para cumprir o outro papel", argumenta.
"Há um código explícito e tácito na eleição de Witzel e Bolsonaro: agora, vai se matar. Isso foi aceito pela sociedade como um todo. É a expressão do poder do extermínio chegando às esferas mais elevadas do poder da nação, a partir de um grande laboratório de mais de cinco décadas. A polícia tem a prática da execução sumária em várias cidades, mas o Rio é a grande vitrine", pontua.
Fonte: https://www.dw.com/pt-br/a-cultura-do-exterm%C3%ADnio-no-rio/a-48586260
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