Eduardo Escorel|15 jun 2022_09h00
Documentários podem se tornar imprescindíveis de diversas maneiras – alguns, ao estrearem, graças à atualidade de seu tema, vencendo a sina usual desse gênero de cinema ser a celebração de um réquiem, conforme se tornou corriqueiro dizer. Exemplos recentes de filmes relevantes são O Território (2022), de Alex Pritz, exibido em abril no encerramento do Festival É Tudo Verdade, e Babi Yar. Contexto (2021), de Sergei Loznitsa, exibido no 11º Olhar de Cinema, em Curitiba, entre 1 e 9 de junho, com sessões presenciais e transmissão via streaming.
Quanto ao cinema brasileiro recente, pobre em matéria de filmes essenciais, estreará amanhã (16/6) Amigo Secreto (2022). Coprodução Brasil, Alemanha e Holanda, o documentário aborda o período de 2014 a 2022, concentrando-se em eventos políticos ocorridos entre 2017 e 2020. Levando em conta os entraves burocráticos e a restrição de recursos no Brasil, tamanha atualidade só pode ter sido possível por ser coproduzido com outros países, sem esquecer a convicção da roteirista e diretora, além de produtora, Maria Augusta Ramos.
Os oito anos abordados em Amigo Secreto têm início com uma legenda sobre a investigação do Ministério Público e da Polícia Federal que revelou o esquema de corrupção envolvendo altos funcionários da Petrobras e políticos, operação que se tornou célebre com o nome de Lava Jato. E o filme chega ao fim com a declaração do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas feita este ano, segundo a qual o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi vítima de julgamento parcial e teve violados seus direitos políticos, civis e a privacidade. Também em forma de legendas, constam no final de Amigo Secreto as informações de que “todos os processos movidos pela Lava Jato contra Lula foram arquivados pela justiça” e o resultado da pesquisa Datafolha de 26 de maio passado em que Lula lidera com 48% as intenções de voto para a eleição presidencial de outubro. Faltando um mês e meio para o início oficial da campanha, é difícil imaginar um filme com maior potencial de impacto do que Amigo Secreto, ao recuperar, em 2h11, a trama que levou ao resultado trágico da eleição presidencial de 2018 e os desdobramentos políticos nos anos subsequentes.
O desaparecimento do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Araújo Pereira no Oeste do estado do Amazonas, em 5 de junho, não pode ter deixado de abalar de modo profundo quem já assistiu a O Território. Embora situado em Rondônia, distante do Vale do Javari onde Phillips e Pereira continuavam sumidos até ontem (14/6), o documentário de Pritz aborda uma situação recorrente em toda a Região Amazônica – serras elétricas derrubando a floresta, madeireiros ameaçando menos de duzentos Uru-eu-wau-wau que sobrevivem rodeados por fazendas e o assassinato de Ari Uru-eu-wau-wau, encontrado morto, em abril de 2020, no distrito de Jaru. Apresenta ainda o trabalho heroico e a coragem da ativista ambiental Ivaneide Bandeira, a Neidinha. Os primeiros vinte minutos de O Território são narrados enquanto decorre a campanha presidencial de 2018. O então candidato que veio a ser eleito é visto em um celular declarando: “Podem ter certeza, se eu chegar lá, não vai ter dinheiro para ONG. Todo cidadão vai ter uma arma de fogo dentro de casa. Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena e quilombola.” Aos dezessete minutos, quando o Jornal Nacional anuncia o candidato eleito, Neidinha levanta bruscamente do sofá diante da televisão e, apoiada em um carro na frente de sua casa, de costas para a câmera, parece estar chorando.
‘O Território’ aborda a devastação da Floresta Amazônica – Foto: Divulgação
Babi Yar. Contexto remete de modo direto, por sua vez, à invasão da Ucrânia iniciada em fevereiro, à guerra que não se sabe quando e como terminará, às mortes e à destruição deliberada das cidades pela artilharia russa. Isso, apesar do documentário tratar da ocupação alemã, durante a Segunda Guerra Mundial, da chamada Ucrânia soviética, ocorrida em 1941, além de incluir também a tomada posterior de Kiev pela tropa soviética, no final de 1943. Fiel ao seu procedimento usual, Loznitsa dispensa narração em voz off. Opta, neste filme, por legendas informativas. Feito com filmagens e fotografias de arquivo restauradas com esmero e muito bem sonorizadas com ruídos, ambientes e vozes, Babi Yar. Contexto deixa claro semelhanças existentes entre a ocupação alemã e a posterior libertação soviética, sendo, além disso, premonitório quanto à invasão russa deste ano. O tema central, porém, é o extermínio da população judia. Em setembro de 1941, os ocupantes alemães, segundo uma legenda ajudados pela “Polícia Auxiliar ucraniana e o Regimento de Polícia do Sul, sem qualquer resistência da população local, mataram a tiros 33.771 judeus na ravina de Babi Yar, no noroeste de Kiev.”
“Parece slasher movie, tal o horror”, escreve a jornalista Ivonete Pinto: “Babi Yar. Contexto consegue a proeza de nublar tudo o que já vimos em torno de imagens documentais de guerra, incluindo o Holocausto […] este mais recente inventário de horrores nos prova que ainda é possível o choque diante de corpos em putrefação, pertencentes ao que foram um dia pessoas e que acabaram assim por uma decisão de gabinete.” (Artigo disponível em https://www.cinemaescrito.com/2022/06/11o-olhar-2022-babi-yar-contexto/.)
Cena do filme ‘Baby Yar’ – Foto: Divulgação
Com Leandro Demori, Carla Jiménez, Regiane Oliveira e Marina Rossi, jornalistas do The Intercept Brasil e, na época, do El País Brasil, Amigo Secreto rememora a investigação sobre a trama jurídica e política que teve, entre outras consequências a prisão de Lula em 7 de abril de 2018, levando sua candidatura a presidente da República a ser barrada pelo TSE com base na Lei da Ficha Limpa. Até esse momento, o ex-presidente aparecia como favorito para a eleição presidencial a ser realizada naquele ano, segundo pesquisa de intenção de voto do Datafolha, divulgada em 2 de dezembro de 2017.
Um dos personagens principais desse processo, Sergio Moro, ex-ministro da Justiça, vem se tornando cada dia mais irrelevante, o que tornou meio ociosa a atenção dedicada a ele em Amigo Secreto. Os verdadeiros protagonistas, porém, permanecem em cena – Lula e o atual presidente da República.
Os diferentes percursos de ambos estão bem representados – no caso de Lula, a partir do prólogo que inclui cerca de 5 minutos do seu depoimento ao então juiz federal Sergio Moro, dado em maio de 2017, no qual nega ter “sido beneficiado pelo grupo OAS com vantagem indevida de cerca de 2 milhões e 424 mil reais, propinas que seriam constituídas de um repasse” a ele “de um imóvel consistente em um apartamento tríplex […] e à realização de reformas nesse apartamento”. Segundo o Ministério Público, essa vantagem indevida estaria relacionada “a acertos de corrupção em contratos públicos, inclusive da OAS com a Petrobras”. Em seguida, Lula afirma no documentário que “nunca, nunca foi me oferecido antes da data que eu fui lá ver e quando eu fui eu não gostei. É isso. […]”.
Lula diante de Sérgio Moro durante julgamento – Foto: Divulgação
Esse mesmo depoimento a Moro é retomado adiante, aos 26 minutos e 36 segundos de Amigo Secreto, por 3 minutos. Nesse trecho Lula nega que por ter “nomeado, ou indicado, ou pelo menos dado a palavra final para indicação ao Conselho de Administração da Petrobras de Paulo Roberto Costa, Renato de Souza Duque, Nestor Cuñat Cerveró e Jorge Luiz Zelada” tenha tido “conhecimento dos crimes por eles praticados ou desse esquema criminoso”: “Não. Nem eu, nem o senhor, nem o Ministério Público, nem a Petrobras, nem a Imprensa, nem a Polícia Federal. Todos nós só ficamos sabendo quando foi pego no grampo a conversa do [doleiro, Alberto] Youssef com o Paulo Roberto”, responde Lula.
Ainda segundo Lula declara por sua própria iniciativa a Moro logo a seguir: “O que eu estou percebendo desde que foi criado o tal do ‘contexto’, sabe, da caçamba feita pelo Ministério Público na questão do Power Point, quem está sendo julgado é o estilo de governar, é um jeito de governar. Se as pessoas que estão fazendo essa denúncia querem saber como é que se governa, elas têm que sair do Ministério Público, entrar em um partido político, disputar as eleições e ganhar para elas saberem como é que se governa. Governar democraticamente, com oposição da imprensa, com oposição dos sindicatos, com direito de greve, fortalecendo o Ministério Público, fortalecendo a Polícia Federal, fortalecendo todas as instituições de fiscalização deste país. Então, essas perguntas, todas, elas estão questionando um jeito de governar […].”
Ironia a registrar é Moro ter seguido, aparentemente, a orientação de Lula ao abandonar a magistratura para ser ministro da Justiça e ter tentado sem sucesso, ao menos por enquanto, ser candidato a um cargo eletivo.
Aos 58 minutos e 11 segundos, Amigo Secreto retoma a palavra de Lula, desta vez durante 4 minutos e 39 segundos extraídos das mais de duas horas de sua primeira entrevista à imprensa após estar preso há 384 dias, dada a Florestan Fernandes Júnior, de El País, e Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em 26 de abril de 2019. Resulta desconcertante, nesse caso, que as duas únicas perguntas incluídas na edição do documentário se refiram a sentimentos pessoais do ex-presidente, levando-o a chorar ao falar da morte do seu neto. Em suas respostas, porém, ele não perde a oportunidade de falar do que lhe parece mais conveniente: “[…] Eu tenho tanta obsessão de desmascarar o Moro, desmascarar o [Deltan] Dallagnol e a sua turma, e desmascarar aqueles que me condenaram que eu ficarei preso cem anos, mas eu não trocarei a minha dignidade pela minha liberdade. Eu quero provar a farsa montada. […] Eu não tenho ódio. Não guardo mágoa porque na minha idade quando a gente fica com ódio a gente morre antes. […]”; e ainda: “[…] então, eu lamento, lamento o desastre que está acontecendo neste país e é por isso que eu me mantenho em pé. O dia que eu sair daqui eles sabem que eu estarei com o pé na estrada para junto com esse povo levantar a cabeça e não deixar entregar o Brasil aos americanos. Acabar com esse complexo de vira-lata. Eu nunca vi um presidente bater continência para a bandeira americana. […]”.
É inequívoca a falta de uma conversa inédita com Lula em Amigo Secreto. Mas, como o pedido de uma entrevista foi feito e negado, só nos resta lamentar.
Maria Augusta não põe em questão as declarações de Lula colhidas no material de arquivo. Acata o que ele diz, deixando escapar a oportunidade de aprofundar um debate de ideias que poderia engrandecer o documentário e torná-lo ainda mais relevante. Por fidelidade estrita ao seu método pessoal, elaborado em preciosa filmografia, Maria Augusta se impõe permanecer na posição de observadora, sem interagir com seus personagens, tomando imagens e declarações por seu valor de face, confiando em a que maneira de serem articuladas será capaz por si só de produzir os significados que ela deseja.
Esse método resulta traiçoeiro, por vezes, deixando armadilhas pelo caminho, das quais Amigo Secreto nem sempre escapa. Um momento em que isso ocorre é quando o advogado criminal Tofic Simantob diz, aos 44 minutos e 22 segundos, ser “evidente que já havia um esquema de corrupção que remonta talvez à própria criação da Petrobras, na década de 1950. É um esquema de corrupção que envolvia o pagamento de propina para funcionários da estatal e uma parte para partidos políticos financiarem suas campanhas. Isso não foi o PT que inventou, isso vinha de todos os governos anteriores”. Por não serem arguidas, a impressão que resulta das palavras de Simantob é que o documentário não só admite, mas justifica a corrupção na Petrobras durante o governo Lula.
Outro exemplo dos riscos resultantes da postura de quem observa sem comentar está em uma das legendas finais, citada acima. Caberia ser mais preciso ao informar que “todos os processos movidos pela Lava Jato contra Lula foram arquivados pela justiça.” Na verdade, depois de as duas condenações em primeira instância, decididas por Moro em Curitiba, terem sido anuladas pelo Supremo Tribunal Federal e Lula ter recuperado seus direitos políticos, os processos enviados ao Distrito Federal prescreveram.
Lula após sair da prisão – Foto: Divulgação
Quanto aos outros dois processos aos quais o ex-presidente respondia, ambos foram suspensos em 2021 pelo ministro Ricardo Lewandowski, o que é diferente de terem sido arquivados.
A presença do atual presidente em Amigo Secreto se limita à habitual sucessão de afirmações deploráveis que deixam no ar a pergunta para a qual nem o documentário, nem ninguém até agora deu resposta satisfatória: como foi possível 57.797.847 brasileiros e brasileiras elegerem para presidente da República, em 2018, um indivíduo tão desqualificado, para dizer o mínimo? A outra interrogação que atormenta diz respeito ao resultado da eleição de outubro próximo.
Resta saber se Amigo Secreto terá a repercussão que merece, vencendo as barreiras do mercado exibidor e contribuindo para reduzir a incerteza predominante.
Amigo Secreto estreará amanhã (16/6) conforme informado acima, em 49 cinemas de 24 cidades, com 85 sessões diárias, em 19 estados do país, nas principais capitais do mercado exibidor, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador, Curitiba, Vitória, entre outras. Quanto ao circuito, nada a reclamar. Aguardemos qual será o público atraído.
Eduardo Escorel
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