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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

EMBARGOS CULTURAIS - Para François Rabelais, o processo é algo desprezível




Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
 

O presente ensaio trata do ceticismo jurídico em François Rabelais (1494-1553), médico e escritor renascentista francês, autor de Gargantua e Pantagruel. Para o historiador da literatura, Otto Maria Carpeaux:

“Rabelais é um humanista muito especial: em vez de ficar entre os livros, sai para o ar livre, descobrindo o povo, a realidade. É um goliardo, saindo de escola e taverna para o novo mundo do Humanismo.”[1]

Rabelais conhecia o funcionamento da Justiça, antes de viver em Paris e em Montpellier (onde estudou Medicina) frequentou o curso de Direito em Poitiers. 
Correspondeu-se com Erasmo, considerava-se herético e insubordinado como Lutero ou Calvino. Seu humor é fino, cético, irreverente, e seu nome dá origem a adjetivo. Uma atitude “rabelaisiana” traduz um humor crítico, ácido, mordaz.

Rabelais imaginou um gigante beberrão, Gargântua, cujo filho, também imenso, Pantagruel, vive uma série de aventuras, a começar por sua própria educação, que traz inovação na pedagogia da época, a exemplo da educação física, da prática de esportes. 
A visão rabelaisiana dos tribunais e do jurídico chega a ser hilariante. Imaginou um tal Juiz Bridoye, que sentenciava nos processos pela sorte nos dados, Alea Judiciorum pelo que, diz Rabelais:
“(...) Notam que a sorte é muito boa, honesta, útil e necessária à solução dos processo e dissenções.”[2]

O Juiz Bridoye julgava com base na sorte porque gaudent brevitate moderni (os modernos gostam da brevidade). Rabelais faz o juiz explicar seu procedimento, em passo muito espirituoso, que reproduzimos em seus aspectos essenciais:
“Faço como vós, senhores, como é uso na judicatura, ao qual o nosso direito manda sempre sujeitar-nos (...). Tendo bem visto, revisto, lido, relido, passado e folheado as queixas, adiamentos, comparações, comissões, informações, antecipações, produções, alegações, contestações, réplicas, tréplicas, pareceres, despachos, interlocuções, retificações, certidões, protelações, escrituras, agravos, ressalvas, ratificações, confrontações, acareações, libelos, apostilas, cartas reais, compulsórias, declinatórias, antecipatórias, evocações, remessas, contra-remessas, baixas, confissões, suspensões, prosseguimentos, e outros incidentes, provocados por uma ou outra parte (...), coloco na extremidade do gabinete toda a papelada do réu e tiro-lhe a sorte (...). Isso feito, coloco a papelada do autor (...) na outra extremidade da mesa (...). E então uso os meus dadinhos (...). Tenho outros dados bem bonitos e harmoniosos, os quais uso, (...). quando a matéria é mais clara, quer dizer: quando a papelada é menor.”[3]

Um interlocutor, Trianquamelle, duvidando da excelência do método, opôs objeções, perguntando:
“(...) meu amigo, já que pela sorte dos dados fazeis os vossos julgamentos, por que não o fazer quando as partes litigantes comparecem perante vós, sem mais delongas? Do que vos servem os documentos e demais papéis contidos nos autos?”[4]

Além do uso dos dados, o inusitado juiz ainda protelava a decisão, justificando:
“(...) Eu detenho, dilato e adio o julgamento, a fim de que o processo, bem ventilado, esmiuçado e debatido, chegue, pela passagem do tempo, à maturidade, e de tal sorte, pelo que após advenha, se torne mais docemente suportado pelas partes condenadas (...).”[5]

Mais adiante, o loquaz Bridoye explica como nascem os processos e como chegam à perfeição:
“Um processo em seu nascimento me parece, como a vós outros, senhores, informe e imperfeito. Como um urso ao nascer não tem patas, nem peles, nem pêlo, nem cabeça, não passa de um pedaço de carne, rude e informe. A ursa, à força de amamentá-lo, o leva à perfeição dos membros (...). Assim vejo eu (...) nascer o processo, em seu começo informe e sem membros. Não tem mais que uma ou duas peças; não passa de um feio animal. Mas quando fica bem grosso, bem ensacado, bem cheio, podemos considerá-lo como verdadeiramente membrado e formado.”[6]

E continua, com mordacidade impressionante, atirando contra todos os personagens do mundo jurídico:
“Como vós outros, senhores, à semelhança dos meirinhos, porteiros dos auditórios, bedéis, oficiais de diligências, chicanistas, procuradores, comissários, advogados, inquiridores, tabeliães, notários, escreventes e juízes, (...) que, sugando bem forte e continuamente as bolsas das partes, engedram em seus processos cabeças, pés, garras, bico, dentes, mãos, veias, artérias, nervos, músculos, humores. São os sacos de papelada (...).”[7]

O fragmento mais bombástico do período dá conta da venalidade dos operadores jurídicos que menciona. Rabelais hostiliza todo o pessoal do foro, sem excetuar ninguém, a propósito do sugando bem forte e continuamente as bolsas das partes. Para Rabelais o processo é algo desprezível, e assim se manifestou:
“A verdadeira etimologia do processo é que ele deve ter os sacos cheios.”[8]

O Juiz Bridoye julgava com os dados mesmo nos feitos criminais. É o que sugere o seguinte passo de Rabelais:
“Está bem, mas, meu amigo, perguntou Trianquamelle, como procedes em ação criminal, quanto a parte culpada é presa flagrante crimine? – Como vós outros, senhores, respondeu Bridoye, deixo e ordeno ao querelante dormir bastante para a instauração do processo; depois, comparecendo à minha presença, trazendo boa e jurídica prova de seu sono (...). Afinal, encontro o processo bem formado por informação e perfeito em seus membros. Volto então aos meus dados.”[9]

Para Rabelais, o Juiz Bridoye pelo menos era sincero, afinal:
“(...) conhecendo as antinomias e contrariedades das leis, editos, costumes e ordenações; ciente da fraude do caluniador infernal, o qual muitas vezes se transfigura em mensageiro da luz por seus ministros, perversos advogados, conselheiros, procuradores e outros que tais, transforma o negro em branco, faz fantasticamente parecer a uma e outra parte que ela está com o direito (como sabeis, não há causa tão má que não encontrasse advogado, se assim não fosse, jamais haveria processos no mundo).”[10]

Realmente, Rabelais preferia a sorte na condução dos processos, defendendo-a:
“Como dizem os talmudistas; a sorte não contém mal algum; somente pela sorte, na ansiedade e dúvida dos humanos, se manifesta a vontade divina.”[11]

Ao criar um juiz como Bridoye, que julgava os casos pelos dados, Rabelais criticou a magistratura sob duas perspectivas: sugeriu o pouco comprometimento do juiz de seu tempo (que julgava por dados) além de procurar evidenciar a imprestabilidade da Justiça convencional de sua época (uma vez que a sorte poderia resolver as demandas). Ainda, ao descrever o Juiz Bridoye, Rabelais aproveitou para provocar os atores do universo jurídico.


[1] Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, pág. 597.


[2] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 577.


[3] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 578.


[4] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 580.


[5] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 582.


[6] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 588.


[7] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 589.


[8] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 590.


[9] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, págs. 590 e 591.


[10] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 598.


[11] Rabelais, Gargântua e Pantagruel, pág. 598.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é consultor-geral da União, doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP
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Revista Consultor Jurídico, 23 de setembro de 2012

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