'Ele foi seduzido'
Um belo dia, aprendemos (aprendemos?) na escola que existe voz ativa, existe voz passiva etc. E aí vêm aqueles exercícios, muitas vezes feitos e resolvidos mecanicamente ("Passe para a voz passiva"; "Passe para a voz ativa"). E lá vão os alunos: "O rato roeu a roda" (voz ativa) se transforma em "A roda foi roída pelo rato" (voz passiva); "O estabelecimento foi fechado pela prefeitura" (voz passiva) se transforma em "A prefeitura fechou o estabelecimento" (voz ativa).
Sim, é importante dominar esses mecanismos etc., mas ficar nisso é muito pouco. É preciso mostrar as diferenças que há entre uma construção e outra. Grosso modo, na voz ativa o sujeito é agente, ou seja, é o executor do processo expresso pelo verbo, o que ocorre, por exemplo, em "O policial agrediu o estudante", em que "o policial" é sujeito e agente. Na voz passiva, o sujeito é paciente, ou seja, é o alvo do processo expresso pelo verbo, o que ocorre, por exemplo, em "O estudante foi agredido pelo policial", em que "o estudante" é sujeito paciente.
Mas isso ainda é pouco. Entender o valor que tem cada uma das construções é um bom caminho para ampliar os horizontes sobre o assunto. Lembro que, na preparação da seleção brasileira para a Copa de 1986, num amistoso contra os juniores do Peru, disputado em São Luís, o jogador Éder deu uma cotovelada num garoto do belo país andino, ainda no primeiro tempo. O árbitro (Arnaldo Cézar Coelho) o expulsou inexoravelmente. No dia seguinte, Telê, o treinador da seleção, defenestrou Éder do elenco canarinho. Pois bem. Um jornal deu o seguinte título: "Telê corta Éder"; outro deu este: "Éder cortado por Telê".
E então, caro leitor, como fica isso? Essencialmente, os dois jornais deram a mesma notícia, mas o sabor e a cor da informação não são os mesmos. O primeiro (que pôs a oração na voz ativa) enfatizou o agente ("Telê"), ou seja, quem manda; o segundo (que pôs a oração na voz passiva) deu destaque ao alvo, ao paciente ("Éder"), ou seja, o degolado.
Às vezes, a ênfase sobre o paciente se dá de outra maneira, sem que se ponha a oração na voz passiva. Nessas horas, fala alto o talento do escritor, como se vê em "As linhas do destino nas mãos a mão apagou", da antológica "O Homem Velho", de Caetano Veloso. O mestre escreveu a oração na voz ativa, mas enfatizou o alvo, o objeto ("As linhas do destino nas mãos") do processo verbal. Como? Invertendo a ordem "normal" dos termos, ou seja, colocando o objeto no início da oração.
Tente escrever ou dizer isso na voz passiva e veja se o efeito se mantém. Vamos lá: "As linhas do destino nas mãos foram apagadas pela mão". Que tal? Cruz-credo!
Pois bem. Ontem, o advogado de um padre de Niterói (RJ) disse que seu cliente (indiciado por estupro de vulnerável) caiu em uma armadilha "malévola" etc. "Ele foi seduzido", disse o advogado. Conscientemente ou não, o causídico proferiu a frase na voz passiva e, com isso, pôs o seu cliente ("Ele") como sujeito paciente, alvo, isto é, vítima. Na voz ativa ("A menina o seduziu", "A menina seduziu o padre" etc.), o efeito certamente não seria o mesmo, ou seja, a vitimização do padre seria menos "branda".
Só faltou ao advogado lançar mão de um modismo, um tanto tosco, como muitos modismos: dizer que o padre foi "abusado" pela menina. Bem, se a frase terminasse em "abusado", a coisa seria diferente, talvez mais próxima do real, a julgar pelo que já se viu e já se leu dessa história, mais uma macabra história dos nebulosos caminhos de algumas sotainas. Em tempos de renúncia papal... É isso.
Pasquale Cipro Neto é professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".
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