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domingo, 31 de maio de 2015

Ensino religioso - Sábia decisão do TJ/SC sobre leitura bíblica obrigatória, imitando precedentes


Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2013.075796-5, de Içara
Relator: Des. Sérgio Roberto Baasch Luz
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI MUNICIPAL N. 2.965/2011 DO MUNICÍPIO DE IÇARA. TEXTO LEGAL QUE ESTABELECE A LEITURA DIÁRIA DE VERSÍCULOS BÍBLICOS, ANTES DO INÍCIO DAS AULAS, NAS ESCOLAS DA REDE MUNICIPAL DE ENSINO. LIBERDADE RELIGIOSA. VIOLAÇÃO. FAVORECIMENTO DE DETERMINADA RELIGIÃO EM DETRIMENTO DAS DEMAIS. ENSINO RELIGIOSO QUE DEVE RESPEITAR A PLURALIDADE. PREVALÊNCIA DA LAICIDADE DO ESTADO. LEI MUNICIPAL EM CONFRONTO COM OS ARTS. 4º E 164, § 1º, DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
Embora o comando constitucional permita o ensino religioso nas escolas públicas, é importante remarcar que o constituinte impôs aos entes federados uma postura de neutralidade em matéria religiosa. Logo, sendo o Brasil um Estado eminentemente laico, é seu dever, no que toca à ministração do ensino religioso, manter a ordem democrática no sentido de assegurar a igualdade de todos os segmentos religiosos no prestar do ensino, zelar para que essa modalidade de ensino não constitua mais um meio de dissenções ou discriminações, e assegurar, por fim, que o ensino religioso signifique o pleno exercício da própria liberdade de religião em todos os seus aspectos.
"Onde a história destes últimos séculos não parece ambígua é quando mostra a interdependência entre a teoria e a prática da tolerância, por um lado, e o espírito laico, por outro, entendido este como a formação daquela mentalidade que confia a sorte do regnum hominis mais às razões da razão que une todos os homens do que aos impulsos da fé. Esse espírito deu origem, por um lado, aos Estados não confessionais, ou neutros em matéria religiosa, e ao mesmo tempo tempo liberais, ou neutros em matéria política; e, por outro, à chamada sociedade aberta, na qual a superação dos contrastes de fé, de crenças, de doutrinas, de opiniões, deve-se ao império da áurea regra segundo a qual minha liberdade se estende até o ponto em que não invada a liberdade dos outros, ou, para usar as palavras de Kant, "a liberdade do arbítrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal" (que é a razão)." (BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992. p. 216)
Vistos, relatados e discutidos estes autos de Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2013.075796-5, da comarca de Içara (Vara de origem << Nenhuma informação disponível >>), em que é requerente Ministério Público do Estado de Santa Catarina, e requeridos Prefeito Municipal de Içara e outro:
O Órgão Especial decidiu, por votação unânime, julgar procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 2.965/2011 do Município de Içara. Custas na forma da lei.
O julgamento, realizado em 1º de abril de 2015, foi presidido pelo Exmo. Sr. Desembargador Nelson Schaefer Martins, e dele participaram os Exmos. Srs. Desembargador Monteiro Rocha, Desembargador Fernando Carioni, Desembargador Torres Marques, Desembargador Rui Fortes, Desembargador Marcus Tulio Sartorato, Desembargador Cesar Abreu, Desembargador Ricardo Fontes, Desembargadora Maria do Rocio Luz Santa Ritta, Desembargador Jaime Ramos, Desembargador Alexandre d'Ivanenko, Desembargador Lédio Rosa de Andrade, Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho, Desembargador Jorge Luiz de Borba, Desembargador Jânio Machado, Desembargadora Sônia Maria Schmitz, Desembargador Ronei Danielli, Desembargador Gaspar Rubick, Desembargador Trindade dos Santos, Desembargador Luiz Cézar Medeiros, Desembargador Vanderlei Romer e Desembargador Eládio Torret Rocha. Funcionou como representante do Ministério Público o Dr. Basílio Elias de Caro.
Florianópolis, 7 de abril de 2015.
Sérgio Roberto Baasch Luz
RELATOR

RELATÓRIO
Cuida-se de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada pelo Ministério Público do Estado de Santa Catarina em face da Lei n. 2.965/2011, do Município de Içara, cujo texto "dispõe sobre a leitura de versículo bíblico em escolas da rede municipal de ensino e dá outras providências", ao argumento de que referido Diploma afronta os arts. 4º, caput, 16 e 164, § 1º, da Constituição do Estado de Santa Catarina, os quais guardam consonância com os arts. 5º, inciso VI, 19, inciso I, 37, caput, e 210, § 1º, da Constituição Federal.
Asseverou, em resumo, que a dita Lei Municipal ao impor às escolas públicas municipais de Içara a obrigação de realizarem diariamente a leitura de, no mínimo, um versículo bíblico ao início das atividades de cada período letivo, ofende os princípios constitucionais da liberdade de religião, da laicidade do Estado, da isonomia e da impessoalidade, assim como o direito à matrícula facultativa na disciplina de ensino religioso.
Devidamente notificado, o Prefeito do Município de Içara manteve-se inerte (fl. 22), sendo-lhe, então, nomeado curador especial (fl. 30), que defendeu a norma impugnada às fls. 34-35.
Seguidamente, o feito remetido a douta Procuradoria-Geral de Justiça que, em parecer da lavra do Dr. Basílio Elias de Caro, opinou pela procedência do pedido. (fls. 37-46)
É o relatório.
VOTO
Ataca o representante ministerial a constitucionalidade da Lei n. 2.965/2011, do Município de Içara, cujo texto "dispõe sobre a leitura de versículo bíblico em escolas da rede municipal de ensino e dá outras providências", ao argumento de que o referido Diploma está em descompasso com a previsão contida nos arts. 4º, caput, 16 e 164, § 1º, da Constituição do Estado de Santa Catarina, os quais guardam consonância com os arts. 5º, inciso VI, 19, inciso I, 37, caput, e 210, § 1º, da Constituição Federal.
Para melhor compreensão da controvérsia, faz-se mister a transcrição da norma questionada, Lei Municipal n. 2.965/2011:
Art. 1º Ficam as escolas da rede pública municipal de ensino, obrigadas a efetuarem com seus alunos, a leitura diária, de pelo menos um versículo bíblico.
Art. 2º O disposto no artigo anterior, dar-se-á no início das atividades de cada período escolar (manhã, tarde e noite), cabendo ao professor(a) de cada disciplina inicial do período, o cumprimento desta lei.
Art. 3º Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação.
Dessume-se de uma leitura do texto legal, que a questão versada na presente ação gravita em verificar se tais comandos representam violação à liberdade religiosa ou não.
Vale frisar que este é um tema bastante delicado por envolver sentimentos pessoais ligados à crença religiosa, e que por isso deve ser tratado com muita cautela.
Com a instituição da República em 1891, o Estado Brasileiro desvencilhou-se do Estado Confessional, em que estado e religião eram unos, e passou a adotar o modelo de separação atenuada, modelo em que o Estado emite um julgamento positivo sobre a religião em geral, embora predominem os objetivos laicos, legalmente estabelecidos, sobre os objetivos religiosos, e não haja opção por determinada crença. (BASTOS, Celso. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva. p. 178)
Hodiernamente, no Brasil a separação entre Estado e Religião tem seu arquitrave na dicção do art. 19, inciso I, da Lei Maior, que dispõe:
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público; (...).
José Afonso da Silva, a respeito das várias prescrições nucleares nos verbos do indigitado dispositivo, explica:
Estabelecer cultos está em sentido amplo: criar religiões ou seitas, ou fazer igrejas ou quaisquer postos de prática religiosa, ou propaganda. Subvencionar cultos religiosos está no sentido de concorrer, com dinheiro ou outros bens da entidade estatal, para que se exerça a atividade religiosa. Embaraçar o exercício dos cultos religiosos significa vedar, ou dificultar, limitar ou restringir a prática, psíquica ou material, de atos religiosos ou manifestações de pensamento religioso. (Curso de Direito Constitucional Positivo. 27. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 251-252)
Nesse contexto, infere-se que a interferência, direta ou indireta, do Estado em matéria de religião é defesa, isto significa que ao Estado não é permitido estabelecer cultos religiosos, construir templos, conceder subvenção a cultos etc, pois tais práticas consistiriam, evidentemente, na oficialização da religião, constitucionalmente proibida.
Não obstante, o legislador constituinte tratou de estabelecer algumas exceções, as quais decorrem do prefalado modelo de separação atenuada, assim, a relatividade ou atenuação da separação Estado-Religião resulta da expressa dicção de vários preceitos constitucionais, dentre os quais, para o caso, destaca-se a liberdade do ensino religioso, prevista no art. 210, § 1º, da Constituição Federal, e que se encontra reproduzido no art. 164, § 1º, da Constituição Estadual, assim como a liberdade de manifestação de pensamento, nesta compreendida a liberdade de religião, admitida no art. 5º, inciso VI, da Constituição Federal, e que na Constituição Estadual se encontra estratificada no art. 4º.
Por ser pertinente, transcrevo os reportados dispositivos, primeiro os da Carta Política do Estado de Santa Catarina e em seguida os da Constituição da República:
Art. 4º O Estado, por suas leis e pelos atos de seus agentes, assegurará, em seu território e nos limites de sua competência, os direitos e garantias individuais e coletivos, sociais e políticos previstos na Constituição Federal e nesta Constituição, ou decorrentes dos princípios e do regime por elas adotados, bem como os constantes de tratados internacionais em que o Brasil seja parte, (...).
(...)
Art. 164. A lei complementar que organizar o sistema estadual de educação fixará, observada a lei de diretrizes e bases da educação nacional, os conteúdos mínimos para o ensino fundamental e médio, de maneira a assegurar, além da formação básica:
(...)
§ 1° O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
(...)
Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
§ 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
É de se ponderar, todavia, que as cláusulas de exceção devem ser interpretadas de forma restritiva, isto é, em eventual embate entre a regra geral e a cláusula de exceção, quando os fatos se subsumem à norma excedendo a cláusula de exceção, e, portanto vão além das ressalvas constitucionais permitidas, prevalecerá a regra geral.
Destarte, são essas regras de interpretação que condicionam o intérprete e balizam a aplicação do preceito do § 1º do art. 164 da Constituição do Estado, assim como o § 1º do art. 210 da Constituição da República, pelo seu caráter de norma excepcional.
Com efeito, embora o comando constitucional permita o ensino religioso nas escolas públicas, é importante remarcar que o constituinte impôs aos entes federados uma postura de neutralidade em matéria religiosa. Logo, sendo o Brasil um Estado eminentemente laico, é seu dever, no que toca à ministração do ensino religioso, manter a ordem democrática no sentido de assegurar a igualdade de todos os segmentos religiosos no prestar do ensino, zelar para que essa modalidade de ensino não constitua mais um meio de dissenções ou discriminações, e assegurar, por fim, que o ensino religioso signifique o pleno exercício da própria liberdade de religião em todos os seus aspectos.
Nesse desiderato, permito-me abrir um parêntese para trazer ao palco do debate percucientes reflexões traçadas pelo jus-filósofo Norberto Bobbio no artigo intitulado "As razões da tolerância", no qual defendeu o emprego da tolerância como instrumento para os indivíduos viverem pacificamente em meio a miscelânea de crenças. No alto da sua lucidez pontificou o filósofo italiano:
(...) pode-se aduzir em favor da tolerância uma razão moral: o respeito à pessoa alheia. Também nesse caso, a tolerância não se baseia no renúncia à própria verdade, ou na indiferença frente a qualquer forma de verdade. Creio firmemente em minha verdade, mas penso que devo obedecer a um princípio moral aobsoluto: o respeito à pessoa alheia. Aparentemente, trata-se de um caso de conflito entre razão teórica e razão prática, entre aquilo em que devo crer e aquilo que devo fazer. Na realidade, trata-se de um conflito entre dois princípios morais: a moral da coerência, que me induz a pôr minha verdade acima de tudo, e a moral do respeito ou da benevolência em face do outro.
Assim como o método da persuasão é estreitamente ligado à forma de governo democrático, também o reconhecimento do direito de todo homem a crer de acordo com sua consciência é estreitamente ligado à afirmação dos direitos de liberdade, antes de mais nada ao direito à liberdade religiosa e, depois, à liberdade de opinião, aos chamados direitos naturais ou invioláveis, que servem como fundamento ao Estado liberal. De resto, ainda que nem sempre historicamente, pelo menos na teoria o Estado liberal e o Estado democrático são interdependentes, já que o segundo é o prolongamento necessário do primeiro; nos casos em lograram se impor, eles ou se mantêm juntos ou caem juntos.
Se o outro deve chegar à verdade, deve fazê-lo por convicção íntima e não por imposição. Desse ponto de vista, a tolerância não é apenas um mal menor, não é apenas a adoção de um método de convivência preferível a outro, mas é a única resposta possível à imperiosa afirmação de que a liberdade interior é um bem demasiadamente elevado para que não seja reconhecido, ou melhor, exigido. A tolerância, aqui, não é desejada porque socialmente útil ou politicamente eficaz, mas sim por ser um dever ético. Também nesse caso o tolerante não é cético, porque crê em sua verdade. Tampouco é indiferente, porque inspira sua própria ação num dever absoluto, como é o caso do dever de respeitar a liberdade do outro. (A era dos direitos. Trad. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 1992. p. 209)
E mais adiante Bobbio conclui:
Onde a história destes últimos séculos não parece ambígua é quando mostra a interdependência entre a teoria e a prática da tolerância, por um lado, e o espírito laico, por outro, entendido este como a formação daquela mentalidade que confia a sorte do regnum hominis mais às razões da razão que une todos os homens do que aos impulsos da fé. Esse espírito deu origem, por um lado, aos Estados não confessionais, ou neutros em matéria religiosa, e ao mesmo tempo tempo liberais, ou neutros em matéria política; e, por outro, à chamada sociedade aberta, na qual a superação dos contrastes de fé, de crenças, de doutrinas, de opiniões, deve-se ao império da áurea regra segundo a qual minha liberdade se estende até o ponto em que não invada a liberdade dos outros, ou, para usar as palavras de Kant, "a liberdade do arbítrio de um pode subsistir com a liberdade de todos os outros segundo uma lei universal" (que é a razão). (op. cit. p. 216)
Sob essas orientações, a tolerância, nesse caso, deve ser praticada de forma a evitar que tendências religiosas disseminem conflitos, discriminação ou qualquer ato de violência.
Com todo respeito ao cristianismo e também ao livro sagrado deste segmento religioso, que é a Bíblia, entendo que o Brasil, um país laico desde a proclamação da República, e que assegurou novamente na sua Constituição Federal de 1988 a separação entre Estado e Religião, respeitando, porém, a diversidade de opiniões religiosas e sem esquecer de garantir o direito daqueles que em nada creem, os ateus, não pode admitir a sobreposição de determinadas religiões em detrimento de outras. Assim é que o ensino religioso nas escolas públicas deve ser plural, e não se basear ou fazer apologia às doutrinas de certa religião pelo fato de contar com maior número de adeptos, a tolerância deve prevalecer, de modo que todos os segmentos sejam agraciados e respeitados.
Esta é a inteligência do art. 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional:
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.
A título de reforço argumentativo, calha como luva a lição do Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais Kildare Gonçalves Carvalho, afirmando que "não se poderá instituir, nas escolas públicas, o ensino religioso de uma única religião, nem se pretender doutrinar os alunos a qualquer fé religiosa, ou a obrigá-los a se matricular". (Direito constitucional: teoria do estado e da constituição. 15. ed. rev., atual. e ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 784)
O constitucionalista Alexandre de Moraes ressalta que o ensino religioso deverá adequar-se às demais liberdades públicas, dentre as quais a liberdade de culto religioso e a previsão do Brasil como um Estado laico, assinalando, outrossim, que não se poderá instituir nas escolas da rede pública o ensino religioso de uma única religião, e tampouco será admitido doutrinar os alunos a essa ou àquela fé; o ensino religioso deverá constituir-se de regras gerais sobre religião e princípios básicos da fé, e também deverá garantir a liberdade das pessoas em matricularem-se ou não nesta disciplina, tendo em vista que a liberdade religiosa consiste de igual sorte na liberdade ao ateísmo. (Direito constitucional. 30. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2014. p. 49)
Nessa toada, cumpre-me transcrever as pertinentes reflexões consignadas no parecer do ilustre Procurador de Justiça Basílio Elias de Caro a respeito do tema:
O Poder Público, desse modo, não deve interferir no exercício da liberdade religiosa, impondo ou proibindo crenças e cultos, como também não poderá privilegiar determinada orientação religiosa em detrimento de outras, ainda que professadas majoritariamente no âmbito social.
Vale dizer que, apesar da inegável tradição cristã do povo brasileiro, o Estado convive com múltiplas religiões e deve tratá-las de forma igualitária e impessoal, sejam elas cristãs ou não, mantendo-se "indiferente às diversas igrejas que podem livremente constituir-se [...]". (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.)
(...)
Tecidas essas considerações, embora a Bíblia desfrute de valor inestimável para a civilização ocidental e seja o livro orientador de um amplo espectro de religiões cristãs que encontram grande número de adeptos no povo brasileiro, é texto religioso de valor sagrado apenas para o cristianismo.
Destarte, ao determinar que as escolas da rede municipal de ensino realizem a leitura diária de, pelo menos, um versículo bíblico no início de cada período letivo, a Lei n. 2.965/2011, do Município de Içara, gera um fator discrímem em relação às demais religiões, sob os auspícios do Poder Público, e também para com aqueles que não possuem nenhuma crença religiosa, que são igualmente titulares do direito de seguir ou não os preceitos de determinada religião.
Anote-se que não se combate a leitura de trechos bíblicos ou de qualquer outro livro religioso no âmbito escolar, a título de fonte cultural e de conhecimento, até porque tais textos são obras milenares e patrimônio histórico-cultural da humanidade. O que não deve ocorrer é a imposição compulsória, pelo Poder Público, de tal atividade, quanto mais restringi-la aos textos sagrados do cristianismo, como o fez a Lei n. 2.965/2011, do Município de Içara.
Em outros termos, na medida em que a Lei Municipal n. 2.965/2011 obriga a leitura de textos bíblicos nas escolas e, concomitantemente, deixa de prever a leitura, por exemplo, do Tora (Livro do Judaísmo) ou do Corão (Livro do Islamismo), o Estado acaba por privilegiar as religiões da vertente cristã em detrimento das demais, como também, de certa forma, impõe aos alunos e professores o "seguimento" de determinada crença, o que afronta os princípios constitucionais da liberdade religiosa, da laicidade do Estado brasileiro, da isonomia e da impessoalidade, bem como o direito à matrícula facultativa nas disciplina de ensino religioso, todos consagrados nas Constituições Estadual e Federal. (fls. 43/44/45)
Os Tribunais de Justiça dos Estados de Minas Gerais e do Rio de Grande do Sul já tiveram a oportunidade de declarar inconstitucionais leis municipais que continham previsões idênticas, confira-se:
ADIN - Inconstitucionalidade da Lei Municipal 5060, de 1º/10/2002, de Governador Valadares que dispõe sobre a leitura diária obrigatória de versículo bíblico nas escolas da rede municipal, quando o ensino religioso constituirá disciplina à parte e será facultativo nos termos do artigo 200, parágrafo único da CE. (TJMG, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.0000.00.323319-4/000, rel. Desembargador Schalcher Ventura, j. 14.4.2004)
ADIn. DETERMINAÇÃO DE LEITURA DA BÍBLIA ANTES DO INÍCIO DAS AULAS NAS ESCOLAS MUNICIPAIS EM CALENDÁRIO LETIVO. Violação ao princípio da liberdade religiosa ao privilegiar uma. Arts. 5º, "caput" e inc. VI, CF e art. 8º, CE. AÇÃO JULGADA PROCEDENTE. (TJRS, Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 70017748831, rel. Desembargador Paulo Augusto Monte Lopes, j. 5.2.2007)
Como visto, a norma constitucional, entre as exceções atinentes à liberdade de religião, assegurou o ensino religioso nas escolas públicas, ressalvando, no entanto, o direito do aluno de frequentar a disciplina ou não. Daí que, sendo o ensino religioso contemplado no texto constitucional como disciplina específica dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, mas de matrícula facultativa, torna-se injustificável a imposição diária de leitura de, pelo menos, um versículo bíblico, fora do dia e horários preestabelecidos para que seja ministrada aquela disciplina, devendo, por consequência, a lei ora questionada ser declarada inconstitucional.
Não é dispendioso lembrar, ademais, que o responsável pela leitura da passagem bíblica, nos termos do art. 2º da Lei Municipal n. 2.965/2011, é o professor(a) de cada disciplina em que o período inicia. Isso significa que o aludido diploma legal não viola somente a liberdade religiosa dos alunos ao favorecer a religião cristã, mas também a do professor, ao passo que se encontra compelido a ler os versículos bíblicos quando for o docente responsável por iniciar o período letivo, ainda que não seja adepto do cristianismo.
Destarte, por mais louvável que seja a lei impugnada sob o ponto de vista de incentivo a leitura e de acesso aos conhecimentos históricos e de tantos ensinamentos contidos na Bíblia, no aspecto constitucional, de outra banda, tal norma, ao meu sentir, viola os artigos 4º e 164, § 1º, da Constituição Estadual, pois, como dito, o Estado brasileiro é laico e não se lhe permite impor aos alunos de escolas públicas o ensinamento contido em livro de determinada religião em desfavorecimento das demais.
Pelo exposto, voto no sentido de julgar procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 2.965/2011, do Município de Içara, pois seu texto contraria os arts. 4º e 164, § 1º, da Constituição Estadual.

É o voto.

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