"Você consegue
imaginar nunca ter ouvido essa música antes e perceber qual é a estranha
fruta pendurada no choupo? Há alguma coisa reveladora quando você a
escuta, e aquela imagem de olhos arregalados e boca distorcida salta na
direção do ouvinte." Nessa frase, a crítica cultural Emily J. Lordi
descreve o poder específico de uma canção que ainda choca, 80 anos
depois de ter sido gravada.
Em 20 de abril de 1939, a cantora de
jazz Billie Holiday (nascida em 1915, sob o nome de Eleanora Fagan)
entrou num estúdio com uma banda de oito músicos para gravar Strange Fruit
(Fruta Estranha). Essa chocante música sobre os horrores dos
linchamentos nos Estados Unidos não foi apenas o maior sucesso de Billie
Holiday, mas também se tornaria uma das mais influentes canções de
protesto do século 20 – e que continua a nos dizer coisas sobre
violência racial nos dias de hoje.
Em 1999, ela foi escolhida pela revista Time como a "canção do século", e a história de como Strange Fruit foi concebida tornou-se lendária. Originalmente um poema chamado Bitter Fruit,
ela foi escrita pelo professor judeu Abel Meeropol, sob o pseudônimo
Lewis Allen, em resposta aos linchamentos de negros em Estados do sul
dos Estados Unidos.
"Eu escrevi Strange Fruit porque odeio os linchamentos,
odeio injustiça e odeio as pessoas que os perpetuam", disse Meeropol, em
1971. Ele nunca testemunhou um linchamento, mas acredita-se que ele
tenha composto a canção depois de ver a perturbadora foto do linchamento
de Thomas Shipp e Abram Smith, em 1930 em Indiana, feita pelo fotógrafo
Lawrence Beitler. Na época em que o poema foi publicado, os
linchamentos haviam começado a diminuir – mas fotos como a de Beitler
colocaram essas imagens explícitas na consciência da opinião pública.
Pouco depois da publicação, Meeropol transformou o
poema numa música. Ela foi cantada em reuniões de sindicatos e até mesmo
no Madison Square Garden, pela cantora de jazz Laura Duncan. Dizem que
foi lá que Robert Gordon, então gerente do clube de jazz Café Society,
ouviu Strange Fruit, em 1938. Ele a mencionou para Barney Josephson, fundador do clube, e Meeropol foi convidado a tocá-la para Billie Holiday.
'Não houve nenhum aplauso'
William Duffy, co-autor da autobiografia de Holiday, Lady Sings the Blues
(A Senhora Canta o Blues), disse uma vez: "Holiday não canta músicas;
ela as transforma". Holiday, seu músico Sonny White e o arranjador Danny
Mendelsohn trabalharam duro por três semanas antes de estrearem a
renovada Strange Fruit no Café Society. Em seu livro Strange Fuit: the Biography of a Song
(Strange Fruit: a Biografia de uma Canção), de 2001, o escritor David
Margolick sugere que o clube, com sua política de integração completa,
era "provavelmente o único lugar na América onde Strange Fruit poderia ter sido cantada e apreciada".
Para
garantir que ela pudesse mesmo ser apreciada, Holiday e Josephson
criaram condições específicas para as apresentações. Seria a última
música do repertório, haveria silêncio absoluto, nenhum serviço de bar, e
as luzes seriam diminuídas, com exceção de um único facho de luz sobre o
rosto de Billie Holiday. Como disse Josephson: "As pessoas tinham que
se lembrar de Strange Fruit, tinham que sentir seus corpos queimando por dentro".
O que aconteceu na primeira noite em que Holiday interpretou Strange Fruit
no Café Society antecipou o tipo de resposta que a canção teria quando
fosse lançada comercialmente. "Na primeira vez que eu a cantei, eu achei
que houvesse algo de errado... Não houve nenhum aplauso. Aí, uma pessoa
começou a bater palmas, de um jeito nervoso. E, de repente, todo mundo
estava aplaudindo", disse Holiday em sua autobiografia. Ouvi-la cantar
sobre "o repentino cheiro de carne queimada", minutos depois de suas
baladas de jazz, era algo perturbador. Meeropol escreveu: "Ela nos deu
uma interpretação incrível, a mais dramática e poderosa, que poderia
sacudir o público e tirá-lo de sua complacência em qualquer lugar".
Enquanto
a canção tornava-se um número regular de seu repertório, Holiday
presenciou uma série de diferentes reações, de lágrimas a pessoas
deixando a sala e racistas gritando abusos. Emissoras de rádio nos
Estados Unidos e no exterior baniram a música, e a gravadora de Billie
Holiday, Columbia Records, recusou-se a gravá-la. Quando ela estava em
turnê, alguns proprietários de casas de shows tentaram convencê-la a não
apresentar a canção, por medo de afastar ou enfurecer parte da plateia.
Não era apenas a natureza política da canção que
mexia com quem a ouvia, mas a maneira com que Holiday a interpretava, um
jeito frequentemente descrito como inquietante. Lordi argumenta em seu
livro Black Resonance: Iconic Women Singers and African Amerian Literature
(Ressonância Negra: Mulheres Cantoras Icônicas e Literatura
Afro-Americana) que isso era resultado de escolhas deliberadas que
Billie Holiday havia feito. Ela disse à BBC Culture: "Há uma verdadeira
estética minimalista em sua gravação que chama atenção para como a letra
da música é impressionante... Há uma raiva quente na forma como ela
divide as sílabas e canta a palavra 'drop'. Mas também existe uma
qualidade profunda de um lamento na interpretação de Holiday".
O que é tão impressionante a respeito de Strange Fruit
é o fato de que ela deixou uma marca permanente na sociedade americana
logo depois de seu lançamento. Samuel Grafton, colunista do jornal New
York Post, escreveu sobre a canção: "Mesmo depois da décima vez que você
a ouvir, ela o fará piscar e se segurar na cadeira. Mesmo agora,
enquanto penso na música, o cabelo na minha nuca se arrepia, e eu tenho
vontade de bater em alguém. E eu acho que sei em quem".
Strange Fruit não foi a primeira música popular a lidar com a questão de raça. Black and Blue, de Fats Waller, veio dez anos antes, e Lead Belly gravou The Bourgeois Blues no mesmo mês em que Holiday gravou Strange Fruit. Mas Strange Fruit
destaca-se entre as canções de protesto devido a seu conteúdo explícito
e seu subsequente sucesso comercial. Tad Hershorn, um arquivista do
Instituto Rutgers de Estudo sobre Jazz, disse à BBC Culture: "Foi uma
canção de protesto tão 'tapa na cara' que realmente deu a ela fama fora
do [bairro negro nova-iorquino] Harlem... Realmente deixou a cantora e o
público sem lugar para se esconder".
Chamado às armas
Essa
ousada confrontação ajudou a galvanizar um movimento que acabaria
alterando o curso da história dos Estados Unidos. Ativistas contra
linchamentos levaram Strange Fruit a congressistas para
encorajá-los a propor um viável projeto de lei contra essa violência.
Uma crítica publicada na revista Time referiu-se à canção como "uma
grande peça de propaganda musical da NAACP [associação em defesa de
negros nos EUA]". Ahmet Ertegun, que mais tarde fundaria a gravadora
Atlantic Records, chamou a música de "uma declaração de guerra, o começo
do movimento em defesa de direitos civis".
Strange Fruit
também trouxe a seus autores uma atenção indesejada. Em 1940, Meeropol,
que era socialista, foi convocado para testemunhar num comitê
investigando comunismo e foi questionado se o Partido Comunista dos EUA
havia lhe dado algum dinheiro para que ele compusesse Strange Fruit.
O jornalista Johann Hari sugere que, enquanto histórias sobre o uso de
drogas por Holiday já circulavam, sua primeira apresentação de Strange Fruit a colocou no radar de Harry Anslinger, o notório chefe do Departamento Federal de Narcóticos.
Para alguns, era impossível separar Strange Fruit
e a vida pessoal de Holiday: os aspectos de sua biografia que fizeram
dela a encarnação da heroína trágica do jazz são a fonte da qualidade
melancólica de sua voz. Apesar do fato de que Holiday nunca testemunhou
um linchamento (ao contrário do que mostra o filme de 1972, Lady Sings the Blues, com Diana Ross), Strange Fruit
ainda evocava a injustiça racial que ela acreditava ter matado seu pai,
Clarence, que não conseguiu obter tratamento num hospital do Texas.
Mas, enquanto Strange Fruit ia se separando
da vida pessoal de Billie Holiday ao longo das décadas, a música também
se distanciou do horror específico do linchamento. "Ela acabou
representando o racismo de uma forma geral", David Margolick diz à BBC
Culture. "Uma vez ou outra sempre existe um momento terrível, mas o
linchamento tornou-se uma espécie de metáfora, e nesse sentido a música
tornou-se mais metafórica do que literal ao longo das décadas."
Talvez seja por isso que anos mais tarde, segundo Margolick, Meeropol sugeriu que Strange Fruit
era uma canção que "pertencia aos anos 1930". Sua influência, porém, se
espalhou por décadas. As canções associadas com o movimento por
direitos civis dos anos 1960 são menos explícitas que Strange Fruit
– mas Margolick argumenta que ela "condicionou as pessoas que mais
tarde cantariam músicas de protesto nos anos 1960 e lhes ensinou o
impacto que uma forte canção pode ter".
Muitos músicos reinterpretaram, fizeram samples e adaptaram Strange Fruit,
sendo a mais famosa versão gravada por Nina Simone em 1965 – enquanto
Kanye West usou trechos da versão de Simone em sua música Blood on the Leaves,
de 2013. Em 2017, a cantora britânica Rebecca Ferguson anunciou que só
aceitaria o convite para cantar na posse do presidente Donald Trump se
ela pudesse cantar Strange Fruit. Para Lordi, o poder
interminável da canção vem da forma com que ela "destila a violência
racial de forma tão clara. Ela é uma abreviação de 'Qual é a canção que
indicia de forma mais poderosa o legado continuado da violência racial
neste país [EUA] e pelo mundo todo?'".
Em 2002, Strange Fruit foi incluída no
Registro Nacional da Biblioteca do Congresso dos EUA, ficando assim
imortalizada como uma canção de grande significado no patrimônio musical
dos Estados Unidos. Holiday morreu em 1959, e Meeropol em 1986 – mas
sua colaboração continuou viva, sem que seu poder de chocar tenha
diminuído. Ela inspirou músicos a cantar sobre injustiça com franqueza e
a consciência de que uma música pode ser um ímpeto atemporal em favor
de mudanças sociais.
"Existe algo nessa música que ainda é muito
radioativo", diz Margolick. "Ela continua relevante, porque a questão da
raça ainda é relevante. Está nas primeiras páginas dos nossos jornais
todos os dias. Os impulsos de que [Meeropol] falava seguem muito
presentes entre nós."
Letra original de Strange Fruit
Southern trees bear a strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.
Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.
Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-48437563
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/vert-cul-48437563
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