25 de julho de 2019, 14h34
Por Soraia Mendes, Augusto Souza e Sandro Henrique Silva Halfeld Barros
Infelizmente falar a respeito de uma “crise do sistema político”, seja sob qual ângulo de análise for, tem se tornado quase que uma espécie de lugar comum, tanto no Brasil como em muitos outros lugares do mundo. E, de modo particular em nosso país, uma das chaves de leitura do significado deste colapso encontra-se normalmente na mera contraposição discursiva entre o que é rotulado como “velha política” e o que propõem-se ser a “nova política”.
A necessidade da “nova política” é muitas vezes definida, principalmente por quem a defende, pela simplória aversão ao modus operandi, classificado como típico da “velha política”, de construção da base de apoio ao Executivo nas Casas Legislativas. A “nova política” seria, portanto, o oposto de um modo de agir do Palácio do Planalto lastreado na distribuição de cargos a parlamentares em troca da aprovação de projetos em curso no Senado Federal e na Câmara dos Deputados.
Não temos dúvidas a respeito do caráter corrosivo que esse “troca-troca” representa ao sistema político. Por outro lado, desde nossa perspectiva, a engenharia política entre Executivo e Legislativo baseada nesta “repartição de cadeiras” na Esplanada dos Ministérios não é a única forma de corrupção — aqui tomada em um sentido lato — existente no Brasil.
Nada é mais velho dentre as práticas corruptivas brasileiras, por exemplo, do que a manipulação de emendas parlamentares para os fins de obtenção de sustentação política no Congresso Nacional[1]. Atos de corrupção que, em nosso olhar, não podem mais ser enquadrados (quando o são) somente dentro dos contornos do discurso de responsabilidade política, ainda que com caráter criminal.
Vejamos.
Para adequação típico-formal ao crime de corrupção ativa, é necessário o ato de “oferecer” ou “prometer” vantagem indevida, que poderá ser de qualquer natureza (patrimonial ou não). Exige-se que o sujeito ativo atue com o dolo específico de determinar o sujeito passivo (agente público no exercício de suas funções) a praticar (ou a omitir-se, ou retardar) ato de ofício (entendido como qualquer um incluído na esfera de competência daquele).
No caso que colocamos em tela, o caráter indevido da vantagem (elemento normativo do tipo) decorre do fato de que a liberação de emendas parlamentares em valores superiores ao percentual mínimo obrigatório confere ao parlamentar benefício decorrente da apropriação de capital político advindo da destinação de recursos públicos direcionados a responder aos anseios de sua base eleitoral. O que provoca um inegável desequilíbrio nas eleições.
Importante sublinhar que por “vantagem indevida” há de se entender qualquer vantagem ilícita obtida pelo agente, inclusive de natureza extrapatrimonial. Sendo evidente que o beneficiamento de seu próprio eleitorado mediante a destinação de recursos públicos provenientes de emendas concedidas pelo Poder Executivo como contrapartida a apoio a propostas de interesse do governo significa indubitável proveito pessoal (e, portanto, ilícito) ao parlamentar contemplado com a benesse.
E não se diga que o congressista ou a congressista que atua dentro de um esquema como o que estamos descrevendo pode justificar seu “modo de agir” ancorando-se em suposto interesse do “povo de sua terra”, pois o destino da vantagem é, em regra, aos seus cantões “eleitorais”. Ou seja, a “vantagem” obtida em troca de “apoio” a um dado projeto de lei na Casa Legislativa, em última instância, tem reflexo eleitoral, já que coloca esse ou essa parlamentar em condições muito mais vantajosas em qualquer pleito. O recebimento de “vantagens”, nestes casos, é, portanto, um verdadeiro privilégio que se traduz em fato gerador de desigualdade no processo de escolha livre pelo voto, este, sim, do “povo”.
A contrariedade à lei, assim, não repousa na simples concessão das emendas em si, até mesmo porque se trata de modalidade de planejamento e execução orçamentária admitida expressamente pelo ordenamento jurídico, desde que de forma genérica e não condicionada. Mas na utilização de tal mecanismo como modo de cooptação de apoio político do Congresso mediante o manejo de recursos destinados a obras e projetos indicados pelos próprios congressistas que, ao fim e ao cabo, obtêm um “lucro extra” nas disputas por quaisquer cargos eletivos. Eis aí a relação promíscua entre os Poderes Executivo e Legislativo, tão característica da “velha política” e que pouco ou nada difere do loteamento de órgãos e ministérios entre partidos que compõem a base aliada do governo.
A liberação de emendas parlamentares como contrapartida ao apoio a determinado projeto de lei ou de emenda à Constituição, por outro lado, representa, ademais, nítida ofensa ao livre exercício da atividade parlamentar. Não se trata, pois, de uma pura e simples “liberação de emendas parlamentares” realizada de forma genérica. Resumindo-se, sim, ao uso de um expediente destinado a influenciar o sufrágio parlamentar em relação a uma matéria específica, subjugando o exercício da atividade legiferante por meio do rateio de cotas orçamentárias (o que, por vezes, onera ainda mais os cofres públicos pelo ensejo que abre para a necessidade de aprovação de créditos suplementares).
É preciso escrever, e em letras garrafais se possível for, que é dever do parlamentar, e da parlamentar, “exercer o mandato com dignidade e respeito à coisa pública e à vontade popular, agindo com boa-fé, zelo e probidade”, bem como “examinar todas as proposições submetidas a sua apreciação e voto sob a ótica do interesse público” (artigo 3º, incisos IV e VI, do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, por exemplo)[2]. Ora, a liberação de emendas parlamentares como contrapartida ao voto favorável a determinado projeto de lei ou de emenda à Constituição afronta o livre exercício da atividade parlamentar.
Ainda que seja de complexa comprovação o ato parlamentar consistente em votar favoravelmente a projeto submetido à sua apreciação em razão da vantagem que lhe foi prometida (nexo de causalidade entre a liberação de emendas e o real viciamento de seu arbítrio), donde decorrem dificuldades de ordem prática para o reconhecimento de infração ético-disciplinar (quebra do decoro parlamentar) e até mesmo de sua responsabilização criminal (pelos crimes de corrupção passiva ou, subsidiariamente, prevaricação), o mesmo não ocorre em relação ao agente que oferece a benesse.
Como sabido, a doutrina e a jurisprudência reconhecem que o delito de corrupção ativa é formal, prescindindo de resultado naturalístico. Isto é: basta que se pratique o ato de “oferecer” ou “prometer” vantagem indevida, não sendo necessária a comprovação do recebimento desta pelo funcionário público competente nem mesmo a prova de que o destinatário da vantagem praticou ato contrariamente aos deveres funcionais.
A oferta de emendas parlamentares condicionada ao apoio necessário à aprovação de determinada medida legislativa configura crime de corrupção ativa, além de crime de responsabilidade (artigo 85, inciso II, da CF/88), na medida em que corresponde ao oferecimento de vantagens indevidas a parlamentares consistentes na obtenção de proveito proveniente do capital político atrelado à destinação de recursos a projetos de sua própria autoria, e também uma violação ao livre exercício da atividade legislativa. Entendemos, assim, por consequência, que o reconhecimento da aprovação de norma proveniente de atividade legislativa viciada pelo crime de corrupção ativa impõe necessariamente o afastamento do cenário jurídico do ato legislativo produzido em distanciamento dos deveres e dos fins que devem balizar o desempenho da função parlamentar.
Em um contexto desses não há que se cogitar na existência de independência e liberdade para analisar matérias submetidas à apreciação parlamentar, posto ser abissal o descompasso com as regras éticas, legais e constitucionais. Em síntese, e por fim, seja na “velha” ou na “nova” política, a vítima tem sido sempre a nossa cambaleante democracia.
[1] A descoberta do esquema conhecido como “Anões do Orçamento”, no qual políticos manipulavam emendas parlamentares, por exemplo, completou mais de 25 anos.
[2] Convém registrar que, desde 2012, tramitam no Supremo Tribunal Federal as ADIs 4.887, 4.888 e 4.889, de relatoria da ministra Cármen Lúcia, nas quais foram questionados os vícios de decoro parlamentar observados na aprovação da Emenda Constitucional 41/2003, cuja base argumentativa encontra-se na demonstração de violação aos princípios democrático, da representatividade popular, da moralidade e ao devido processo legislativo. A Procuradoria-Geral da República já apresentou parecer. Agora resta saber o que decidirá o Supremo Tribunal Federal.
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Soraia Mendes é advogada especialista em direitos humanos, professora, pós-doutora em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e mestra em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Augusto Souza é promotor de Justiça do MP-GO, mestrando em Direito e Políticas Públicas na Universidade Federal de Goiás (UFGO) e graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Sandro Henrique Silva Halfeld Barros é promotor de Justiça do MP-GO, membro do Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado e pós-graduado em Direito Eleitoral pela PUC Minas.
Revista Consultor Jurídico, 25 de julho de 2019, 14h34
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