O colapso político do PT e a guerra civil declarada
Por Luiz Renato Martins
- 15/07/2019
Luiz Renato Martins*
À memória de Chico de Oliveira
Crítica histórica radical
Por Luiz Renato Martins
- 15/07/2019
Luiz Renato Martins*
À memória de Chico de Oliveira
Crítica histórica radical
Para o bloco político derrotado em outubro passado no Brasil (a classe trabalhadora e seus aliados), a ascensão eleitoral de um bloco político de ultradireita sublinha a necessidade urgente de medidas de autodefesa, frente a uma guerra civil de classe abertamente declarada. Também convoca a uma crítica histórica radical e de largo alcance, não menos vital para a sobrevivência política dos trabalhadores.
O regresso – numa nova chave – dos militares ao controle direto do Estado marca um câmbio no regime e nas relações de classe. Não obstante, o ciclo aberto agora apresenta alguns elementos similares aos do regime civil-militar que tomou o poder manu militari em abril de 1964, em nome do consórcio entre o capital monopolista e as Forças Armadas Brasileiras-FFAA. [1]
Do outro lado do espelho, o passado não passou
Mas como sustentar uma crítica histórica radical a fim de distinguir as classes sociais e suas frações, assim como o jogo próprio dos atores políticos? Neste caso, esta deve se fundar na crítica concreta de dois mitos ou falácias da chamada “Nova República” (1985-2018), ora finda. Crítica, pois, de mitos que se traduziram em ilusões de superação do ciclo totalitário, a saber, resumidamente, do putsch civil-militar de abril de 1964, do AI-5 (Ato Institucional 5, 13.12.1968) e dos ‘anos de chumbo’ dos governos Médici (1969-74) e Geisel (1974-79).
Vistos como opostos, os mitos falaciosos da “Nova República” alimentaram uma disputa fictícia durante mais de trinta anos. Sob tal disputa, um fundo comum foi eclipsado – o verdadeiro eixo de poder no Brasil – que agora abertamente retoma o controle direto do Estado, para surpresa dos incautos (que são muitos) e alívio do “consórcio” há muito no comando.
Efeitos paralisantes
Dois mitos em um, portanto, ou uma falácia desdobrada em duas: 1. a da celebrada “Transição” (1984-5), a “cena originária” da “Nova República”; 2. a do êxito da “política social” da “Nova República” durante os governos Lula I e II, traduzido na fórmula “lulista” de distribuição, que em seu auge (2010) obteve uma taxa de aprovação de 80%, como bom ou ótimo governo.[2]
O totem
Sob as duas caras do Janus da “Nova República” há um totem: o do consórcio civil-militar que interdita a frente política entre trabalhadores e setores pequeno-burgueses. De tal frente derivaram as lutas pelas “reformas de base” e outras, antes do golpe de abril de 1964.[3] Sob tal totem, interditou-se toda referência à autonomia política dos trabalhadores e à luta de classes. Ao peso do interdito se acrescentou outra falácia: a da modernização e desenvolvimento social através do capitalismo.
Modernização ex-machina
Ambos os mitos, a “Transição” e o “lulismo” (derivado do primeiro), atenderam à prescrição de continuidade totêmica do consórcio entre os monopólios e as FFAA, sempre reverentes aos influxos externos. Então, qual é o traço de continuidade, sob o jugo do consórcio? O culto à modernização dependente, quer dizer, devida às inversões externas. Atraí-las é um rito típico de uma casta de grandes empresários e círculos subordinados.
Em suma, teor de classe do regime e modo interno de produção se constituiram sob o amparo do estado de dependência e da associação com o capital monopolista, que são inseparáveis dos influxos externos. Assim, os preceitos totêmicos em toda a “Nova República” infundiram um teor de classe similar em todos os seus governos. O nexo fundamental daquela girou sempre em torno da “dependência associada”, quer dizer, da suposta coexistência benigna entre as economias centrais e periféricas.[4]
Uma teoria crítica
O debate teórico sobre as relações de dependência na América Latina obteve reconhecimento internacional e é vital para a compreensão crítica da chamada “Transição”. Em sentido contrário à tese da “dependência associada”, o trabalho crítico feito no exílio pelo grupo da Teoria Marxista da Dependência (R. M. Marini, V. Bambirri, T. dos Santos e o economista alemão exilado Gunder Frank)[5] construiu uma nova série de conceitos específicos sobre dependência, como os de “superexploração” do trabalho e “subimperialismo”, originando assim uma crítica sistêmica acerca da relação desigual e combinada entre economias centrais e periféricas.[6] Posteriormente, Marini formulou em 1978 a noção de “Estado de contrainsurgência”, na qual incluiu a função intrínseca da tutela, exercida pelas FFAA como quarto poder do regime.[7]
Tais construções críticas estabelecem parâmetros para um enfoque crítico da inflexão da ditadura brasileira a partir de 1972, e também do que se segue, incluindo a inflexão social da “Nova República” ou o “lulismo”. Entretanto, também é necessário confrontar tal elaboração à análise histórica dos dados atuais, para responder à pergunta posta e urgente sobre a economia, a gênese e a estrutura de classes da nova ordem atual.
De um modo ou de outro, tal indagação implica a crítica das ilusões inerentes ao estado de “dependência associada”, que formou o ambiente falacioso dos mitos da dita “Nova República”. Em resumo, tais falácias levaram o PT a priorizar a modernização e o crescimento capitalista, seguindo o mesmo modelo e, portanto, a cultivar vínculos com o capital monopolista e os partidos da ordem.
Na prática, tais falácias naturalizaram a adoção de procedimentos e hábitos inerentes ao sistema político engendrado pela falsa “Transição”. Logo, como imaginar outro fim para o programa de alianças e objetivos que o PT se fixou, se, na Itália, o PCI, ao priorizar o crescimento econômico e se aliar ao capital monopolista, tido como modernizador, tomou o caminho que o levou à autodissolução?[8]
Crítica histórica I: a “Transição”, face e avesso
A origem declarada do mito da “Transição” reside nas eleições para o Senado (15.11.1974), consentidas pela ditadura. A vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nessa prova deu lugar ao mito do “partido-ônibus” para a “Transição”. Porém, tal falácia servia para encobrir o trabalho de laboratório da ditadura, para o falso processo de transição, como ação preventiva. De fato, subjacentes à proclamada e celebrada versão local, influíram múltiplos fatores externos. Desde o início de 1974, Espanha e Portugal foram observados como modelo e alerta respectivamente.
No entanto, antes que tais exemplos antitéticos entrassem em cena, ocorreu a intervenção nos bastidores de um especialista em contrainsurgência. O professor Samuel Huntington, de Harvard, atuou como consultor da ditadura brasileira desde outubro de 1972, pelo menos.[9] Portanto, o projeto de “descompressão política” do regime data de muito antes da ascensão eleitoral do MDB. [10] Tomado em seu conjunto e para além das circunstâncias, o caso interessa como índice da articulação imperialista global e da dependência “permanente”, e também por seus efeitos secundários, analisados adiante. De fato, o Brasil não foi uma exceção e Huntington foi principalmente o autor chave de uma “doutrina global de contrainsurgência” (post-1968).[11]
“Atada y bien atada (Amarrada e bem amarrada)”
Logo, qualquer roteiro de “descompressão política”, concebido como ação preventiva, implicava também o roteiro paralelo das técnicas de contrainsurgência. A Espanha foi o caso mais notório nos anos 1970 de tal tipo de trama palaciana.[12] Contou com a colaboração ativa de partidos eurocomunistas[13] e se converteu num “showcase” das técnicas de “descompressão”. Quer dizer, do processo de substituição das ditaduras militares por democracias tuteladas compatíveis com o capitalismo.
De fato, a transição espanhola mostrou-se “atada y bien atada (amarrada e bem amarrada)”, como disse o tirano.[14] Assim, o regime reciclado, segundo moldes dinásticos, teve suas garantias políticas e de classe, bem como seus pilares históricos preservados. Ao mesmo tempo, a “Transição” abriu espaço à modernização econômica e ao protagonismo empresarial, com pleno consentimento do PCE.[15]
Nestes termos, a transição espanhola logo se converteu no nec plus ultra, não só político, mas também econômico, das burguesias periféricas. Parte das classes dominantes latinoamericanas, que aspiravam a novo ciclo de modernização-conservação – ou “revolução passiva”, como diria Gramsci –,[16] se inscreveram no novo estágio de treinamento e favores correlatos de Washington. Em consonância, no Brasil, o general Geisel, que governou de 1974 a 1979, já em seu discurso de posse (15.03.1974) apresentou a fórmula da dita “abertura política lenta, gradual e segura”, ecoando a fórmula franquista.
De fato, no Brasil, tal semente mostrou-se duradoura e frutificou para as gerações burguesas seguintes. O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento-CEBRAP, fundado em 1969 com dotação da Fundação Ford, foi o ponto de aglutinação do think tank civil dos seguidores do modelo ibérico, sob a liderança do sociólogo Fernando Henrique Cardoso-FHC. Ideólogo da “dependência associada”, além de arauto do papel político e modernizador dos empresários, FHC começou a reproduzir em seus textos os principais argumentos da lenda espanhola.[17]
Com efeito, depois de alguns reveses, como a inesperada morte de Tancredo Neves (21.04.1985), sucedâneo local de Suárez, e de contratempos econômicos inerentes às economias dependentes, o Brasil adquiriu, senão um novo rei como a Espanha, ao menos uma nova moeda (por ironia involuntária ou histórica chamada “real”, em 1994), e FHC, uns meses depois, foi aclamado como presidente da república.[18] Além da modernização monetária e do “aperfeiçoamento constitucional” para obter a reeleição, FHC, como plenipotenciário do “consórcio”, também atualizou a economia segundo o “Consenso de Washington” (1990).
Crítica histórica II: 2003-10, o milagre social de “dar sem tirar”
O dirigente sindical Lula, do chamado Partido dos Trabalhadores-PT, sucedeu a FHC após assegurar o cumprimento de todas as “cláusulas fixas” da falsa “Transição”, enriquecida pelas prescrições do Consenso de Washington: promover a modernização em consonância com as instituições financeiras multilaterais e respeitar dívidas e contratos firmados; manter a dependência associada do Brasil, respeitando a função chave do protagonismo empresarial; não abrir as investigações sobre os atos de terrorismo do Estado praticados pelos militares e manter a anistia aos torturadores. Foi o suficiente para que Washington reconhecesse e exaltasse a “razoabilidade” de Lula.
A partir de então, as qualidades de Lula foram aclamadas interna e externamente. Dados os estudos críticos acima, desnecessário detalhar suas políticas distributivas.[19] Me limitarei a sublinhar que a magia efêmera de Lula (que “deu a muitos sem prejudicar a ninguém”, segundo um líder empresarial emblemático)[20] foi de natureza exclusivamente monetária, graças à elevação temporária dos preços das commodities minerais e agroindustriais.[21]
De todo modo, o “milagre social brasileiro” foi enaltecido como paradigma global de multiplicação distributiva, na medida em que redistribuiu a renda, como numa distribuição de dividendos, preservando as relações de propriedade e a assimetria absoluta de poder entre as classes.
De maneira similar, a sabedoria pragmática de Lula manteve ispsis litteris ou inclusive desfrutou como um virtuose do sistema político-partidário herdado da falsa “Transição”, obtendo geralmente grandes maiorias no Congresso. De fato, Lula redistribuiu a renda em todos os níveis, incluindo outros sócios e acionistas da “Transição”.
Falsos dilemas
O novo ciclo não difere substancialmente no que tange à dependência, a não ser por evoluir segundo o novo ritmo da Casa Branca. Não obstante, a muitos surpreende que, dado o giro da roda política no Brasil, o governo de hoje inclua mais generais como ministros chave, quase uma dezena, do que todos os governos militares posteriores a 1964, sem falar na quase centena de oficiais (99, segundo contagem recente de um grande diário) de alta patente em outras funções chave.[22] Além disso, é preciso assinalar que, se na época dos generais (1964-85), estes eram considerados correntemente como conspiradores e usurpadores, agora regressam como “redentores”, convocados pelas votações de outubro passado. Esse é o novo “milagre brasileiro”, que importa decifrar.
Decifra-me ou te devoro
Em síntese, os elementos novos da situação surgem na inclinação dos votos que buscaram a ultradireita e lhe deram apoio eleitoral inédito.
Em contraste com o destino atual da ultradireita, a classe trabalhadora é continuamente deslegitimada, como sujeito político, e degradada pela imprensa. A justificativa para os ataques provém do colapso do PT e de seu descrédito moral, caluniosamente transferido à toda a classe. A crítica política e histórica ao PT, bem como à falsa “Transição”, de cujos lucros o partido participou, é, portanto, fundamental para a reconstrução da perspectiva política dos trabalhadores independentemente do PT.
Além disso, a complexidade da situação do PT, políticamente duvidosa e muito perigosa para a perspectiva dos trabalhadores, é impossível de decifrar, sem que se examine antes as razões substantivas e a cronologia do colapso político do PT como Partido da Ordem. É necessário elucidar a fraude política, social e econômica que o partido promoveu, para compreender a enorme decepção popular consecutivamente engendrada e que nutriu a ultradireita.
Decepção
Na contracorrente da maioria das análises brasileiras, o economista argentino e marxista Claudio Katz sublinhou:
“Esses trabalhadores escutaram, toleraram e finalmente aceitaram a propaganda da direita por terem sido fraudados pelo PT. Essa decepção explica a fulminante ascensão do troglodita (…)
Muitas avaliações do triunfo de Bolsonaro omitem este balanço ou apresentam o PT como mera vítima dos ardis direitistas. Evitam a questão de sua responsabilidade política pelo resultado final”. [23]
Com efeito, a decepção dos trabalhadores foi apropriada, tragada (manipulada digitalmente) e fundida com o reacionarismo histórico e estruturalmente antidemocrático das classes proprietárias no Brasil, tal aquele que “fabricou 1964” como um projeto histórico de classe.[24]
Daí, de tal fusão, processada industrialmente, irrompeu o tufão anti-PT, que se apoderou de grandes porções da pequena burguesia. Tal fenômeno dividiu e arrastou inclusive setores que se haviam beneficiado do aumento do consumo e do crédito, propiciado pela política monetária dos governos do PT, ainda que também tenham sido afetados pela pregação evangélica e pela blitzkrieg (guerra-relâmpago) deflagrada nas redes sociais. Deste modo, não só os diminutos grupos sociais vinculados orgânicamente ao capital monopolista, mas também amplos setores das classes subalternas votaram por candidatos e partidos da ultradireita.
2013-2016: crise, colapso e declaração da guerra civil de classe
Em resumo, o colapso político do PT, por um lado, e a guerra civil de classe unilateralmente declarada, por outro, são os fenômenos decisivos que determinaram o fim do ciclo conciliatório da falsa “Transição”. Eles pesaram decisivamente no resultado político de 2018. Ambos fenômenos se configuraram como conjuntos de fatos e razões, enumerados e comentados a seguir. Entretanto, os acontecimentos que conduziram aos dois fenômenos principais (a saber, o colapso político do PT e a declaração unilateral da guerra civil de classe) tiveram lógicas, ritmos e origens diferentes, que cumpre precisar.
Mais tarde, ambos os fenômenos começaram a evoluir em interação e adquiriram, por certo, uma dinâmica mutuamente ativada, opondo-se diretamente um ao outro. Deste modo, hoje, ambos aparecem simultaneamente e na situação de polos opostos, como ocorreu, por exemplo, no segundo turno da eleição de outubro passado: por um lado, o PT, isolado e literalmente perseguido nas redes sociais por milícias eletrônicas; por outro, a ultradireita, que capitalizou a guerra civil declarada, recorrendo a armas de todo tipo, inclusive, à orquestração de mentiras em série, como fizeram os nazis, para esmagar o que ainda restava do PT.
Porém, um fenômeno precede o outro. O colapso precede a declaração de guerra. É preciso ter presente o curso dos acontecimentos, senão será impossível se entender como o bloco de ultradireita, historicamente diminuto, cresceu tanto eleitoralmente. A ultradireita, originalmente insignificante e sem nenhuma máquina partidária, deitou raízes e prosperou, com recursos de outra ordem, num campo devastado. Que campo? O das esperanças frustradas que resultaram de políticas equivocadas (senão do fraude direto e deliberado) e da hipocrisia do PT.
A ordem dos fatores
Em resumo, o colapso político do PT e depois grande parte do sentimento anti-PT daí gerado constituíram fenômenos substitutivos, nessa ordem, do falso êxito da inflexão social da “Nova República”. A ordem dos fatores, numa progressão encadeada, foi portanto: 1. a inconsistência da magia social do “lulismo”, revelada pela crise econômica e agravada posteriormente pela hipocrisia da aliança do partido com o capital monopolista; 2. o colapso político do PT; 3. o crescimento explosivo do sentimento anti-PT, muito além de seu enclave original (demograficamente restrito a certos setores das classes proprietárias), em meio aos quais subsistia um anticomunismo endêmico, agora delirantemente revigorado, uma vez que o novo presidente já irrompeu em público, umas tantas vezes, em insultos à URSS (sic)!
Em suma, o anticomunismo resiliente provém de grupos economicamente poderosos, capazes de influir sobre os responsáveis pela tomada de decisões, mas historicamente incapazes do ponto de vista eleitoral. Como chegaram a tal crescimento explosivo é o que agora importa determinar.
Gênese de uma guerra de classe
Neste quadro, cumpre notar que no campo do grande capital se produziu uma dinâmica específica, da qual se originou a guerra civil de classe, unilateralmente declarada pelo capital monopolista. Até agora este recebe um forte apoio, mas por outras razões, da pequena e média burguesia, misturando-se então com outros fatores e variantes de classe, relativos a estes últimos estratos sociais. Porém, no começo, tal dinâmica tinha características únicas, inerentes a objetivos e necessidades estratégicas do capital monopolista.
Este último, de fato, só contra a vontade entrou em conflito com o governo e o PT, e só depois de ter tratado de preservar a associação e apoiar as políticas de austeridade propostas pelo governo de Rousseff. Assim, mesmo depois de começada a mobilização política contra Rousseff, ocorreram algumas manifestações pessoais de líderes de grandes grupos econômicos e, inclusive, da oposição, em apoio à primeira.[25]
Enfim, a aliança dos monopólios com o PT e o governo era duradoura e razoavelmente sólida, e se manteve bem além dos primeiros atos de ruptura das classes médias e altas, assim como das manobras parlamentares para a derrubada de Rousseff, criticadas nos editoriais de periódicos como O Globo (07.08.2015), ou por personalidades com peso na oposição.[26]
Aviso de incêndio nos camarotes VIP
Na verdade, a ofensiva do capital monopolista contra os direitos das outras classes nasceu da necessidade de recompor os mecanismos de acumulação frente à crise econômica, e simultaneamente em resposta ao colapso político do PT. Assim, ambos os problemas, a crise econômica e a crise política se combinaram e se converteram em perdas imediatas e concretas para o capital monopolista, já que causaram forte redução dos fluxos financeiros e dos contratos governamentais. De fato, durante dez anos, de 2003 a 2013, o governo do PT se associou de muitas maneiras ao capital monopolista, favorecendo-o decisivamente mediante financiamentos, contratos e isenções fiscais, etc., alegando fomentar o crescimento econômico.
Saídas de emergência para os monopólios
Ante o desmoronamento do governo e do poder do PT no Congresso (adiante discutidos), o capital monopolista fez o que se faz frequentemente no mundo dos negócios: atirou ao mar o sócio arruinado e partiu à cata de butins, mirando em primeiro lugar, é claro, o Estado. Trocando em miúdos, escolheu apoderar-se dos ativos das empresas estatais e dos fundos públicos destinados aos serviços sociais (educação, saúde, habitação, seguridade social, bolsa-família, etc.) que, mesmo sendo precários como prestações sociais, constituen fundos suficientemente importantes para modificar os balancetes de grupos transnacionais em crise.
Causa mortis: a política, não as armas
Entretanto, o atual assalto da direita ao poder é muito diferente do que ocorreu em 1964. Agora, as razões endógenas preponderaram sobre as exógenas, de modo inverso ao que ocorreu no paradigma principal anterior.
Assim, para elucidar o teor do “golpe de classe”, o livro de Dreifuss citado antes[27] investigou detalhadamente o amplo espectro das atividades preparatórias do golpe de abril de 1964, promovidas por organizações como o IPES e o IBAD, irrigadas pelo capital monopolista. Decerto, deve-se levar a cabo investigação similar sobre a atual guerra de classe, em cujo curso ocorreu também uma multiplicação de institutos – nascidos como cogumelos –, para popularizar a doutrina neoliberal, assim como durante a crise política pipocaram várias milícias juvenis para a agitação política de ultradireita.[28]
Porém, nem os cogumelos neoliberais nem as milícias juvenis (fenômenos limitados à esfera dos diferentes estratos da burguesía) causaram o colapso do PT. É fato que o cerco ao PT foi concebido tal e qual um golpe de classe. Mas a queda do PT do governo não foi fundamentalmente consequência de fatores exógenos, como ocorreu com o governo de Goulart no Brasil em 1964 e o de Allende no Chile em 1973, ambos derrubados por golpes militares diante da ausência de tropas leais e armas, suficientes para defender o governo.
Desta vez, pelo contrário, a incapacidade do PT para se defender do golpe de classe tem raízes endógenas e características inegáveis de crise e colapso político. O capítulo da queda de Rousseff foi muito bem resumido pelo economista da UNICAMP Plínio Sampaio Jr, [29] exponente da ala esquerda do PSOL:
Depois de negar todas suas promessas eleitorais, Dilma começou a tercerizar seu próprio governo. Não podemos esquecer que Temer chegou a exercer a função de principal articulador político de Dilma. Ela tercerizou a tal ponto o governo que se tornou supérflua. Saiu com um peteleco. Dilma é vítima do golpe dado por ela mesma na classe trabalhadora, o que esvaziou o seu governo, criando um vácuo de poder que esses delinquentes liderados por Eduardo Cunha e Temer ocuparam.[30]
Se não se entende isto, tampouco se entenderá a subsequente ascensão eleitoral da ultradireita. Em resumo, a debilidade política do governo de Rousseff e, na sua esteira, o enfraquecimento eleitoral relativo do PT, nas eleições de 2016 e 2018, provieram sempre da degradação crescente e desconexão, em consequência, do partido com seu eleitorado e suas bases de apoio organizadas. Posteriormente, tal fenômeno se estendeu e acometeu outras classes. É preciso, pois, retornar a junho de 2013, para distinguir a eclosão epidêmica de tais sintomas.
Brasil 2013: a floresta seca começa a arder
As grandes e surpreendentes manifestações de junho de 2013,[31] em 22 capitais de estados e 400 cidades do Brasil, com três milhões de trabalhadores envolvidos em greves, foram as maiores no Brasil desde o movimento das Diretas Já (1984), este último abortado em rito sumário pelo MDB que o trocou pela falsa “Transição” via Colégio Eleitoral.
Os protestos de 2013 mudaram decisivamente o panorama político interno, assim como a imagem global do Brasil. Até então, o Brasil era tido internacionalmente como exemplo de democracia consolidada e estável, e além disso, sua economia, como fundamentalmente próspera. Duas capas de The Economist exemplificam tal mudança da imagem do Brasil no exterior, observada a partir de junho de 2013. Assim, em novembro de 2009, a revista publicou em sua capa a seguinte chamada: “O Brasil decola (Brazil takes off)”. Pelo contrário, na capa de setembro de 2013 depois dos protestos massivos, estala uma dúvida: “O Brasil gorou? (Has Brazil blown it?)”
Porém, bem antes de tais comentários (no fim das contas em sintonia com a busca de oportunidades de investimento rentáveis) formulou-se um alerta veemente, associado a uma crítica fulminante, por parte do sociólogo e fundador do PT Francisco de Oliveira, ex-membro das equipes que haviam preparado os planos de governo do PT nas campanhas dos anos 1980 e 1990. Assim, em ensaio publicado em junho de 2003,[32] apenas seis meses após a posse de Lula na presidência, o autor diagnosticou o desenvolvimento no Brasil de um novo padrão de acumulação de capital, baseado na apropriação de fundos públicos, transferências patrimoniais, privatizações e outras formas de “acumulação truncada”. Para concluir, assinalou que um tal processo era conduzido por uma “nova classe”: sindicalistas atuando concertadamente com especialistas em finanças e conselheiros dos fundos de pensões.
Deste modo, o que Francisco de Oliveira observou, já em marcha na primeira administração de Lula, não foi outra coisa senão a articulação de dirigentes do PT, e lideranças sindicais associadas, com o capital monopolista, para a gestão compartilhada dos fundos de pensão, nos quais o governo como grande empregador exercia papel decisivo. Tais fundos, muitos dos quais formados por poupanças dos empregados de grandes empresas estatais, movimentavam somas gigantescas, equivalentes às dos maiores players do mercado financeiro de São Paulo.
O sentido da advertência de Oliveira demorou dez anos para chegar às ruas, mas quando se tornou tangível e evidente, a multidão se apoderou das ruas tempestuosamente. O que pretendiam os heterogêneos manifestantes de 2013, em meio a queixas diversas e expressões de descontentamento generalizado?
O gatilho das manifestações foi o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo e outras capitais de estados.[33] É fato que as convulsões dos estudantes e de jovens trabalhadores devido às altas das tarifas ocorriam habitualmente todos os anos, mas sempre limitadas a pequenos grupos, o principal dos quais era o Movimento Passe Livre (MPL). Mas, em 2013, as manifestações ampliaram-se como fogo incontrolável em floresta seca. Qual foi a faísca que, nesse junho, mudou a história?
Afora alguns incidentes iniciais – que contribuíram de algum modo, para esquentar os ânimos –,[34] o que tornou o contexto de 2013 tão explosivo foi o compromisso escandaloso (para a maioria das pessoas) do governo federal, assim como de vários governos estaduais e administrações municipais, com a FIFA, para realizar a Copa do Mundo de 2014, acrescido de acordos similares, com vistas à Olímpiada de 2016, no Rio.
Submissão cega e cobiça
Porém, submissos aos setores do capital monopolista diretamente interessados na realização dos jogos,[35] os governos do PT justificaram o aumento das tarifas, com discutíveis argumentos contábeis. Ou seja, politicamente não se deram conta de que as manifestações se ampliaram precisamente quando passaram a visar, além do aumento das tarifas, a associação dos governos e do PT com o capital monopolista.
Num abrir e fechar de olhos, as manifestações começaram a reivindicar estridentemente a melhora e a gratuidade universal dos serviços públicos. Logo se ampliaram de modo ilimitado. De fato, especialmente em São Paulo, havia uma demanda histórica de transporte público gratuito.[36] Mas a invenção política espontânea, que produziu um salto na reivindicação geral, veio da comparação explosiva em 2013 entre o aumento das tarifas e os gastos abusivos dos governos, para a Copa do Mundo de 2014. Uma vez acesa a faísca, muitos dos cartazes e faixas de protesto começaram a trazer demandas irônicas, mas furiosas, por mais hospitais, escolas e transporte segundo o “padrão FIFA”, utilizado para os luxuosos estádios e centros de treinamento, em construção em várias cidades brasileiras.
A partir de então, as deficiências dos serviços públicos foram todas atribuídas aos gastos com os grandes eventos esportivos. Num átimo, o PT foi responsabilizado politicamente por associação suspeita com os grupos monopolistas do luxo e do turismo. Só a direção do PT e os governos locais envolvidos, todos associados aos monopólios, não se deram conta da urgência de um gesto político decisivo: cancelar os dois megaeventos internacionais e investir o dinheiro disponível nos serviços públicos essenciais.
A situação saiu do controle. Em duas semanas, as capitais estaduais e cidades médias do Brasil se converteram em campos de batalha. Palácios de governo foram sitiados por manifestantes enfurecidos. A porta principal da sede da prefeitura de São Paulo (então em mãos do prefeito Haddad, um dos favoritos de Lula) foi atacada por uma multidão com um aríete. Aspectos medievais e contemporâneos se juntaram no caldo de crise econômica e insatisfação generalizada. Os noticiários televisivos ao vivo mostravam a cena a parir de helicópteros, porque seus veículos no chão haviam sido atacados e queimados.
Descontentamento burguês
Foi então que setores da burguesia e das classes médias notaram que o papel bonapartista atribuído ao PT, de conter e manejar as massas (nascido do descrédito do segundo mandato de FHC [1999-2002]) havia esgotado sua efetividade e validade. A era da conciliação havia chegado ao fim. As classes proprietárias perceberam imediatamente o fato. Quer dizer, muito mais rápido do que as burocracias partidárias e sindicais. Desde então, alguns signos de descontentamento burguês começaram a aparecer abertamente nos grandes meios de comunicação. Tal descontentamento, por certo, era muito distinto daquele das ruas, que exigiam serviços públicos gratuitos e de qualidade digna. De fato, as classes médias e altas não utilizam, de modo geral, os serviços públicos no Brasil. Não obstante, haviam atribuído ao PT, como Partido da Ordem gozando de credibilidade popular, o papel de prevenir greves e manifestações massivas.
A convulsão se estendeu pelas ruas. Se algo havia em comum entre os protestos de rua e aqueles distintos, veiculados pelos grandes meios de comunicação, em meio à disparidade social das expressões relativas às diferentes classes, era o rechaço da corrupção. E desde logo, senão desde 2005 (quando o chamado escândalo do “Mensalão” estourou)[37] a corrupção havia sido tipificada como uma característica inerente à associação entre o PT e os grupos monopólicos.
PT e governo na encruzilhada
Dois semestres se passaram em meio a sinais crescentes de descontentamento: por um lado, a demanda popular por serviços públicos; por outro, a multiplicação e repetição das críticas das classes proprietárias (até então em lua de mel com o PT), diante da recém-descoberta incapacidade política e administrativa do partido.
Logo vieram as eleições gerais e presidenciais de outubro de 2014, sob uma atmosfera inédita de polarização de classes e descontentamento generalizado. Os contrastes entre as classes, ainda que superficialmente expostos, se exasperaram: pobres e ricos distinguiram-se claramente em posições opostas e as discussões eleitorais estenderam-se, com veemência, a situações e esferas tradicionalmente alheias à política.
Nestes termos, Rousseff recebeu uma mensagem sem meias tintas de parte das forças populares, aglutinadas contra a política de cortes nos gastos públicos e sociais, pregada pelo candidato do PSDB. Em correspondência, a promessa incisiva que se cristalizou na campanha eleitoral de Rousseff, impulsionada pelo eleitorado popular que a apoiou, foi de forte rechaço às medidas de austeridade, propostas pelo PSDB. De fato, Rousseff ganhou por estreita margem, de cerca de 3%, fazendo proclamas contra a austeridade.
Estelionato eleitoral
Repetiu-se então a cegueira política que levou o PT a insistir na realização dos megaeventos. E pelas mesmas razões: associação de interesses com o capital monopolista. Assim, após uma pausa, e sem nenhuma explicação coerente com sua reviravolta, Rousseff anunciou a nomeação de Joaquim Levy como ministro da Fazenda. Não por acaso, um vero “Chicago-boy” e economista do segundo maior conglomerado financeiro do Brasil, Levy converteu-se, sob o governo atual da ultradireita, no presidente do BNDES, o maior banco público de investimentos.[38]
Nestes termos, Rousseff contrariou frontalmente o que estava escrito no programa econômico de campanha, além de assumir plenamente as razões e diretrizes das medidas de austeridade, defendidas pelo oponente derrotado nas eleições. Estava cavando sua própria tumba. Num Brasil crescentemente polarizado, a medida foi entendida na hora como o que realmente era: nada menos do que o resultado de manobras de bastidores e uma traição direta às promessas feitas em troca do voto popular. A memória eleitoral ainda estava fresca. No transcurso de umas poucas semanas, a recém-eleita presidenta, que havia conseguido, como é habitual, algum apoio extra com seu triunfo eleitoral, perdeu cerca de de ¾ de sua popularidade: seu índice de aprovação caiu para cerca de 15%.[39]
Governo em demolição
Coerente com sua estratégia de trair o voto popular em favor da associação com o capital monopolista, Rousseff apresentou ao Congresso um pacote de medidas de austeridade recomendadas por seu ministro da Fazenda. Porém, o giro de 180 graus de Rousseff não foi tão afortunado quanto pareceu, à primeira vista, o de Tsipras, na Grécia. Já, no Brasil, a reviravolta resultou duplamente deficiente, de cara: primeiro, despertou ira e protesto dos sindicatos e do eleitorado do PT em geral, reduzindo ainda mais seu apoio, o que acelerou seu isolamento político, inclusive, entre os parlamentares do próprio partido; segundo, os partidos burgueses da oposição, inclusive quando apreciavam as medidas, votaram contra elas, para impedir sua implementação, porque viram no enfraquecimento político fulminante de Rousseff uma oportunidade para recuperarem o controle do Estado.
A campanha anti-Rousseff ganhou as ruas, com manifestações de massas cada vez maiores, inicialmente dominadas pela centro-direita, mas já com a presença visível da ultradireita, e com um apoio cada vez mais ostensivo do capital monopolista. Este debitou ao PT a não aprovação das medidas de austeridade, ditas preliminares à recuperação das taxas de lucro e ao retorno dos investimentos.
A estratégia da guerra de classe ganhou apoiadores e o próprio vice-presidente da república, o ex-aliado Michel Temer (PMDB), mudou de lado. Por certo, o processo tomou as características de um golpe de classe, mas après-coup, segundo a terminología psicanalítica. Porque o programa de austeridade defendido pelo governo e a erosão política, agravada pelas acusações de corrupção contra líderes do PT descobertos em relações suspeitas com o capital monopolista, corroeram as bases sociais do governo e converteram-no em presa fácil, acuada e isolada.
Divórcio
Como vimos, o capital monopolista, quando não vislumbrou outra saída, rapidamente atirou o PT ao mar e declarou a guerra de classe. Consecutivamente, hoje, comanda um proceso de guerra social, em escalada contínua há mais de três anos, desde a queda de Rousseff em abril de 2016.
O PT, por sua vez, participou das eleições municipais, de 2016, e das gerais, de 2018, sob feroz e excruciante ofensiva de classe da burguesia, mas sempre insistindo num projeto de conciliação. Ou pelo atavismo de sua conexão orgânica com o falso sistema político da “Transição”, ou porque aposta(va) todavia na recomposição de sua associação orgânica com o capital monopolista, o fato é que o PT insistiu no projeto de conciliação com os monopólios, para retomar o crescimento econômico. Pregou no deserto, e, se de todo modo obteve cerca de 45% dos votos no segundo turno, credite-se tal apoio momentâneo unicamente ao impulso antifascista do eleitorado. Não ficou eco, traço ou pedra de seu pálido programa econômico.
Em contraste, a estratégia da guerra de classe ganhou ampla aceitação em estratos da burguesia que não estavam diretamente vinculados aos monopólios. Por que? A pergunta é pertinente e urgente, mas não leva a resposta rápida. A questão resulta de uma síntese de múltiplas determinações. Múltiplas forças ora atuam em convergência, para criar na sociedade brasileira uma deriva fascistoide, com danos gerais e irreversíveis para as próximas gerações.
Guerra total
Em resumo, há um programa de genocídio social em curso dirigido pelo capital monopolista, mas que envolve diferentes estratos das classes proprietárias. Decerto dentre estes observam-se interesses econômicos discordantes. Não obstante, tais grupos encontram-se hoje em coalizão contra a classe trabalhadora em geral: operários, camponeses, servidores públicos, sem-teto, favelados e quilombolas, povos da floresta e indígenas, comunidade LGBTQ e outros. De fato, a coalizão conduz uma ofensiva, em vários âmbitos e esferas, contra os direitos sociais em geral.
Do ponto de vista do capital monopolista, o objetivo em vista de um novo salto produtivo é estabelecer um novo padrão de acumulação, dado por aumento no nível de super-exploração do trabalho – o que é facultado pelo novo regime trabalhista recém-aprovado –, combinado à redução no gasto social e a investimentos múltiplos no sistema repressivo.
Deve-se concluir que, deixando a era do devaneio mediterrâneo da falsa “Transição”, a plutocracia do Brasil entrou agora em novo estágio, visando ao modelo asiático de produção intensiva, sem direitos civis nem benefícios sociais? O fato é que junto com o prometido e reiterado alinhamento com a política externa de Trump, a busca de métodos chineses de controle de massas já está em marcha.[40] De todo modo, a afirmação do historiador Caio Prado Júnior, em 1942, de que a América portuguesa havia se formado não para gerar vida social, mas segundo objetivos exclusivamente produtivos, comprova-se outra vez historicamente fundada e atual.[41]
Entretanto, até que ponto os demais setores das classes proprietárias se beneficiarão da liquidação dos direitos trabalhistas e de outras proteções sociais? A voragem da concentração de renda decorrente, por sua vez, não arrastará parte substancial das empresas privadas e da relativa independência econômica de outras formas de propriedade? Enfim, fica a pergunta: estariam tais setores atuando inscientemente contra seus próprios interesses?
Bode expiatório
Em suma, se ainda não está claro o que é que o restante das classes proprietárias procura economicamente abocanhar, na ampla privação de direitos sociais e na reestruturação da sociedade brasileira, delineada pela ditadura do dinheiro, existe, no entanto, um aspecto extra-econômico que chama a atenção. Este deriva possivelmente de uma reação defensiva – em uníssono – da classe dominante. Consiste no aspecto flagrante da conivência de classes, manifesto no amplo consenso reunindo poder judiciário, grande imprensa, entidades representativas das chamadas profissões liberais, em resumo, as classes proprietárias em geral, de que o cerco contra o PT deve assumir (como de fato assumiu) o caráter institucional de uma guerra total, contrária à todas as salvaguardas constitucionais.
Mas como explicar o alcance e a histeria de tal consenso de classe, inclusive à luz da proposta do PT, de lançar um candidato mais que moderado e de acordo com os standards do PSDB?[42] Com efeito, como se sabe, o PT abriu seu programa e buscou aproximação, prometendo ceder em todas as linhas, mas foi em vão. As classes proprietárias mostraram que não queriam armistício nem diálogo, priorizando abertamente a guerra total.
É provável que tal conluio supra e infra-legal constitua uma resposta à revelação do padrão de criminalidade vigente nos negócios. Isto serviu e foi útil para encarcerar os líderes do PT, mas, como argumento e lâmina de duplo corte, também pode eventualmente servir contra a propriedade em geral no Brasil.
Com efeito, frente ao que foi revelado nos turvos episódios, coprotagonizados pelo capital monopolista e partidos políticos, de quantos Daumiers, Grozs, Brechts e Heartfields se precisa, para descrever o padrão corrente de conduta do CEO de uma grande empresa no Brasil nas últimas décadas?
De fato, o nível de criminalidade das classes proprietárias no Brasil tornou-se tão alto diante de qualquer padrão global, e tão além de qualquer marco individual e circunstancial, que provavelmente levou à compreensão intuitiva das classes proprietárias, de que era necessário desviar a atenção geral dos aspectos suspeitos envolvendo toda acumulação de riqueza no Brasil. Neste sentido, a insistência no cerco e na campanha anti-PT, e as numerosas manobras judiciais de magistrados e procuradores, mobilizadas seletivamente contra o partido (inclusive ignorando todos os critérios e procedimentos de isenção e imparcialidade do aparato judicial), bem podem derivar de um impulso intuitivo de defesa da própria classe.
A insistência, se a tese procede, busca evitar provavelmente a iminente conclusão geral, de que todo o capital e toda propriedade, no Brasil atual, resultam da despossessão dos direitos sociais e bens ambientais, assim como do saqueio dos fundos do Estado.
Dique
Por quanto tempo prevalecerá tal tática, antes que a fúria das grandes maiorias sociais volte a aflorar? Exemplos recentes não faltam: em junho de 2013, contra o aumento das tarifas de transportes públicos e os gastos com a Copa e a Olimpíada; em 2015-16, vários protestos massivos contra o PT; nas eleições de 2018, tsunâmi anti-PT, convertido então – em operação oportunista acima referida –, em emblema único do estado de corrupção generalizada. Quando virá o próximo maremoto?
Até agora, cumpre reconhecer que a estratégia unitária da burguesia, malgrado tudo, funcionou e, por conseguinte, logrou dissuadir ou desviar a ira popular, impedindo-a, em síntese, de distinguir os abismos sociais, o capital monopolista e a propriedade em geral como imediatamente suspeitos.
Entretanto, a explosão de ira e ressentimento que levou a ultradireita ao poder de Estado, em outubro passado, provavelmente não constituiu o “happy end” fascistoide definitivo. Assim, é bem provável que se produzam outros movimentos sísmicos de fúria popular, dada a falta de legitimidade que hoje envolve todo o sistema político-partidário e, possivelmente, as hierarquias sociais em geral.
Fendas no dique
Numa série de pesquisas publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo na primeira e segunda semana após a posse do novo governo, quer dizer, quando a erosão política ainda era mínima, despontam sinais de persistência de crise duradoura e instabilidade, de longo prazo, no quadro político. Assim, os dados da pesquisa, curiosamente, vão contra as principais diretivas do novo governo, sobre varios temas, a saber: 60%, segundo as sondagens, rechaçam as privatizações, enquanto 57% rechaçam a retirada dos direitos trabalhistas (Folha de S. Paulo, 05.01.2019, p. A15). Analogamente, 54% dos consultados se dizem a favor da educação sexual nas escolas, e 71%, a favor de debater questões políticas nas aulas (idem, 08.01.2019, p. B1). Além disso, 61% dos consultados se mostram contra a liberalização da posse de armas (idem, 09.01.2019, p. A2). Finalmente, 60% dos consultados discordam da redução das áreas de reservas indígenas (idem, 13.01.2019). Os consultados estão de acordo com o novo governo em apenas um aspecto: 67% apoiam maior controle da imigração (ídem, 09.01.2019, p. A2).
O que indicam tais cifras? Como é possível que o novo governo, a menos de duas semanas de sua posse, já tenha algumas de suas diretivas – entre as quais se encontram as mais “amigas do mercado” –, erodidas e, inclusive, rechaçadas pela maioria? Entre as causas possíveis, cabe considerar que a votação de outubro passado não decorreu de uma aprovação majoritária do programa econômico da ultradireita, nem do seu programa social e cultural genocida. Antes, terá decorrido da ultradireita ter representado, de modo mais efetivo que todos os demais partidos de direita e centro-direita, como o PSDB (outrora o principal oponente do PT), o sentimento anti-PT e a fúria generalizada e cega, contra aspectos fraudulentos e corruptos do sistema político.
Se a dedução procede, a aprovação eleitoral da ultradireita, verificada em outubro passado, não resulta de uma virada fascistoide efetiva e cristalizada nas preferências políticas da maioria, ainda que a fúria cega constitua, sem dúvida, um sintoma de tendências fascistoides latentes.
Entretanto importava, para grande parte da população, sublinhar sua decepção com o PT e castigá-lo por desvios e fraudes evidentes. Daí a queda dos 86%, de aprovação do governo de Lula no final de seu segundo mandato em 2010, aos quase 45% que votaram por Haddad-PT ou no 13, no segundo turno de outubro passado. Se assim é, e se a população, em geral, segue carente e desejosa de serviços públicos gratuitos ou baratos (segundo diretrizes não cumpridas, mas outrora atribuídas ao programa do PT), o que sucederá quando as reformas ultra-liberais, e as que estão de acordo com as posições punitivas das igrejas evangélicas, forem implementadas e começarem a mostrar consequências, levando às demissões massivas, à redução dos salários, à proibição de greves, à repressão aos protestos, à extinção de serviços públicos vinculados à livre-orientação de conduta, etc.?
Sem subestimar o poder destrutivo do sistema repressivo e da maquinaria estatal em mãos de um grupo disposto a tudo, para não ser detido, a constatação a fazer é que o país entrou certamente num longo e dramático ciclo de instabilidade crônica, ou “estado de exceção” permanente. Note-se, entrementes, que só a ultradireita está pronta e organizada para um cenário de confrontação aberta.[43]
Diante da ditadura do dinheiro
O que vem a seguir? Será possível algo diverso do que o que temos agora, isto é, um governo de depredadores sociais e mastins, que prepara a ditadura do capital monopolista?
A resposta a tal pregunta é fundamentalmente política e pressupõe a construção de um novo projeto histórico de transição revolucionária, visando à propriedade coletiva e autogestão dos meios de produção por parte da classe trabalhadora. Isto provavelmente levará tempo, senão pior: é possível que se mantenha a atual correlação de forças por tempo bastante para que esta desenvolva e aplique todo o potencial repressivo e destrutivo que porta.
De todo modo, uma resposta adequada ao perigo atual requer a reflexão urgente e crítica de que a estratégia de conciliação e defesa do crescimento capitalista, defendida nas últimas décadas pelo PT, deve ser radicalmente negada.
As sirenes estão tocando
Uma blitzkrieg (guerra-relâmpago) de classe está em curso. É urgente concluir que a burguesia abandonou ostensivamente o PT, assim como toda estratégia de fabricação de consensos políticos. De fato, a burguesia como classe, assim como seus partidos, estão investindo todos os seus recursos no equipamento e modernização do aparato repressivo do Estado e, para cobrir eventuais lacunas, em armamento privado. A guerra de classe está prevista em todas as frentes, e casa a casa. Deste modo, a flexibilização das leis de posse das armas de fogo foi uma das primeiras prioridades do novo governo, cujo líder, ademais, defende abertamente a pronta despenalização das mortes por disparos para defender a propriedade.
Analogamente, todos os políticos em ascensão nos partidos burgueses não tratam de seduzir às maiorias em favor de algum consenso. Ao invés, buscam provocá-las e desafiá-las a buscar novos e maiores confrontos, de acordo com a guerra social em curso.
Assim, com o apoio maciço de setores da pequena burguesia e das igrejas evangélicas, a burguesia selecionou no baralho da política, como cartas suas, aos que portam máscaras de assassinos profissionais, membros de milícias paramilitares e grupos civis similares aos “stormtroopers” (tropas de assalto) ou às SA (paramilitares ou camisas marrons) nazistas e, por último, mas nem por isso menos importante, a alguns personagens dos meios de comunicação que se apresentam como depredadores sociais, na esteira de Trump.
Neste sentido, J. Dória (PSDB), novo governador de São Paulo e auto-proclamado candidato à sucessão presidencial, dentro do bloco político de ultradireita, é um caso emblemático de ascensão meteórica e com origem nos moldes descritos acima: ao derrotar eleitoramente Haddad (PT) em 2016, tornou-se prefeito de São Paulo, após despontar como apresentador da versão local de The Apprentice, o show televisivo que lançou Trump à política. Assim, em dois anos, Dória truculentamente mastigou e cuspiu o que restava do ex-governador de São Paulo, G. Alckmin (PSDB), que o havia introduzido no partido e patrocinado sua candidatura à prefeitura. Dória abandonou a Alckmin na metade da campanha presidencial, para apoiar ostensivamente ao candidato de ultradireita, em ascensão. Agora, já toma distância do último.
De fato, é possível que o atual governo não dure. A luta pela sua sucessão já se abriu. Dada a notória inconsistência intelectual, moral e política do clã Bolsonaro, os dias da “dinastía” estão possivelmente contados. Mas como a estratégia da guerra de classe é mais sólida e duradoura, ela pode durar para além do atual período presidencial, possível de ser encurtado devido a escândalos financeiros e políticos. Sem esquecer o atual vice-presidente (um general) e o atual ministro Moro (o mastim que caçou e encarcerou Lula), e Dória (membro orgânico da alta burguesia), todos eles apresentam mais atributos de racionalidade condizentes com a ideologia da ultradireita. Qualquer um deles poderá eventualmente se converter em favorito do “consórcio” e herdeiro da atual estratégia militar do governo, para levar a cabo – sem nenhuma redução na beligerância –, a constituição do novo padrão de acumulação.
Domar a esfinge
A classe trabalhadora deve construir urgentemente sua auto-organização política independente e sem nenhuma ilusão de conciliação com a burguesia. A paz está fora do horizonte. Assim, o caminho rumo à organização política da classe trabalhadora deve ir na contramão do que o otimismo conciliador do PT pregou durante muito tempo, para desenvolver estratégias de defesa e ataque de acordo com a consciência de que o inimigo permanece precisamente onde sempre esteve: no controle de todo o sistema econômico e de mando; em síntese, em todas as posições decisivas daquilo que Gramsci denominou de “Estado integral”.
Como e quando?
Para concluir, a partir da falsa “Transição” de 1985, o capital monopolista no Brasil começou a sentar e negociar com os trabalhadores sempre com sua arma na gaveta. Com o novo governo, voltou uma vez mais, como nos vinte anos posteriores a 1964, a exibir ameaçadoramente sua arma sobre a mesa. Cabe à classe trabalhadora se auto-organizar para poder decidir como e quando derrubar a mesa – do contrário todos os retrocessos são possíveis.[44]
*
[1] Sobre o caráter de classe do golpe de 1964, ver a obra “clássica” de René A. Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, Petrópolis, Vozes, 1981 (originalmente, idem, State, Class and the Organic Elite: the Formation of an Entrepreneurial Order in Brazil 1961-1965, PhD thesis, Glasgow, University of Glasgow, 1980).
[2] Sobre a falácia da distribuição em questão, bem como da política de dependência econômica que a sustentou, ver Pierre SALAMA, ‘Reprimarización sin industrialización, una crisis estructural en Brasil’, en Herramienta, revista de debate y crítica marxista, disponível em; Rolando ASTARITA, ‘Brasil: la economía del PT’, en Sin Permiso, disponível em ; . Ver também Plínio de Arruda SAMPAIO Jr., Crônica de uma Crise Anunciada: Crítica à Economia Política de Lula e Dilma, São Paulo, SG-Amarante Editorial, 2017.
[3] Ver Luiz Alberto Moniz BANDEIRA, O Governo João Goulart: as Lutas Sociais no Brasil, 1961-1964, 7 a. ed., rev. e ampliada, Rio de Janeiro, Revan/ Brasília, UnB, 2001.
[4] Ver Fernando Henrique CARDOSO e Enzo FALETTO, Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaios de Interpretação Sociológica [1970], 3a. ed., Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.
[5] Para documentos sobre o confronto direto entre as duas correntes, ver F. H. CARDOSO; José SERRA, ‘Las Desventuras de la Dialéctica de la Dependencia’, in Revista Mexicana de Sociología, vol. 40, número extraordinário, Cidade do México, UNAM, 1978, pp. 9-55. Para a resposta de Marini nesse momento, ver R. M. MARINI, ‘Las Razones del Neodesarrollismo (Respuesta a F.H. Cardoso y J. Serra)’, in Revista Mexicana de Sociología, vol. 40, número extraordinário, Cidade do México, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, 1978, pp. 57-106, disponível em. Para um resumo atual da questão, ver Claudio KATZ, La Teoría de la Dependencia, Cincuenta Años Después, Buenos Aires, Batalla de Ideas, 2018.
[6] Seu impacto crítico alcançou o pensamento de vários outros economistas e sociólogos: o egípcio Samir Amin, o italiano Giovanni Arrighi, o norteamericano I. Wallerstein, etc. Não obstante, nunca se permitiu que tal teoria, elaborada no exílio (Chile e México, básicamente), circulasse efetivamente nas universidades brasileiras.
[7] Esta formulação data do momento em que o novo marco global levou Washington a propor um ciclo de mudanças modernizadoras no conjunto das ditaduras militares latinoamericanas. Ver R. M. MARINI, ‘El Estado de Contrainsurgência’, in Cuadernos Políticos, n. 18, Mexico D.F., Ediciones Era, oct.-dec. 1978, pp. 21-29; disponível em.
[8] Ver Ernest MANDEL, ‘Le P. C. italien apôtre de l´austerité’, in Critique de l´Eurocommunisme, Paris, Maspero, 1978, pp. 236-68.
[9] Ver Thomas E. SKIDMORE, “Chapter VI: Geisel: Toward Abertura”, especialmente pp. 165 e seguintes, in idem, The Politics of Military Rule in Brazil: 1964-1985, New York, Oxford University Press, 1988, pp. 160-209.
[10] Ver Samuel HUNTINGTON, “Approaches to political decompression”, 1973, disponível em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/receita-samuel-huntington#pagina-1. Ver também sobre o governo seguinte, idem, “Carta ao General Golbery do Couto e Silva [Letter to the General….]”, 28.02.1974, disponível em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/receita-samuel-huntington#pagina-17>. Mais tarde, como assessor da administração Carter, Huntington jactou-se do papel exercido no Brasil. Ver idem, American Political Science Review [1988], Cambridge, Cambridge University Press, vol. 82(01), March, pp. 3-10.
[11] Ver Michel J. CROZIER; Samuel P. HUNTINGTON; Joji WATANUKI, The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission, New York, New York University Press, 1975. Doutor em transições controladas, Huntington também assessorou o governo sul-africano durante o período da “descompressão” do regime do apartheid.
[12] O novelista valenciano Rafael Chirbes, uma das vozes mais autorizadas sobre o período, resumiu desta maneira a conspiração da chamada “Transição”: “Franco morreu na cama e os partidos espanhois da Transição foram montados a partir do exterior: agentes externos e dinheiro externo. Não foram o resultado de uma onda democrática envolvente provocada pelas ansiedades do povo espanhol”. Ver R. CHIRBES, ‘Franco se murió en la cama y los partidos de la transición los montaron desde el exterior. Entrevista’, in Mundo Obrero, 24 de abril de 2013, disponível em:; ver também a reportagem investigativa de Gregorio Morán e Antonio Yelo, “Los padres de la Transición eran absolutamente impresentables. Entrevista”, in Jot Down, dez. 2013, disponível em: ; ver também o testemunho do ex-secretário-geral do PCE (1982-8), o operário-mineiro Gerardo Iglesias, membro do Comitê Central do PCE durante as negociações, a Álvaro Corazón Rural, “Estamos marchando a pasos agigantados a la frontera de lo que fue el franquismo. Entrevista”, in Jot Down, dec. 2013, disponível em , accessed in 29.12.2013.
[13] Sobre a colaboração dos partidos eurocomunistas para a reorganização capitalista da economia, ver André Gunder FRANK, “Crisis económica, Tercer Mundo y 1984”, in idem, Reflexiones sobre la Crisis Económica, trad. Angels Martínez Castells et. al., Barcelona, Editorial Anagrama, 1977, pp. 57-8.
[14] “1969 Discurso de Navidad de Francisco Franco: Todo Está Atado y Bien Atado. Rey Juan Carlos”, vídeo Retroclips, 1969/2014, 0’59”, disponível em. Para a benção de Nixon e Kissinger à designação do herdeiro franquista, ver “1970 Richard Nixon Visita a Franco”, Retroclips, disponível em: . Para a benção de Gerald Ford e a segunda benção de Kissinger, ver “Visita de Gerald Ford a la España de Franco. Año 1973”, in Taliván Hortográfico, disponível em .
[15] Sobre a convocatória dirigida à “reconciliação nacional” e endereçada ao “setor empresarial, protagonista da nova sociedade industrial (….)”, proposta pela Junta Democrática, frente supranacional liderada pelo PCE, ver o documento apresentado oficialmente pelo secretário-geral Santiago Carrillo e pelo intelectual católico vinculado ao Opus Dei, Rafael Calvo Serer, em Paris (29.07.1974). Vários outros partidos e personalidades se incorporaram posteriormente como cossignatarios. Ver Vv. Aa., Declaración de la Junta Democrática de España, disponível em.
[16] Ver Peter THOMAS, “Modernity as ‘passive revolution’: Gramsci and the Fundamental Concepts of Historical Materialism”, in Journal of the Canadian Historical Association/ Revue de la Société Historique du Canada, vol. 17, n° 2, 2006, pp. 61-78, disponível em URL:; DOI: 10.7202/016590ar.
[17] Compare-se, em particular, o documento da Junta antes citado e o primeiro capítulo do livro de 1975, de Cardoso, no qual o autor também se empenha em desqualificar teses e autores da teoria marxista da dependência. Ver F. H. CARDOSO, “As novas teses equivocadas”, in idem, Autoritarismo e Democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. Para um resumo dos pontos de tangência entre os textos de Cardoso e o documento da Junta, ver Luiz Renato MARTINS, “International Benefit Society of Friends of Form and Bulletin on the Brazilian Division”, in The Long Roots of Formalism in Brazil, Chicago, Haymarket, 2019, pp. 268-71. Sobre o papel de Cardoso como articulador intelectual, estabelecendo as forças políticas que deveriam ser excluídas da negociação, ver as páginas anteriores in idem, pp. 266-68.
[18] De fato, depois de haver demonstrado que conhecia o caminho das pedras, FHC foi eleito presidente da república ano final de 1994, após haver deflagrado, meses antes, o Plano Real, uma espécie de versão local da reforma monetária da União Europeia, segundo opção análoga à que defendeu na política, adaptando os argumentos da transição espanhola ao contexto brasileiro. Quanto às similitudes de procedimiento entre o Plano Real e a aplicação do euro, ver L. R. MARTINS, op. cit., pp. 261-64.
[19] Ver nota de rodapé 2.
[20] Ver o testemunho de Emílio Odebrecht no vídeo “PET 6664 – Emílio Odebrecht Fala de Lula, um ‘Bon Vivant‘, Segundo Golbery do Couto e Silva”, disponível em. Odebrecht, ademais, afirmou no testemunho referido que colaborou com várias sugestões para a elaboração, durante a campanha eleitoral de 2002, da “Carta aos brasileiros” (22.06.2002). Por “brasileiros”, a carta se referia aos protagonistas dos grupos monopolistas, entre eles Odebrecht. Ver Luiz Inácio Lula da SILVA, “Carta ao Povo Brasileiro”, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u33908.shtml.
[21] Para mais detalhes, ver nota de rodapé 2.
[22] Nomeações adicionais de almirantes estavam previstas futuramente, segundo O Estado de São Paulo (03.03.2019).
[23] Ver Claudio KATZ, ‘¿Cuáles son las lecciones para la izquierda?’ (último tópico) en idem ‘Interrogantes de la Era Bolsonaro’ [17.11.2018], em La Haine (sitio web), disponível em.
[24] Ver nota 1.
[25] Ver, por exemplo, Rubens OMETTO (Cosan), ‘Dilma mudou muito, e empresário tem que segurar ansiedade, diz Ometto’, in Folha de São Paulo, disponível em; idem, ‘Dono da Cosan diz que é preciso reconhecer méritos de Dilma’, in Valor Econômico, 22.07.2015, disponível em ; Roberto SETÚBAL (Itaú Unibanco), ‘Não há motivos para tirar Dilma do cargo, diz presidente do Itaú Unibanco’, in Folha de São Paulo, 23.08.2015, disponível em ; Sérgio RIAL (Santander), ‘Governo ainda pode recuperar confiança, diz presidente do Santander’, in Folha de São Paulo, 10.04.2016, disponível em .
[26] Ver, por exemplo, Fernando Henrique CARDOSO, “FHC diz que impeachment de Dilma ‘não adianta nada’ ”, in O Estado de São Paulo, 09.03.2015, disponível em; O GLOBO, “Manipulação do Congresso ultrapassa limites” (editorial), in O Globo, 07.08.2015, disponível em ; Delfim NETTO, “Delfim defende Dilma de impeachment, mas critica atuação da presidente”, in Valor Econômico, 26.10.2015, disponível em .
[27] Ver nota de rodapé 1.
[28] Ver Angela ALONSO, ‘2019 Não Será Mera Reedição de 1964’, en Folha de São Paulo, 30.12.2018, disponível em.
[29] O PSOL, nascido en junho de 2004 e formado basicamente por deputados, é uma dissidência parlamentar do PT, constituída quando o primeiro governo Lula enviou ao Congresso um conjunto de reformas neoliberais.
[30] Ver P. de A. SAMPAIO Jr., ‘Para Economista, PT Falhou ao Não Enfrentar Problemas Estruturais’, entrevista a Luis Sagimoto, 02.06.2017, Jornal da Unicamp, p. 5/9, disponível em.
[31] Ver Carlos VAINER et. al., Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas do Brasil, pref. de Raquel Rolnik, São Paulo, Coleção Tinta Vermelha/Boitempo/Carta Maior, 2013. Ver também P. de A. SAMPAIO Jr. (org.), Jornadas de Junho, a Revolta Popular em Debate, São Paulo, ICP, 2014.
[32] Ver Francisco de OLIVEIRA, ‘The Duckbilled Platypus’, in New Left Review, London, NLR, n. 24, Nov.-Dec., 2003, pp. 40-57.
[33] Ver Michael Löwy, ‘MOVIMENTO PASSE LIVRE Le mouvement pour le transport gratuit au Brésil’, disponível em <https://blogs.mediapart.fr/michael-lowy/blog/241213/movimento-passe-livre-le-mouvement-pour-le-transport-gratuit-au-bresil>.
[34] De fato, ocorreram episódios violentos – infelizmente correntes -, perpetrados pela Policia Militar de São Paulo, e respostas negligentes e depreciativas do prefeito de São Paulo, F. Haddad (PT), e do governador do estado de São Paulo, G. Alckmin (PSDB), ambos em Paris, para um evento promocional de interesse mútuo, conforme relatado abaixo.
[35] Para uma ilustração do grau de submissão do PT ao capital monopolista e, especificamente, do compromisso do governo com a lógica dos megaeventos internacionais, ver o vídeo da TV FOLHA, Fernando & Geraldo, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=4bF6sO76ha4>. O vídeo mostra o prefeito do PT e o governador do PSDB junto com a cantora brasileira Daniela Mercury, atuando juntos e de modo ridículo num espetáculo em Paris, para promover a candidatura de São Paulo à Expo 2020, evento anunciado precisamente como o terceiro grande megaevento internacional no Brasil, depois da Copa do Mundo, da FIFA, e das Olímpiadas. Noutras cenas, Haddad e Alckmin aparecem ladeados pelo vice-presidente M. Temer, representando então a presidenta Dilma Rousseff.
[36] Ademais essa havia sido uma proposta governamental oficial do PT, em sua primeira administração do município de São Paulo (1989-92), logo bloqueada e impedida pelos vereadores da oposição.
[37] “Mensalão” foi um esquema de suborno descoberto em 2005, mediante o qual dirigentes do PT compraram votos de outros partidos no Congresso Nacional para apoiar projetos governamentais. Antes do PT, o PSDB havia utilizado o mesmo esquema. Os documentos sobre o caso do “Mensalão” são abundantes e fáceis de encontrar na Internet.
[38] Desgaste e rotatividade entre os membros do atual governo têm sido tão acentuados e rápidos, que o presidente do BNDES e ex-ministro de Rousseff foi demitido em 16.06.2019, com menos de seis meses de mandato, antes que este texto, originalmente escrito para uma revista estrangeira, pudesse ser publicado no Brasil, obrigando a inserção desta nota de ajuste e explicação.
[39] A visível diminuição da força política de Dilma Rousseff foi distinguida imediatamente como uma janela de oportunidades pela oposição parlamentar. Assim, algumas semanas depois, a Câmara dos Deputados, onde Rousseff em princípio detinha maioria, elegeu como presidente a Eduardo Cunha (PMDB), com um passado notoriamente duvidoso para dizer o menos, e que alimentava uma incompatibilidade ostensiva com Rousseff. No dezembro seguinte (2015), Cunha apoiaria uma fraude parlamentar, disfarçada de juizo político.
[40] Uma delegação de 12 deputados e senadores do PSL, partido dos quatro Bolsonaros, visitou a China (16-24.01.2019) para conhecer a tecnologia chinesa de controle de massas mediante reconhecimento facial, cuja implementação está sendo considerada para aplicação em terminais de transporte e outros lugares de circulação intensa.
[41] “Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto”. Cf. Caio PRADO Jr., Formação do Brasil Contemporâneo/ Colônia, São Paulo, Brasiliense/ Publifolha, 2000, p. 20.
[42] Haddad, um economista com doutorado em filosofia, e ex-ministro da Educação de Lula, trocou, inclusive, seu posto como professor de ciências políticas na USP, principal universidade pública de Brasil, para ensinar numa escola privada de economia, o INSPER, um instituto de acadêmicos ultraliberais e estudantes financeiramente privilegiados.
[43] Em março de 1935, em “Encore une fois, où va la France? ” (“Uma vez mais, para onde vai a França?”; La Vérité, 28 de março, 1935), Trotsky observou: “Uma situação revolucionária se desenvolve a partir da ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos. Se o partido do proletariado é incapaz de analisar a tempo as tendências de uma situação pré-revolucionária e intervir ativamente em seu desenvolvimento, inevitavelmente teremos uma situação contrarrevolucionária em lugar de revolucionária. O proletariado francês defronta agora precisamente este perigo”. Ver Léon TROTSKY, Où Va la France ?/ Textes sur la Situation Française de 1934 à 1938, Pantin, collection Classiques/ Les Bons Caractères, 2007, p. 65. Deixo a conclusão ao leitor.
[44] Os documentos e dados bibliográficos utilizados foram recolhidos pelo pesquisador Rafael Padial (IFCH-UNICAMP). Também devo sugestões de edição muito importantes a Carmela Gross, Pedro Rocha de Oliveira, Ana Paula Pacheco e Plínio Sampaio Jr.
* Luiz Renato Martins (Universidade de São Paulo): autor de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019), The Conspiracy of Modern Art (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2018) e Revoluções: Poesia do Inacabado 1789-1848 (vol. 1, São Paulo, Sundermann/ Ideias Baratas, 2014).
O regresso – numa nova chave – dos militares ao controle direto do Estado marca um câmbio no regime e nas relações de classe. Não obstante, o ciclo aberto agora apresenta alguns elementos similares aos do regime civil-militar que tomou o poder manu militari em abril de 1964, em nome do consórcio entre o capital monopolista e as Forças Armadas Brasileiras-FFAA. [1]
Do outro lado do espelho, o passado não passou
Mas como sustentar uma crítica histórica radical a fim de distinguir as classes sociais e suas frações, assim como o jogo próprio dos atores políticos? Neste caso, esta deve se fundar na crítica concreta de dois mitos ou falácias da chamada “Nova República” (1985-2018), ora finda. Crítica, pois, de mitos que se traduziram em ilusões de superação do ciclo totalitário, a saber, resumidamente, do putsch civil-militar de abril de 1964, do AI-5 (Ato Institucional 5, 13.12.1968) e dos ‘anos de chumbo’ dos governos Médici (1969-74) e Geisel (1974-79).
Vistos como opostos, os mitos falaciosos da “Nova República” alimentaram uma disputa fictícia durante mais de trinta anos. Sob tal disputa, um fundo comum foi eclipsado – o verdadeiro eixo de poder no Brasil – que agora abertamente retoma o controle direto do Estado, para surpresa dos incautos (que são muitos) e alívio do “consórcio” há muito no comando.
Efeitos paralisantes
Dois mitos em um, portanto, ou uma falácia desdobrada em duas: 1. a da celebrada “Transição” (1984-5), a “cena originária” da “Nova República”; 2. a do êxito da “política social” da “Nova República” durante os governos Lula I e II, traduzido na fórmula “lulista” de distribuição, que em seu auge (2010) obteve uma taxa de aprovação de 80%, como bom ou ótimo governo.[2]
O totem
Sob as duas caras do Janus da “Nova República” há um totem: o do consórcio civil-militar que interdita a frente política entre trabalhadores e setores pequeno-burgueses. De tal frente derivaram as lutas pelas “reformas de base” e outras, antes do golpe de abril de 1964.[3] Sob tal totem, interditou-se toda referência à autonomia política dos trabalhadores e à luta de classes. Ao peso do interdito se acrescentou outra falácia: a da modernização e desenvolvimento social através do capitalismo.
Modernização ex-machina
Ambos os mitos, a “Transição” e o “lulismo” (derivado do primeiro), atenderam à prescrição de continuidade totêmica do consórcio entre os monopólios e as FFAA, sempre reverentes aos influxos externos. Então, qual é o traço de continuidade, sob o jugo do consórcio? O culto à modernização dependente, quer dizer, devida às inversões externas. Atraí-las é um rito típico de uma casta de grandes empresários e círculos subordinados.
Em suma, teor de classe do regime e modo interno de produção se constituiram sob o amparo do estado de dependência e da associação com o capital monopolista, que são inseparáveis dos influxos externos. Assim, os preceitos totêmicos em toda a “Nova República” infundiram um teor de classe similar em todos os seus governos. O nexo fundamental daquela girou sempre em torno da “dependência associada”, quer dizer, da suposta coexistência benigna entre as economias centrais e periféricas.[4]
Uma teoria crítica
O debate teórico sobre as relações de dependência na América Latina obteve reconhecimento internacional e é vital para a compreensão crítica da chamada “Transição”. Em sentido contrário à tese da “dependência associada”, o trabalho crítico feito no exílio pelo grupo da Teoria Marxista da Dependência (R. M. Marini, V. Bambirri, T. dos Santos e o economista alemão exilado Gunder Frank)[5] construiu uma nova série de conceitos específicos sobre dependência, como os de “superexploração” do trabalho e “subimperialismo”, originando assim uma crítica sistêmica acerca da relação desigual e combinada entre economias centrais e periféricas.[6] Posteriormente, Marini formulou em 1978 a noção de “Estado de contrainsurgência”, na qual incluiu a função intrínseca da tutela, exercida pelas FFAA como quarto poder do regime.[7]
Tais construções críticas estabelecem parâmetros para um enfoque crítico da inflexão da ditadura brasileira a partir de 1972, e também do que se segue, incluindo a inflexão social da “Nova República” ou o “lulismo”. Entretanto, também é necessário confrontar tal elaboração à análise histórica dos dados atuais, para responder à pergunta posta e urgente sobre a economia, a gênese e a estrutura de classes da nova ordem atual.
De um modo ou de outro, tal indagação implica a crítica das ilusões inerentes ao estado de “dependência associada”, que formou o ambiente falacioso dos mitos da dita “Nova República”. Em resumo, tais falácias levaram o PT a priorizar a modernização e o crescimento capitalista, seguindo o mesmo modelo e, portanto, a cultivar vínculos com o capital monopolista e os partidos da ordem.
Na prática, tais falácias naturalizaram a adoção de procedimentos e hábitos inerentes ao sistema político engendrado pela falsa “Transição”. Logo, como imaginar outro fim para o programa de alianças e objetivos que o PT se fixou, se, na Itália, o PCI, ao priorizar o crescimento econômico e se aliar ao capital monopolista, tido como modernizador, tomou o caminho que o levou à autodissolução?[8]
Crítica histórica I: a “Transição”, face e avesso
A origem declarada do mito da “Transição” reside nas eleições para o Senado (15.11.1974), consentidas pela ditadura. A vitória do Movimento Democrático Brasileiro (MDB) nessa prova deu lugar ao mito do “partido-ônibus” para a “Transição”. Porém, tal falácia servia para encobrir o trabalho de laboratório da ditadura, para o falso processo de transição, como ação preventiva. De fato, subjacentes à proclamada e celebrada versão local, influíram múltiplos fatores externos. Desde o início de 1974, Espanha e Portugal foram observados como modelo e alerta respectivamente.
No entanto, antes que tais exemplos antitéticos entrassem em cena, ocorreu a intervenção nos bastidores de um especialista em contrainsurgência. O professor Samuel Huntington, de Harvard, atuou como consultor da ditadura brasileira desde outubro de 1972, pelo menos.[9] Portanto, o projeto de “descompressão política” do regime data de muito antes da ascensão eleitoral do MDB. [10] Tomado em seu conjunto e para além das circunstâncias, o caso interessa como índice da articulação imperialista global e da dependência “permanente”, e também por seus efeitos secundários, analisados adiante. De fato, o Brasil não foi uma exceção e Huntington foi principalmente o autor chave de uma “doutrina global de contrainsurgência” (post-1968).[11]
“Atada y bien atada (Amarrada e bem amarrada)”
Logo, qualquer roteiro de “descompressão política”, concebido como ação preventiva, implicava também o roteiro paralelo das técnicas de contrainsurgência. A Espanha foi o caso mais notório nos anos 1970 de tal tipo de trama palaciana.[12] Contou com a colaboração ativa de partidos eurocomunistas[13] e se converteu num “showcase” das técnicas de “descompressão”. Quer dizer, do processo de substituição das ditaduras militares por democracias tuteladas compatíveis com o capitalismo.
De fato, a transição espanhola mostrou-se “atada y bien atada (amarrada e bem amarrada)”, como disse o tirano.[14] Assim, o regime reciclado, segundo moldes dinásticos, teve suas garantias políticas e de classe, bem como seus pilares históricos preservados. Ao mesmo tempo, a “Transição” abriu espaço à modernização econômica e ao protagonismo empresarial, com pleno consentimento do PCE.[15]
Nestes termos, a transição espanhola logo se converteu no nec plus ultra, não só político, mas também econômico, das burguesias periféricas. Parte das classes dominantes latinoamericanas, que aspiravam a novo ciclo de modernização-conservação – ou “revolução passiva”, como diria Gramsci –,[16] se inscreveram no novo estágio de treinamento e favores correlatos de Washington. Em consonância, no Brasil, o general Geisel, que governou de 1974 a 1979, já em seu discurso de posse (15.03.1974) apresentou a fórmula da dita “abertura política lenta, gradual e segura”, ecoando a fórmula franquista.
De fato, no Brasil, tal semente mostrou-se duradoura e frutificou para as gerações burguesas seguintes. O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento-CEBRAP, fundado em 1969 com dotação da Fundação Ford, foi o ponto de aglutinação do think tank civil dos seguidores do modelo ibérico, sob a liderança do sociólogo Fernando Henrique Cardoso-FHC. Ideólogo da “dependência associada”, além de arauto do papel político e modernizador dos empresários, FHC começou a reproduzir em seus textos os principais argumentos da lenda espanhola.[17]
Com efeito, depois de alguns reveses, como a inesperada morte de Tancredo Neves (21.04.1985), sucedâneo local de Suárez, e de contratempos econômicos inerentes às economias dependentes, o Brasil adquiriu, senão um novo rei como a Espanha, ao menos uma nova moeda (por ironia involuntária ou histórica chamada “real”, em 1994), e FHC, uns meses depois, foi aclamado como presidente da república.[18] Além da modernização monetária e do “aperfeiçoamento constitucional” para obter a reeleição, FHC, como plenipotenciário do “consórcio”, também atualizou a economia segundo o “Consenso de Washington” (1990).
Crítica histórica II: 2003-10, o milagre social de “dar sem tirar”
O dirigente sindical Lula, do chamado Partido dos Trabalhadores-PT, sucedeu a FHC após assegurar o cumprimento de todas as “cláusulas fixas” da falsa “Transição”, enriquecida pelas prescrições do Consenso de Washington: promover a modernização em consonância com as instituições financeiras multilaterais e respeitar dívidas e contratos firmados; manter a dependência associada do Brasil, respeitando a função chave do protagonismo empresarial; não abrir as investigações sobre os atos de terrorismo do Estado praticados pelos militares e manter a anistia aos torturadores. Foi o suficiente para que Washington reconhecesse e exaltasse a “razoabilidade” de Lula.
A partir de então, as qualidades de Lula foram aclamadas interna e externamente. Dados os estudos críticos acima, desnecessário detalhar suas políticas distributivas.[19] Me limitarei a sublinhar que a magia efêmera de Lula (que “deu a muitos sem prejudicar a ninguém”, segundo um líder empresarial emblemático)[20] foi de natureza exclusivamente monetária, graças à elevação temporária dos preços das commodities minerais e agroindustriais.[21]
De todo modo, o “milagre social brasileiro” foi enaltecido como paradigma global de multiplicação distributiva, na medida em que redistribuiu a renda, como numa distribuição de dividendos, preservando as relações de propriedade e a assimetria absoluta de poder entre as classes.
De maneira similar, a sabedoria pragmática de Lula manteve ispsis litteris ou inclusive desfrutou como um virtuose do sistema político-partidário herdado da falsa “Transição”, obtendo geralmente grandes maiorias no Congresso. De fato, Lula redistribuiu a renda em todos os níveis, incluindo outros sócios e acionistas da “Transição”.
Falsos dilemas
O novo ciclo não difere substancialmente no que tange à dependência, a não ser por evoluir segundo o novo ritmo da Casa Branca. Não obstante, a muitos surpreende que, dado o giro da roda política no Brasil, o governo de hoje inclua mais generais como ministros chave, quase uma dezena, do que todos os governos militares posteriores a 1964, sem falar na quase centena de oficiais (99, segundo contagem recente de um grande diário) de alta patente em outras funções chave.[22] Além disso, é preciso assinalar que, se na época dos generais (1964-85), estes eram considerados correntemente como conspiradores e usurpadores, agora regressam como “redentores”, convocados pelas votações de outubro passado. Esse é o novo “milagre brasileiro”, que importa decifrar.
Decifra-me ou te devoro
Em síntese, os elementos novos da situação surgem na inclinação dos votos que buscaram a ultradireita e lhe deram apoio eleitoral inédito.
Em contraste com o destino atual da ultradireita, a classe trabalhadora é continuamente deslegitimada, como sujeito político, e degradada pela imprensa. A justificativa para os ataques provém do colapso do PT e de seu descrédito moral, caluniosamente transferido à toda a classe. A crítica política e histórica ao PT, bem como à falsa “Transição”, de cujos lucros o partido participou, é, portanto, fundamental para a reconstrução da perspectiva política dos trabalhadores independentemente do PT.
Além disso, a complexidade da situação do PT, políticamente duvidosa e muito perigosa para a perspectiva dos trabalhadores, é impossível de decifrar, sem que se examine antes as razões substantivas e a cronologia do colapso político do PT como Partido da Ordem. É necessário elucidar a fraude política, social e econômica que o partido promoveu, para compreender a enorme decepção popular consecutivamente engendrada e que nutriu a ultradireita.
Decepção
Na contracorrente da maioria das análises brasileiras, o economista argentino e marxista Claudio Katz sublinhou:
“Esses trabalhadores escutaram, toleraram e finalmente aceitaram a propaganda da direita por terem sido fraudados pelo PT. Essa decepção explica a fulminante ascensão do troglodita (…)
Muitas avaliações do triunfo de Bolsonaro omitem este balanço ou apresentam o PT como mera vítima dos ardis direitistas. Evitam a questão de sua responsabilidade política pelo resultado final”. [23]
Com efeito, a decepção dos trabalhadores foi apropriada, tragada (manipulada digitalmente) e fundida com o reacionarismo histórico e estruturalmente antidemocrático das classes proprietárias no Brasil, tal aquele que “fabricou 1964” como um projeto histórico de classe.[24]
Daí, de tal fusão, processada industrialmente, irrompeu o tufão anti-PT, que se apoderou de grandes porções da pequena burguesia. Tal fenômeno dividiu e arrastou inclusive setores que se haviam beneficiado do aumento do consumo e do crédito, propiciado pela política monetária dos governos do PT, ainda que também tenham sido afetados pela pregação evangélica e pela blitzkrieg (guerra-relâmpago) deflagrada nas redes sociais. Deste modo, não só os diminutos grupos sociais vinculados orgânicamente ao capital monopolista, mas também amplos setores das classes subalternas votaram por candidatos e partidos da ultradireita.
2013-2016: crise, colapso e declaração da guerra civil de classe
Em resumo, o colapso político do PT, por um lado, e a guerra civil de classe unilateralmente declarada, por outro, são os fenômenos decisivos que determinaram o fim do ciclo conciliatório da falsa “Transição”. Eles pesaram decisivamente no resultado político de 2018. Ambos fenômenos se configuraram como conjuntos de fatos e razões, enumerados e comentados a seguir. Entretanto, os acontecimentos que conduziram aos dois fenômenos principais (a saber, o colapso político do PT e a declaração unilateral da guerra civil de classe) tiveram lógicas, ritmos e origens diferentes, que cumpre precisar.
Mais tarde, ambos os fenômenos começaram a evoluir em interação e adquiriram, por certo, uma dinâmica mutuamente ativada, opondo-se diretamente um ao outro. Deste modo, hoje, ambos aparecem simultaneamente e na situação de polos opostos, como ocorreu, por exemplo, no segundo turno da eleição de outubro passado: por um lado, o PT, isolado e literalmente perseguido nas redes sociais por milícias eletrônicas; por outro, a ultradireita, que capitalizou a guerra civil declarada, recorrendo a armas de todo tipo, inclusive, à orquestração de mentiras em série, como fizeram os nazis, para esmagar o que ainda restava do PT.
Porém, um fenômeno precede o outro. O colapso precede a declaração de guerra. É preciso ter presente o curso dos acontecimentos, senão será impossível se entender como o bloco de ultradireita, historicamente diminuto, cresceu tanto eleitoralmente. A ultradireita, originalmente insignificante e sem nenhuma máquina partidária, deitou raízes e prosperou, com recursos de outra ordem, num campo devastado. Que campo? O das esperanças frustradas que resultaram de políticas equivocadas (senão do fraude direto e deliberado) e da hipocrisia do PT.
A ordem dos fatores
Em resumo, o colapso político do PT e depois grande parte do sentimento anti-PT daí gerado constituíram fenômenos substitutivos, nessa ordem, do falso êxito da inflexão social da “Nova República”. A ordem dos fatores, numa progressão encadeada, foi portanto: 1. a inconsistência da magia social do “lulismo”, revelada pela crise econômica e agravada posteriormente pela hipocrisia da aliança do partido com o capital monopolista; 2. o colapso político do PT; 3. o crescimento explosivo do sentimento anti-PT, muito além de seu enclave original (demograficamente restrito a certos setores das classes proprietárias), em meio aos quais subsistia um anticomunismo endêmico, agora delirantemente revigorado, uma vez que o novo presidente já irrompeu em público, umas tantas vezes, em insultos à URSS (sic)!
Em suma, o anticomunismo resiliente provém de grupos economicamente poderosos, capazes de influir sobre os responsáveis pela tomada de decisões, mas historicamente incapazes do ponto de vista eleitoral. Como chegaram a tal crescimento explosivo é o que agora importa determinar.
Gênese de uma guerra de classe
Neste quadro, cumpre notar que no campo do grande capital se produziu uma dinâmica específica, da qual se originou a guerra civil de classe, unilateralmente declarada pelo capital monopolista. Até agora este recebe um forte apoio, mas por outras razões, da pequena e média burguesia, misturando-se então com outros fatores e variantes de classe, relativos a estes últimos estratos sociais. Porém, no começo, tal dinâmica tinha características únicas, inerentes a objetivos e necessidades estratégicas do capital monopolista.
Este último, de fato, só contra a vontade entrou em conflito com o governo e o PT, e só depois de ter tratado de preservar a associação e apoiar as políticas de austeridade propostas pelo governo de Rousseff. Assim, mesmo depois de começada a mobilização política contra Rousseff, ocorreram algumas manifestações pessoais de líderes de grandes grupos econômicos e, inclusive, da oposição, em apoio à primeira.[25]
Enfim, a aliança dos monopólios com o PT e o governo era duradoura e razoavelmente sólida, e se manteve bem além dos primeiros atos de ruptura das classes médias e altas, assim como das manobras parlamentares para a derrubada de Rousseff, criticadas nos editoriais de periódicos como O Globo (07.08.2015), ou por personalidades com peso na oposição.[26]
Aviso de incêndio nos camarotes VIP
Na verdade, a ofensiva do capital monopolista contra os direitos das outras classes nasceu da necessidade de recompor os mecanismos de acumulação frente à crise econômica, e simultaneamente em resposta ao colapso político do PT. Assim, ambos os problemas, a crise econômica e a crise política se combinaram e se converteram em perdas imediatas e concretas para o capital monopolista, já que causaram forte redução dos fluxos financeiros e dos contratos governamentais. De fato, durante dez anos, de 2003 a 2013, o governo do PT se associou de muitas maneiras ao capital monopolista, favorecendo-o decisivamente mediante financiamentos, contratos e isenções fiscais, etc., alegando fomentar o crescimento econômico.
Saídas de emergência para os monopólios
Ante o desmoronamento do governo e do poder do PT no Congresso (adiante discutidos), o capital monopolista fez o que se faz frequentemente no mundo dos negócios: atirou ao mar o sócio arruinado e partiu à cata de butins, mirando em primeiro lugar, é claro, o Estado. Trocando em miúdos, escolheu apoderar-se dos ativos das empresas estatais e dos fundos públicos destinados aos serviços sociais (educação, saúde, habitação, seguridade social, bolsa-família, etc.) que, mesmo sendo precários como prestações sociais, constituen fundos suficientemente importantes para modificar os balancetes de grupos transnacionais em crise.
Causa mortis: a política, não as armas
Entretanto, o atual assalto da direita ao poder é muito diferente do que ocorreu em 1964. Agora, as razões endógenas preponderaram sobre as exógenas, de modo inverso ao que ocorreu no paradigma principal anterior.
Assim, para elucidar o teor do “golpe de classe”, o livro de Dreifuss citado antes[27] investigou detalhadamente o amplo espectro das atividades preparatórias do golpe de abril de 1964, promovidas por organizações como o IPES e o IBAD, irrigadas pelo capital monopolista. Decerto, deve-se levar a cabo investigação similar sobre a atual guerra de classe, em cujo curso ocorreu também uma multiplicação de institutos – nascidos como cogumelos –, para popularizar a doutrina neoliberal, assim como durante a crise política pipocaram várias milícias juvenis para a agitação política de ultradireita.[28]
Porém, nem os cogumelos neoliberais nem as milícias juvenis (fenômenos limitados à esfera dos diferentes estratos da burguesía) causaram o colapso do PT. É fato que o cerco ao PT foi concebido tal e qual um golpe de classe. Mas a queda do PT do governo não foi fundamentalmente consequência de fatores exógenos, como ocorreu com o governo de Goulart no Brasil em 1964 e o de Allende no Chile em 1973, ambos derrubados por golpes militares diante da ausência de tropas leais e armas, suficientes para defender o governo.
Desta vez, pelo contrário, a incapacidade do PT para se defender do golpe de classe tem raízes endógenas e características inegáveis de crise e colapso político. O capítulo da queda de Rousseff foi muito bem resumido pelo economista da UNICAMP Plínio Sampaio Jr, [29] exponente da ala esquerda do PSOL:
Depois de negar todas suas promessas eleitorais, Dilma começou a tercerizar seu próprio governo. Não podemos esquecer que Temer chegou a exercer a função de principal articulador político de Dilma. Ela tercerizou a tal ponto o governo que se tornou supérflua. Saiu com um peteleco. Dilma é vítima do golpe dado por ela mesma na classe trabalhadora, o que esvaziou o seu governo, criando um vácuo de poder que esses delinquentes liderados por Eduardo Cunha e Temer ocuparam.[30]
Se não se entende isto, tampouco se entenderá a subsequente ascensão eleitoral da ultradireita. Em resumo, a debilidade política do governo de Rousseff e, na sua esteira, o enfraquecimento eleitoral relativo do PT, nas eleições de 2016 e 2018, provieram sempre da degradação crescente e desconexão, em consequência, do partido com seu eleitorado e suas bases de apoio organizadas. Posteriormente, tal fenômeno se estendeu e acometeu outras classes. É preciso, pois, retornar a junho de 2013, para distinguir a eclosão epidêmica de tais sintomas.
Brasil 2013: a floresta seca começa a arder
As grandes e surpreendentes manifestações de junho de 2013,[31] em 22 capitais de estados e 400 cidades do Brasil, com três milhões de trabalhadores envolvidos em greves, foram as maiores no Brasil desde o movimento das Diretas Já (1984), este último abortado em rito sumário pelo MDB que o trocou pela falsa “Transição” via Colégio Eleitoral.
Os protestos de 2013 mudaram decisivamente o panorama político interno, assim como a imagem global do Brasil. Até então, o Brasil era tido internacionalmente como exemplo de democracia consolidada e estável, e além disso, sua economia, como fundamentalmente próspera. Duas capas de The Economist exemplificam tal mudança da imagem do Brasil no exterior, observada a partir de junho de 2013. Assim, em novembro de 2009, a revista publicou em sua capa a seguinte chamada: “O Brasil decola (Brazil takes off)”. Pelo contrário, na capa de setembro de 2013 depois dos protestos massivos, estala uma dúvida: “O Brasil gorou? (Has Brazil blown it?)”
Porém, bem antes de tais comentários (no fim das contas em sintonia com a busca de oportunidades de investimento rentáveis) formulou-se um alerta veemente, associado a uma crítica fulminante, por parte do sociólogo e fundador do PT Francisco de Oliveira, ex-membro das equipes que haviam preparado os planos de governo do PT nas campanhas dos anos 1980 e 1990. Assim, em ensaio publicado em junho de 2003,[32] apenas seis meses após a posse de Lula na presidência, o autor diagnosticou o desenvolvimento no Brasil de um novo padrão de acumulação de capital, baseado na apropriação de fundos públicos, transferências patrimoniais, privatizações e outras formas de “acumulação truncada”. Para concluir, assinalou que um tal processo era conduzido por uma “nova classe”: sindicalistas atuando concertadamente com especialistas em finanças e conselheiros dos fundos de pensões.
Deste modo, o que Francisco de Oliveira observou, já em marcha na primeira administração de Lula, não foi outra coisa senão a articulação de dirigentes do PT, e lideranças sindicais associadas, com o capital monopolista, para a gestão compartilhada dos fundos de pensão, nos quais o governo como grande empregador exercia papel decisivo. Tais fundos, muitos dos quais formados por poupanças dos empregados de grandes empresas estatais, movimentavam somas gigantescas, equivalentes às dos maiores players do mercado financeiro de São Paulo.
O sentido da advertência de Oliveira demorou dez anos para chegar às ruas, mas quando se tornou tangível e evidente, a multidão se apoderou das ruas tempestuosamente. O que pretendiam os heterogêneos manifestantes de 2013, em meio a queixas diversas e expressões de descontentamento generalizado?
O gatilho das manifestações foi o aumento das tarifas de ônibus em São Paulo e outras capitais de estados.[33] É fato que as convulsões dos estudantes e de jovens trabalhadores devido às altas das tarifas ocorriam habitualmente todos os anos, mas sempre limitadas a pequenos grupos, o principal dos quais era o Movimento Passe Livre (MPL). Mas, em 2013, as manifestações ampliaram-se como fogo incontrolável em floresta seca. Qual foi a faísca que, nesse junho, mudou a história?
Afora alguns incidentes iniciais – que contribuíram de algum modo, para esquentar os ânimos –,[34] o que tornou o contexto de 2013 tão explosivo foi o compromisso escandaloso (para a maioria das pessoas) do governo federal, assim como de vários governos estaduais e administrações municipais, com a FIFA, para realizar a Copa do Mundo de 2014, acrescido de acordos similares, com vistas à Olímpiada de 2016, no Rio.
Submissão cega e cobiça
Porém, submissos aos setores do capital monopolista diretamente interessados na realização dos jogos,[35] os governos do PT justificaram o aumento das tarifas, com discutíveis argumentos contábeis. Ou seja, politicamente não se deram conta de que as manifestações se ampliaram precisamente quando passaram a visar, além do aumento das tarifas, a associação dos governos e do PT com o capital monopolista.
Num abrir e fechar de olhos, as manifestações começaram a reivindicar estridentemente a melhora e a gratuidade universal dos serviços públicos. Logo se ampliaram de modo ilimitado. De fato, especialmente em São Paulo, havia uma demanda histórica de transporte público gratuito.[36] Mas a invenção política espontânea, que produziu um salto na reivindicação geral, veio da comparação explosiva em 2013 entre o aumento das tarifas e os gastos abusivos dos governos, para a Copa do Mundo de 2014. Uma vez acesa a faísca, muitos dos cartazes e faixas de protesto começaram a trazer demandas irônicas, mas furiosas, por mais hospitais, escolas e transporte segundo o “padrão FIFA”, utilizado para os luxuosos estádios e centros de treinamento, em construção em várias cidades brasileiras.
A partir de então, as deficiências dos serviços públicos foram todas atribuídas aos gastos com os grandes eventos esportivos. Num átimo, o PT foi responsabilizado politicamente por associação suspeita com os grupos monopolistas do luxo e do turismo. Só a direção do PT e os governos locais envolvidos, todos associados aos monopólios, não se deram conta da urgência de um gesto político decisivo: cancelar os dois megaeventos internacionais e investir o dinheiro disponível nos serviços públicos essenciais.
A situação saiu do controle. Em duas semanas, as capitais estaduais e cidades médias do Brasil se converteram em campos de batalha. Palácios de governo foram sitiados por manifestantes enfurecidos. A porta principal da sede da prefeitura de São Paulo (então em mãos do prefeito Haddad, um dos favoritos de Lula) foi atacada por uma multidão com um aríete. Aspectos medievais e contemporâneos se juntaram no caldo de crise econômica e insatisfação generalizada. Os noticiários televisivos ao vivo mostravam a cena a parir de helicópteros, porque seus veículos no chão haviam sido atacados e queimados.
Descontentamento burguês
Foi então que setores da burguesia e das classes médias notaram que o papel bonapartista atribuído ao PT, de conter e manejar as massas (nascido do descrédito do segundo mandato de FHC [1999-2002]) havia esgotado sua efetividade e validade. A era da conciliação havia chegado ao fim. As classes proprietárias perceberam imediatamente o fato. Quer dizer, muito mais rápido do que as burocracias partidárias e sindicais. Desde então, alguns signos de descontentamento burguês começaram a aparecer abertamente nos grandes meios de comunicação. Tal descontentamento, por certo, era muito distinto daquele das ruas, que exigiam serviços públicos gratuitos e de qualidade digna. De fato, as classes médias e altas não utilizam, de modo geral, os serviços públicos no Brasil. Não obstante, haviam atribuído ao PT, como Partido da Ordem gozando de credibilidade popular, o papel de prevenir greves e manifestações massivas.
A convulsão se estendeu pelas ruas. Se algo havia em comum entre os protestos de rua e aqueles distintos, veiculados pelos grandes meios de comunicação, em meio à disparidade social das expressões relativas às diferentes classes, era o rechaço da corrupção. E desde logo, senão desde 2005 (quando o chamado escândalo do “Mensalão” estourou)[37] a corrupção havia sido tipificada como uma característica inerente à associação entre o PT e os grupos monopólicos.
PT e governo na encruzilhada
Dois semestres se passaram em meio a sinais crescentes de descontentamento: por um lado, a demanda popular por serviços públicos; por outro, a multiplicação e repetição das críticas das classes proprietárias (até então em lua de mel com o PT), diante da recém-descoberta incapacidade política e administrativa do partido.
Logo vieram as eleições gerais e presidenciais de outubro de 2014, sob uma atmosfera inédita de polarização de classes e descontentamento generalizado. Os contrastes entre as classes, ainda que superficialmente expostos, se exasperaram: pobres e ricos distinguiram-se claramente em posições opostas e as discussões eleitorais estenderam-se, com veemência, a situações e esferas tradicionalmente alheias à política.
Nestes termos, Rousseff recebeu uma mensagem sem meias tintas de parte das forças populares, aglutinadas contra a política de cortes nos gastos públicos e sociais, pregada pelo candidato do PSDB. Em correspondência, a promessa incisiva que se cristalizou na campanha eleitoral de Rousseff, impulsionada pelo eleitorado popular que a apoiou, foi de forte rechaço às medidas de austeridade, propostas pelo PSDB. De fato, Rousseff ganhou por estreita margem, de cerca de 3%, fazendo proclamas contra a austeridade.
Estelionato eleitoral
Repetiu-se então a cegueira política que levou o PT a insistir na realização dos megaeventos. E pelas mesmas razões: associação de interesses com o capital monopolista. Assim, após uma pausa, e sem nenhuma explicação coerente com sua reviravolta, Rousseff anunciou a nomeação de Joaquim Levy como ministro da Fazenda. Não por acaso, um vero “Chicago-boy” e economista do segundo maior conglomerado financeiro do Brasil, Levy converteu-se, sob o governo atual da ultradireita, no presidente do BNDES, o maior banco público de investimentos.[38]
Nestes termos, Rousseff contrariou frontalmente o que estava escrito no programa econômico de campanha, além de assumir plenamente as razões e diretrizes das medidas de austeridade, defendidas pelo oponente derrotado nas eleições. Estava cavando sua própria tumba. Num Brasil crescentemente polarizado, a medida foi entendida na hora como o que realmente era: nada menos do que o resultado de manobras de bastidores e uma traição direta às promessas feitas em troca do voto popular. A memória eleitoral ainda estava fresca. No transcurso de umas poucas semanas, a recém-eleita presidenta, que havia conseguido, como é habitual, algum apoio extra com seu triunfo eleitoral, perdeu cerca de de ¾ de sua popularidade: seu índice de aprovação caiu para cerca de 15%.[39]
Governo em demolição
Coerente com sua estratégia de trair o voto popular em favor da associação com o capital monopolista, Rousseff apresentou ao Congresso um pacote de medidas de austeridade recomendadas por seu ministro da Fazenda. Porém, o giro de 180 graus de Rousseff não foi tão afortunado quanto pareceu, à primeira vista, o de Tsipras, na Grécia. Já, no Brasil, a reviravolta resultou duplamente deficiente, de cara: primeiro, despertou ira e protesto dos sindicatos e do eleitorado do PT em geral, reduzindo ainda mais seu apoio, o que acelerou seu isolamento político, inclusive, entre os parlamentares do próprio partido; segundo, os partidos burgueses da oposição, inclusive quando apreciavam as medidas, votaram contra elas, para impedir sua implementação, porque viram no enfraquecimento político fulminante de Rousseff uma oportunidade para recuperarem o controle do Estado.
A campanha anti-Rousseff ganhou as ruas, com manifestações de massas cada vez maiores, inicialmente dominadas pela centro-direita, mas já com a presença visível da ultradireita, e com um apoio cada vez mais ostensivo do capital monopolista. Este debitou ao PT a não aprovação das medidas de austeridade, ditas preliminares à recuperação das taxas de lucro e ao retorno dos investimentos.
A estratégia da guerra de classe ganhou apoiadores e o próprio vice-presidente da república, o ex-aliado Michel Temer (PMDB), mudou de lado. Por certo, o processo tomou as características de um golpe de classe, mas après-coup, segundo a terminología psicanalítica. Porque o programa de austeridade defendido pelo governo e a erosão política, agravada pelas acusações de corrupção contra líderes do PT descobertos em relações suspeitas com o capital monopolista, corroeram as bases sociais do governo e converteram-no em presa fácil, acuada e isolada.
Divórcio
Como vimos, o capital monopolista, quando não vislumbrou outra saída, rapidamente atirou o PT ao mar e declarou a guerra de classe. Consecutivamente, hoje, comanda um proceso de guerra social, em escalada contínua há mais de três anos, desde a queda de Rousseff em abril de 2016.
O PT, por sua vez, participou das eleições municipais, de 2016, e das gerais, de 2018, sob feroz e excruciante ofensiva de classe da burguesia, mas sempre insistindo num projeto de conciliação. Ou pelo atavismo de sua conexão orgânica com o falso sistema político da “Transição”, ou porque aposta(va) todavia na recomposição de sua associação orgânica com o capital monopolista, o fato é que o PT insistiu no projeto de conciliação com os monopólios, para retomar o crescimento econômico. Pregou no deserto, e, se de todo modo obteve cerca de 45% dos votos no segundo turno, credite-se tal apoio momentâneo unicamente ao impulso antifascista do eleitorado. Não ficou eco, traço ou pedra de seu pálido programa econômico.
Em contraste, a estratégia da guerra de classe ganhou ampla aceitação em estratos da burguesia que não estavam diretamente vinculados aos monopólios. Por que? A pergunta é pertinente e urgente, mas não leva a resposta rápida. A questão resulta de uma síntese de múltiplas determinações. Múltiplas forças ora atuam em convergência, para criar na sociedade brasileira uma deriva fascistoide, com danos gerais e irreversíveis para as próximas gerações.
Guerra total
Em resumo, há um programa de genocídio social em curso dirigido pelo capital monopolista, mas que envolve diferentes estratos das classes proprietárias. Decerto dentre estes observam-se interesses econômicos discordantes. Não obstante, tais grupos encontram-se hoje em coalizão contra a classe trabalhadora em geral: operários, camponeses, servidores públicos, sem-teto, favelados e quilombolas, povos da floresta e indígenas, comunidade LGBTQ e outros. De fato, a coalizão conduz uma ofensiva, em vários âmbitos e esferas, contra os direitos sociais em geral.
Do ponto de vista do capital monopolista, o objetivo em vista de um novo salto produtivo é estabelecer um novo padrão de acumulação, dado por aumento no nível de super-exploração do trabalho – o que é facultado pelo novo regime trabalhista recém-aprovado –, combinado à redução no gasto social e a investimentos múltiplos no sistema repressivo.
Deve-se concluir que, deixando a era do devaneio mediterrâneo da falsa “Transição”, a plutocracia do Brasil entrou agora em novo estágio, visando ao modelo asiático de produção intensiva, sem direitos civis nem benefícios sociais? O fato é que junto com o prometido e reiterado alinhamento com a política externa de Trump, a busca de métodos chineses de controle de massas já está em marcha.[40] De todo modo, a afirmação do historiador Caio Prado Júnior, em 1942, de que a América portuguesa havia se formado não para gerar vida social, mas segundo objetivos exclusivamente produtivos, comprova-se outra vez historicamente fundada e atual.[41]
Entretanto, até que ponto os demais setores das classes proprietárias se beneficiarão da liquidação dos direitos trabalhistas e de outras proteções sociais? A voragem da concentração de renda decorrente, por sua vez, não arrastará parte substancial das empresas privadas e da relativa independência econômica de outras formas de propriedade? Enfim, fica a pergunta: estariam tais setores atuando inscientemente contra seus próprios interesses?
Bode expiatório
Em suma, se ainda não está claro o que é que o restante das classes proprietárias procura economicamente abocanhar, na ampla privação de direitos sociais e na reestruturação da sociedade brasileira, delineada pela ditadura do dinheiro, existe, no entanto, um aspecto extra-econômico que chama a atenção. Este deriva possivelmente de uma reação defensiva – em uníssono – da classe dominante. Consiste no aspecto flagrante da conivência de classes, manifesto no amplo consenso reunindo poder judiciário, grande imprensa, entidades representativas das chamadas profissões liberais, em resumo, as classes proprietárias em geral, de que o cerco contra o PT deve assumir (como de fato assumiu) o caráter institucional de uma guerra total, contrária à todas as salvaguardas constitucionais.
Mas como explicar o alcance e a histeria de tal consenso de classe, inclusive à luz da proposta do PT, de lançar um candidato mais que moderado e de acordo com os standards do PSDB?[42] Com efeito, como se sabe, o PT abriu seu programa e buscou aproximação, prometendo ceder em todas as linhas, mas foi em vão. As classes proprietárias mostraram que não queriam armistício nem diálogo, priorizando abertamente a guerra total.
É provável que tal conluio supra e infra-legal constitua uma resposta à revelação do padrão de criminalidade vigente nos negócios. Isto serviu e foi útil para encarcerar os líderes do PT, mas, como argumento e lâmina de duplo corte, também pode eventualmente servir contra a propriedade em geral no Brasil.
Com efeito, frente ao que foi revelado nos turvos episódios, coprotagonizados pelo capital monopolista e partidos políticos, de quantos Daumiers, Grozs, Brechts e Heartfields se precisa, para descrever o padrão corrente de conduta do CEO de uma grande empresa no Brasil nas últimas décadas?
De fato, o nível de criminalidade das classes proprietárias no Brasil tornou-se tão alto diante de qualquer padrão global, e tão além de qualquer marco individual e circunstancial, que provavelmente levou à compreensão intuitiva das classes proprietárias, de que era necessário desviar a atenção geral dos aspectos suspeitos envolvendo toda acumulação de riqueza no Brasil. Neste sentido, a insistência no cerco e na campanha anti-PT, e as numerosas manobras judiciais de magistrados e procuradores, mobilizadas seletivamente contra o partido (inclusive ignorando todos os critérios e procedimentos de isenção e imparcialidade do aparato judicial), bem podem derivar de um impulso intuitivo de defesa da própria classe.
A insistência, se a tese procede, busca evitar provavelmente a iminente conclusão geral, de que todo o capital e toda propriedade, no Brasil atual, resultam da despossessão dos direitos sociais e bens ambientais, assim como do saqueio dos fundos do Estado.
Dique
Por quanto tempo prevalecerá tal tática, antes que a fúria das grandes maiorias sociais volte a aflorar? Exemplos recentes não faltam: em junho de 2013, contra o aumento das tarifas de transportes públicos e os gastos com a Copa e a Olimpíada; em 2015-16, vários protestos massivos contra o PT; nas eleições de 2018, tsunâmi anti-PT, convertido então – em operação oportunista acima referida –, em emblema único do estado de corrupção generalizada. Quando virá o próximo maremoto?
Até agora, cumpre reconhecer que a estratégia unitária da burguesia, malgrado tudo, funcionou e, por conseguinte, logrou dissuadir ou desviar a ira popular, impedindo-a, em síntese, de distinguir os abismos sociais, o capital monopolista e a propriedade em geral como imediatamente suspeitos.
Entretanto, a explosão de ira e ressentimento que levou a ultradireita ao poder de Estado, em outubro passado, provavelmente não constituiu o “happy end” fascistoide definitivo. Assim, é bem provável que se produzam outros movimentos sísmicos de fúria popular, dada a falta de legitimidade que hoje envolve todo o sistema político-partidário e, possivelmente, as hierarquias sociais em geral.
Fendas no dique
Numa série de pesquisas publicadas pelo jornal Folha de S. Paulo na primeira e segunda semana após a posse do novo governo, quer dizer, quando a erosão política ainda era mínima, despontam sinais de persistência de crise duradoura e instabilidade, de longo prazo, no quadro político. Assim, os dados da pesquisa, curiosamente, vão contra as principais diretivas do novo governo, sobre varios temas, a saber: 60%, segundo as sondagens, rechaçam as privatizações, enquanto 57% rechaçam a retirada dos direitos trabalhistas (Folha de S. Paulo, 05.01.2019, p. A15). Analogamente, 54% dos consultados se dizem a favor da educação sexual nas escolas, e 71%, a favor de debater questões políticas nas aulas (idem, 08.01.2019, p. B1). Além disso, 61% dos consultados se mostram contra a liberalização da posse de armas (idem, 09.01.2019, p. A2). Finalmente, 60% dos consultados discordam da redução das áreas de reservas indígenas (idem, 13.01.2019). Os consultados estão de acordo com o novo governo em apenas um aspecto: 67% apoiam maior controle da imigração (ídem, 09.01.2019, p. A2).
O que indicam tais cifras? Como é possível que o novo governo, a menos de duas semanas de sua posse, já tenha algumas de suas diretivas – entre as quais se encontram as mais “amigas do mercado” –, erodidas e, inclusive, rechaçadas pela maioria? Entre as causas possíveis, cabe considerar que a votação de outubro passado não decorreu de uma aprovação majoritária do programa econômico da ultradireita, nem do seu programa social e cultural genocida. Antes, terá decorrido da ultradireita ter representado, de modo mais efetivo que todos os demais partidos de direita e centro-direita, como o PSDB (outrora o principal oponente do PT), o sentimento anti-PT e a fúria generalizada e cega, contra aspectos fraudulentos e corruptos do sistema político.
Se a dedução procede, a aprovação eleitoral da ultradireita, verificada em outubro passado, não resulta de uma virada fascistoide efetiva e cristalizada nas preferências políticas da maioria, ainda que a fúria cega constitua, sem dúvida, um sintoma de tendências fascistoides latentes.
Entretanto importava, para grande parte da população, sublinhar sua decepção com o PT e castigá-lo por desvios e fraudes evidentes. Daí a queda dos 86%, de aprovação do governo de Lula no final de seu segundo mandato em 2010, aos quase 45% que votaram por Haddad-PT ou no 13, no segundo turno de outubro passado. Se assim é, e se a população, em geral, segue carente e desejosa de serviços públicos gratuitos ou baratos (segundo diretrizes não cumpridas, mas outrora atribuídas ao programa do PT), o que sucederá quando as reformas ultra-liberais, e as que estão de acordo com as posições punitivas das igrejas evangélicas, forem implementadas e começarem a mostrar consequências, levando às demissões massivas, à redução dos salários, à proibição de greves, à repressão aos protestos, à extinção de serviços públicos vinculados à livre-orientação de conduta, etc.?
Sem subestimar o poder destrutivo do sistema repressivo e da maquinaria estatal em mãos de um grupo disposto a tudo, para não ser detido, a constatação a fazer é que o país entrou certamente num longo e dramático ciclo de instabilidade crônica, ou “estado de exceção” permanente. Note-se, entrementes, que só a ultradireita está pronta e organizada para um cenário de confrontação aberta.[43]
Diante da ditadura do dinheiro
O que vem a seguir? Será possível algo diverso do que o que temos agora, isto é, um governo de depredadores sociais e mastins, que prepara a ditadura do capital monopolista?
A resposta a tal pregunta é fundamentalmente política e pressupõe a construção de um novo projeto histórico de transição revolucionária, visando à propriedade coletiva e autogestão dos meios de produção por parte da classe trabalhadora. Isto provavelmente levará tempo, senão pior: é possível que se mantenha a atual correlação de forças por tempo bastante para que esta desenvolva e aplique todo o potencial repressivo e destrutivo que porta.
De todo modo, uma resposta adequada ao perigo atual requer a reflexão urgente e crítica de que a estratégia de conciliação e defesa do crescimento capitalista, defendida nas últimas décadas pelo PT, deve ser radicalmente negada.
As sirenes estão tocando
Uma blitzkrieg (guerra-relâmpago) de classe está em curso. É urgente concluir que a burguesia abandonou ostensivamente o PT, assim como toda estratégia de fabricação de consensos políticos. De fato, a burguesia como classe, assim como seus partidos, estão investindo todos os seus recursos no equipamento e modernização do aparato repressivo do Estado e, para cobrir eventuais lacunas, em armamento privado. A guerra de classe está prevista em todas as frentes, e casa a casa. Deste modo, a flexibilização das leis de posse das armas de fogo foi uma das primeiras prioridades do novo governo, cujo líder, ademais, defende abertamente a pronta despenalização das mortes por disparos para defender a propriedade.
Analogamente, todos os políticos em ascensão nos partidos burgueses não tratam de seduzir às maiorias em favor de algum consenso. Ao invés, buscam provocá-las e desafiá-las a buscar novos e maiores confrontos, de acordo com a guerra social em curso.
Assim, com o apoio maciço de setores da pequena burguesia e das igrejas evangélicas, a burguesia selecionou no baralho da política, como cartas suas, aos que portam máscaras de assassinos profissionais, membros de milícias paramilitares e grupos civis similares aos “stormtroopers” (tropas de assalto) ou às SA (paramilitares ou camisas marrons) nazistas e, por último, mas nem por isso menos importante, a alguns personagens dos meios de comunicação que se apresentam como depredadores sociais, na esteira de Trump.
Neste sentido, J. Dória (PSDB), novo governador de São Paulo e auto-proclamado candidato à sucessão presidencial, dentro do bloco político de ultradireita, é um caso emblemático de ascensão meteórica e com origem nos moldes descritos acima: ao derrotar eleitoramente Haddad (PT) em 2016, tornou-se prefeito de São Paulo, após despontar como apresentador da versão local de The Apprentice, o show televisivo que lançou Trump à política. Assim, em dois anos, Dória truculentamente mastigou e cuspiu o que restava do ex-governador de São Paulo, G. Alckmin (PSDB), que o havia introduzido no partido e patrocinado sua candidatura à prefeitura. Dória abandonou a Alckmin na metade da campanha presidencial, para apoiar ostensivamente ao candidato de ultradireita, em ascensão. Agora, já toma distância do último.
De fato, é possível que o atual governo não dure. A luta pela sua sucessão já se abriu. Dada a notória inconsistência intelectual, moral e política do clã Bolsonaro, os dias da “dinastía” estão possivelmente contados. Mas como a estratégia da guerra de classe é mais sólida e duradoura, ela pode durar para além do atual período presidencial, possível de ser encurtado devido a escândalos financeiros e políticos. Sem esquecer o atual vice-presidente (um general) e o atual ministro Moro (o mastim que caçou e encarcerou Lula), e Dória (membro orgânico da alta burguesia), todos eles apresentam mais atributos de racionalidade condizentes com a ideologia da ultradireita. Qualquer um deles poderá eventualmente se converter em favorito do “consórcio” e herdeiro da atual estratégia militar do governo, para levar a cabo – sem nenhuma redução na beligerância –, a constituição do novo padrão de acumulação.
Domar a esfinge
A classe trabalhadora deve construir urgentemente sua auto-organização política independente e sem nenhuma ilusão de conciliação com a burguesia. A paz está fora do horizonte. Assim, o caminho rumo à organização política da classe trabalhadora deve ir na contramão do que o otimismo conciliador do PT pregou durante muito tempo, para desenvolver estratégias de defesa e ataque de acordo com a consciência de que o inimigo permanece precisamente onde sempre esteve: no controle de todo o sistema econômico e de mando; em síntese, em todas as posições decisivas daquilo que Gramsci denominou de “Estado integral”.
Como e quando?
Para concluir, a partir da falsa “Transição” de 1985, o capital monopolista no Brasil começou a sentar e negociar com os trabalhadores sempre com sua arma na gaveta. Com o novo governo, voltou uma vez mais, como nos vinte anos posteriores a 1964, a exibir ameaçadoramente sua arma sobre a mesa. Cabe à classe trabalhadora se auto-organizar para poder decidir como e quando derrubar a mesa – do contrário todos os retrocessos são possíveis.[44]
*
[1] Sobre o caráter de classe do golpe de 1964, ver a obra “clássica” de René A. Dreifuss, 1964: A Conquista do Estado, Petrópolis, Vozes, 1981 (originalmente, idem, State, Class and the Organic Elite: the Formation of an Entrepreneurial Order in Brazil 1961-1965, PhD thesis, Glasgow, University of Glasgow, 1980).
[2] Sobre a falácia da distribuição em questão, bem como da política de dependência econômica que a sustentou, ver Pierre SALAMA, ‘Reprimarización sin industrialización, una crisis estructural en Brasil’, en Herramienta, revista de debate y crítica marxista, disponível em
[3] Ver Luiz Alberto Moniz BANDEIRA, O Governo João Goulart: as Lutas Sociais no Brasil, 1961-1964, 7 a. ed., rev. e ampliada, Rio de Janeiro, Revan/ Brasília, UnB, 2001.
[4] Ver Fernando Henrique CARDOSO e Enzo FALETTO, Dependência e Desenvolvimento na América Latina: Ensaios de Interpretação Sociológica [1970], 3a. ed., Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1975.
[5] Para documentos sobre o confronto direto entre as duas correntes, ver F. H. CARDOSO; José SERRA, ‘Las Desventuras de la Dialéctica de la Dependencia’, in Revista Mexicana de Sociología, vol. 40, número extraordinário, Cidade do México, UNAM, 1978, pp. 9-55. Para a resposta de Marini nesse momento, ver R. M. MARINI, ‘Las Razones del Neodesarrollismo (Respuesta a F.H. Cardoso y J. Serra)’, in Revista Mexicana de Sociología, vol. 40, número extraordinário, Cidade do México, Facultad de Ciencias Políticas y Sociales, UNAM, 1978, pp. 57-106, disponível em
[6] Seu impacto crítico alcançou o pensamento de vários outros economistas e sociólogos: o egípcio Samir Amin, o italiano Giovanni Arrighi, o norteamericano I. Wallerstein, etc. Não obstante, nunca se permitiu que tal teoria, elaborada no exílio (Chile e México, básicamente), circulasse efetivamente nas universidades brasileiras.
[7] Esta formulação data do momento em que o novo marco global levou Washington a propor um ciclo de mudanças modernizadoras no conjunto das ditaduras militares latinoamericanas. Ver R. M. MARINI, ‘El Estado de Contrainsurgência’, in Cuadernos Políticos, n. 18, Mexico D.F., Ediciones Era, oct.-dec. 1978, pp. 21-29; disponível em
[8] Ver Ernest MANDEL, ‘Le P. C. italien apôtre de l´austerité’, in Critique de l´Eurocommunisme, Paris, Maspero, 1978, pp. 236-68.
[9] Ver Thomas E. SKIDMORE, “Chapter VI: Geisel: Toward Abertura”, especialmente pp. 165 e seguintes, in idem, The Politics of Military Rule in Brazil: 1964-1985, New York, Oxford University Press, 1988, pp. 160-209.
[10] Ver Samuel HUNTINGTON, “Approaches to political decompression”, 1973, disponível em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/receita-samuel-huntington#pagina-1. Ver também sobre o governo seguinte, idem, “Carta ao General Golbery do Couto e Silva [Letter to the General….]”, 28.02.1974, disponível em: http://arquivosdaditadura.com.br/documento/galeria/receita-samuel-huntington#pagina-17>. Mais tarde, como assessor da administração Carter, Huntington jactou-se do papel exercido no Brasil. Ver idem, American Political Science Review [1988], Cambridge, Cambridge University Press, vol. 82(01), March, pp. 3-10.
[11] Ver Michel J. CROZIER; Samuel P. HUNTINGTON; Joji WATANUKI, The Crisis of Democracy: Report on the Governability of Democracies to the Trilateral Commission, New York, New York University Press, 1975. Doutor em transições controladas, Huntington também assessorou o governo sul-africano durante o período da “descompressão” do regime do apartheid.
[12] O novelista valenciano Rafael Chirbes, uma das vozes mais autorizadas sobre o período, resumiu desta maneira a conspiração da chamada “Transição”: “Franco morreu na cama e os partidos espanhois da Transição foram montados a partir do exterior: agentes externos e dinheiro externo. Não foram o resultado de uma onda democrática envolvente provocada pelas ansiedades do povo espanhol”. Ver R. CHIRBES, ‘Franco se murió en la cama y los partidos de la transición los montaron desde el exterior. Entrevista’, in Mundo Obrero, 24 de abril de 2013, disponível em:
[13] Sobre a colaboração dos partidos eurocomunistas para a reorganização capitalista da economia, ver André Gunder FRANK, “Crisis económica, Tercer Mundo y 1984”, in idem, Reflexiones sobre la Crisis Económica, trad. Angels Martínez Castells et. al., Barcelona, Editorial Anagrama, 1977, pp. 57-8.
[14] “1969 Discurso de Navidad de Francisco Franco: Todo Está Atado y Bien Atado. Rey Juan Carlos”, vídeo Retroclips, 1969/2014, 0’59”, disponível em
[15] Sobre a convocatória dirigida à “reconciliação nacional” e endereçada ao “setor empresarial, protagonista da nova sociedade industrial (….)”, proposta pela Junta Democrática, frente supranacional liderada pelo PCE, ver o documento apresentado oficialmente pelo secretário-geral Santiago Carrillo e pelo intelectual católico vinculado ao Opus Dei, Rafael Calvo Serer, em Paris (29.07.1974). Vários outros partidos e personalidades se incorporaram posteriormente como cossignatarios. Ver Vv. Aa., Declaración de la Junta Democrática de España, disponível em
[16] Ver Peter THOMAS, “Modernity as ‘passive revolution’: Gramsci and the Fundamental Concepts of Historical Materialism”, in Journal of the Canadian Historical Association/ Revue de la Société Historique du Canada, vol. 17, n° 2, 2006, pp. 61-78, disponível em URL:
[17] Compare-se, em particular, o documento da Junta antes citado e o primeiro capítulo do livro de 1975, de Cardoso, no qual o autor também se empenha em desqualificar teses e autores da teoria marxista da dependência. Ver F. H. CARDOSO, “As novas teses equivocadas”, in idem, Autoritarismo e Democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1975. Para um resumo dos pontos de tangência entre os textos de Cardoso e o documento da Junta, ver Luiz Renato MARTINS, “International Benefit Society of Friends of Form and Bulletin on the Brazilian Division”, in The Long Roots of Formalism in Brazil, Chicago, Haymarket, 2019, pp. 268-71. Sobre o papel de Cardoso como articulador intelectual, estabelecendo as forças políticas que deveriam ser excluídas da negociação, ver as páginas anteriores in idem, pp. 266-68.
[18] De fato, depois de haver demonstrado que conhecia o caminho das pedras, FHC foi eleito presidente da república ano final de 1994, após haver deflagrado, meses antes, o Plano Real, uma espécie de versão local da reforma monetária da União Europeia, segundo opção análoga à que defendeu na política, adaptando os argumentos da transição espanhola ao contexto brasileiro. Quanto às similitudes de procedimiento entre o Plano Real e a aplicação do euro, ver L. R. MARTINS, op. cit., pp. 261-64.
[19] Ver nota de rodapé 2.
[20] Ver o testemunho de Emílio Odebrecht no vídeo “PET 6664 – Emílio Odebrecht Fala de Lula, um ‘Bon Vivant‘, Segundo Golbery do Couto e Silva”, disponível em
[21] Para mais detalhes, ver nota de rodapé 2.
[22] Nomeações adicionais de almirantes estavam previstas futuramente, segundo O Estado de São Paulo (03.03.2019).
[23] Ver Claudio KATZ, ‘¿Cuáles son las lecciones para la izquierda?’ (último tópico) en idem ‘Interrogantes de la Era Bolsonaro’ [17.11.2018], em La Haine (sitio web), disponível em
[24] Ver nota 1.
[25] Ver, por exemplo, Rubens OMETTO (Cosan), ‘Dilma mudou muito, e empresário tem que segurar ansiedade, diz Ometto’, in Folha de São Paulo, disponível em
[26] Ver, por exemplo, Fernando Henrique CARDOSO, “FHC diz que impeachment de Dilma ‘não adianta nada’ ”, in O Estado de São Paulo, 09.03.2015, disponível em
[27] Ver nota de rodapé 1.
[28] Ver Angela ALONSO, ‘2019 Não Será Mera Reedição de 1964’, en Folha de São Paulo, 30.12.2018, disponível em
[29] O PSOL, nascido en junho de 2004 e formado basicamente por deputados, é uma dissidência parlamentar do PT, constituída quando o primeiro governo Lula enviou ao Congresso um conjunto de reformas neoliberais.
[30] Ver P. de A. SAMPAIO Jr., ‘Para Economista, PT Falhou ao Não Enfrentar Problemas Estruturais’, entrevista a Luis Sagimoto, 02.06.2017, Jornal da Unicamp, p. 5/9, disponível em
[31] Ver Carlos VAINER et. al., Cidades Rebeldes: Passe Livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas do Brasil, pref. de Raquel Rolnik, São Paulo, Coleção Tinta Vermelha/Boitempo/Carta Maior, 2013. Ver também P. de A. SAMPAIO Jr. (org.), Jornadas de Junho, a Revolta Popular em Debate, São Paulo, ICP, 2014.
[32] Ver Francisco de OLIVEIRA, ‘The Duckbilled Platypus’, in New Left Review, London, NLR, n. 24, Nov.-Dec., 2003, pp. 40-57.
[33] Ver Michael Löwy, ‘MOVIMENTO PASSE LIVRE Le mouvement pour le transport gratuit au Brésil’, disponível em <https://blogs.mediapart.fr/michael-lowy/blog/241213/movimento-passe-livre-le-mouvement-pour-le-transport-gratuit-au-bresil>.
[34] De fato, ocorreram episódios violentos – infelizmente correntes -, perpetrados pela Policia Militar de São Paulo, e respostas negligentes e depreciativas do prefeito de São Paulo, F. Haddad (PT), e do governador do estado de São Paulo, G. Alckmin (PSDB), ambos em Paris, para um evento promocional de interesse mútuo, conforme relatado abaixo.
[35] Para uma ilustração do grau de submissão do PT ao capital monopolista e, especificamente, do compromisso do governo com a lógica dos megaeventos internacionais, ver o vídeo da TV FOLHA, Fernando & Geraldo, disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=4bF6sO76ha4>. O vídeo mostra o prefeito do PT e o governador do PSDB junto com a cantora brasileira Daniela Mercury, atuando juntos e de modo ridículo num espetáculo em Paris, para promover a candidatura de São Paulo à Expo 2020, evento anunciado precisamente como o terceiro grande megaevento internacional no Brasil, depois da Copa do Mundo, da FIFA, e das Olímpiadas. Noutras cenas, Haddad e Alckmin aparecem ladeados pelo vice-presidente M. Temer, representando então a presidenta Dilma Rousseff.
[36] Ademais essa havia sido uma proposta governamental oficial do PT, em sua primeira administração do município de São Paulo (1989-92), logo bloqueada e impedida pelos vereadores da oposição.
[37] “Mensalão” foi um esquema de suborno descoberto em 2005, mediante o qual dirigentes do PT compraram votos de outros partidos no Congresso Nacional para apoiar projetos governamentais. Antes do PT, o PSDB havia utilizado o mesmo esquema. Os documentos sobre o caso do “Mensalão” são abundantes e fáceis de encontrar na Internet.
[38] Desgaste e rotatividade entre os membros do atual governo têm sido tão acentuados e rápidos, que o presidente do BNDES e ex-ministro de Rousseff foi demitido em 16.06.2019, com menos de seis meses de mandato, antes que este texto, originalmente escrito para uma revista estrangeira, pudesse ser publicado no Brasil, obrigando a inserção desta nota de ajuste e explicação.
[39] A visível diminuição da força política de Dilma Rousseff foi distinguida imediatamente como uma janela de oportunidades pela oposição parlamentar. Assim, algumas semanas depois, a Câmara dos Deputados, onde Rousseff em princípio detinha maioria, elegeu como presidente a Eduardo Cunha (PMDB), com um passado notoriamente duvidoso para dizer o menos, e que alimentava uma incompatibilidade ostensiva com Rousseff. No dezembro seguinte (2015), Cunha apoiaria uma fraude parlamentar, disfarçada de juizo político.
[40] Uma delegação de 12 deputados e senadores do PSL, partido dos quatro Bolsonaros, visitou a China (16-24.01.2019) para conhecer a tecnologia chinesa de controle de massas mediante reconhecimento facial, cuja implementação está sendo considerada para aplicação em terminais de transporte e outros lugares de circulação intensa.
[41] “Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto”. Cf. Caio PRADO Jr., Formação do Brasil Contemporâneo/ Colônia, São Paulo, Brasiliense/ Publifolha, 2000, p. 20.
[42] Haddad, um economista com doutorado em filosofia, e ex-ministro da Educação de Lula, trocou, inclusive, seu posto como professor de ciências políticas na USP, principal universidade pública de Brasil, para ensinar numa escola privada de economia, o INSPER, um instituto de acadêmicos ultraliberais e estudantes financeiramente privilegiados.
[43] Em março de 1935, em “Encore une fois, où va la France? ” (“Uma vez mais, para onde vai a França?”; La Vérité, 28 de março, 1935), Trotsky observou: “Uma situação revolucionária se desenvolve a partir da ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos. Se o partido do proletariado é incapaz de analisar a tempo as tendências de uma situação pré-revolucionária e intervir ativamente em seu desenvolvimento, inevitavelmente teremos uma situação contrarrevolucionária em lugar de revolucionária. O proletariado francês defronta agora precisamente este perigo”. Ver Léon TROTSKY, Où Va la France ?/ Textes sur la Situation Française de 1934 à 1938, Pantin, collection Classiques/ Les Bons Caractères, 2007, p. 65. Deixo a conclusão ao leitor.
[44] Os documentos e dados bibliográficos utilizados foram recolhidos pelo pesquisador Rafael Padial (IFCH-UNICAMP). Também devo sugestões de edição muito importantes a Carmela Gross, Pedro Rocha de Oliveira, Ana Paula Pacheco e Plínio Sampaio Jr.
* Luiz Renato Martins (Universidade de São Paulo): autor de The Long Roots of Formalism in Brazil (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2019), The Conspiracy of Modern Art (Chicago, Haymarket/ HMBS, 2018) e Revoluções: Poesia do Inacabado 1789-1848 (vol. 1, São Paulo, Sundermann/ Ideias Baratas, 2014).
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