Breno Altman | Montevidéu - 13/04/2015 - 14h49
Em entrevista a Breno Altman em 1997, nos 25 anos de 'As veias abertas da América Latina', escritor avaliou perspectivas para o continente: 'Há movimentos que superam os marcos da história da esquerda e anunciam novos caminhos'
gndolfo / Flickr CC
Em março de 1997, Breno Altman, diretor editorial de Opera Mundi, entrevistou o escritor Eduardo Galeano em Montevidéu. A entrevista, reproduzida na íntegra a seguir, foi publicada no número 10 da revista Atenção!, de que Altman era diretor de redação e Galeano colunista, em ocasião dos 25 anos da primeira edição de "As veias abertas da América Latina".
Há 25 anos, um jovem jornalista uruguaio exilado na Argentina lançava um livro que marcaria toda uma geração no continente. “As veias abertas da América Latina” expõe, numa prosa vertiginosa - que combina reportagem, crônica e pesquisa historiográfica -, 500 anos de uma história suja e esquecida. É a trajetória dos vencidos, desde a Terra do Fogo até a fronteira norte-americana, que passa pela derrocada inca, pelas minas de Potosí, lendas da Cordilheira, construtores maias de Palenque, sertanejos famélicos. Por sudacas, chicanos, brazucas, micróbios e cucarachas que formam povos inteiros.
O impacto do livro foi imediato. Edições sucessivas venderam como pão quente em diversos países. Embora seu autor não goste de ser lembrado apenas por “Veias abertas”, o certo é que a obra continua espantosamente atual. Hoje, aos 57 anos, e quase duas dezenas de outros livros, o jornalista Eduardo Hughes Galeano, depois de dois exílios, ironiza a contemporaneidade de sua obra. “Os técnicos do FMI e do Banco Mundial é que tratam de atualizá-la constantemente” por força das políticas predatórias que continuam a sugar parcela considerável da seiva vital da América Latina.
Escrevendo para várias publicações europeias e americanas – entre elas a revista Atenção! – Galeano vive novamente em Montevidéu. Lá concedeu essa entrevista, na qual confirma sua prosa afiada, tendo como alvo predileto os novos arautos da liberalidade econômica, que só inovam as práticas de Pizarro por terem à mão celular e laptop, conectados às cortes financeiras que dominam este lado do mundo.
Há 25 anos o senhor lançava “As veias abertas da América Latina”. Qual o seu balanço sobre as ideias da obra?
Os fatos lamentavelmente confirmaram o que dizia o livro, que não foi mais do que uma tentativa de ajudar a difundir informações que estavam trancadas a sete chaves na literatura especializada. “Veias abertas” tentou ser uma contra-história, contada a partir do ponto de vista dos invisíveis, dos depreciados da história oficial. A afirmação básica era de que não há riqueza inocente, que não se explique pela pobreza; que todo processo de acumulação é também um fenômeno de excluir. E que o modelo econômico dominante no continente cobra dos povos latino-americanos tanto a conta das crises e das recessões como dos surtos de desenvolvimento.
O senhor não se sente solitário na defesa desses antigos conceitos?
Não, estou acompanhado do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial. Sou um devoto dessas duas organizações filantrópicas, que tanto fazem para ajudar os pobres. Devo ser a única pessoa no mundo que lê integralmente seus informes (um sacrifício considerável, levando-se em conta a qualidade da prosa de seus especialistas). E segundo eles, entre 1960 e 1990 o fosso entre os mais ricos e os mais pobres duplicou. A atualização de “Veias abertas” está sendo feita, ano após ano, pelos funcionários dessas organizações, que se ocupam em Washington de medir e agudizar as desigualdades sociais.
Mas muitos intelectuais e militantes progressistas já não partilham dessa sua análise e revisaram suas posições dos anos 60 e 70, assumindo hoje o neoliberalismo como resposta à sociedade do fim de século.
Há gente que honestamente acredita que a liberdade do dinheiro significa a liberdade das pessoas. Não pecam por desonestidade, mas por ignorância. A história da humanidade mostra exatamente o contrário. Há outros casos que me fazem recordar algo que ouvi na Espanha, durante o exílio. Manoel disse a Pepe: “Hombre, quando nos conhecemos, você era monarquista; depois, virou falangista; em seguida, franquista; quando Franco morreu, tornou-se democrata; um tempo depois, socialista; e, agora, está outra vez na direita. Hombre, como você mudou de ideia!” E Pepe respondeu: “Eu, mudar de ideia? Minha ideia foi sempre a mesma, ser o tirano desse povo.”
Qual foi sua trajetória política e cultural antes de chegar a “Veias abertas”?
Tive uma infância católica e uma adolescência marxista. Quando criança, li os Evangelhos. Quando jovem, “O Capital”. Na minha infância católica, aprendi a não confundir o cristianismo com a Inquisição. Na minha adolescência marxista, socialismo com stalinismo. Essas foram as duas coisas que me marcaram e são o fundo de meu copo de vinho, estranha combinação entre mística católica e fervor socialista.
O senhor quis ser padre, jogador de futebol e pintor. Como chegou à sua vocação definitiva?
Em meu período místico, pensava em ser padre. Depois, a revelação do sexo, na adolescência, dissipou essa vocação e salvou a Santa Madre Igreja de um golpe que poderia ter-lhe sido fatal. A primeira vez que fui a Roma, Ii um cartaz que anunciava a existência do Banco do Espírito Santo. Para mim, foi um choque. Acreditava até há pouco no Espírito Santo, o que não sabia é que ele era banqueiro. Também tive, como todos os garotos uruguaios, vocação para jogador de futebol. E jogava maravilhosamente bem durante as noites, quando sonhava. De dia era o pior perna-de-pau. Quis ser pintor e desenhista, mas era muito grande a distância entre o que eu queria falar e o que poderia conseguir com as imagens. Assim, passei a tentar as palavras. E toda vez que escrevo meus joelhos tremem como se fosse a primeira vez.
Antes da literatura, o senhor construiu uma atividade jornalística de repercussão.
Fui diretor de numerosas publicações, quase sempre fechadas pelo governo ou por credores. Entre outras, um diário independente de esquerda, chamado “Época”, um tabloide com 30 páginas que chegou a 30 mil exemplares de tiragem, feito por jovens de 24, 25 anos entre 1964 e 1965. Foi uma experiência linda. Todos vivíamos de outras ocupações e ninguém recebia por esse trabalho. Guardo bonitas lembranças desse tempo louco. No fim de cada noite, afastávamos mesas e cadeiras e nos matávamos jogando futebol até quase amanhecer.
[Cafe Brasilero, um dos lugares preferidos do escritor em Montevidéu. Foto: Agência Efe]
O senhor teve militância em alguma organização da esquerda uruguaia?
Quando tinha 14 anos, ingressei na Juventude Socialista, mas não sirvo para militância partidária. Provavelmente por influência anarquista, a ideologia que talvez mais coincida com minhas glândulas.
Qual a sua avaliação do curso da esquerda latino-americana nesses anos posteriores à crise do socialismo?
A esquerda latino-americana tem dado alguns passos importantes, nos últimos anos, para romper a camisa de força com que muitas vezes tentou aprisionar a situação continental. Esteve historicamente vinculada com uma certa ideia de iluminismo, compreendendo-se como uma das forças “civilizadoras” que pretendiam impor, de cima para baixo e de fora para dentro, certas verdades a uma realidade que depreciavam e que continha outras verdades, de baixo para cima e de dentro para fora, que denominavam de “barbárie”.
Essa concepção levou a esquerda mexicana a organizar “batalhões vermelhos” para lutar contra Zapata e Pancho Villa. Levou os comunistas argentinos a andar de braços dados com o embaixador norte-americano contra Perón nas eleições de 1946 e aos seus colegas nicaraguenses a comemorar a morte de Sandino e, depois, se aliarem a Ronald Reagan na guerra dos “contras”. Essas e outras atrocidades foram cometidas em nome do socialismo e da civilização. Creio, porém, que isso está mudando e que a esquerda vive um rico processo de renacionalização.
Quais são os fenômenos que o senhor identifica como positivos nessa renacionalização da esquerda?
Há agora, em toda América Latina, movimentos que superam os marcos da história da esquerda e anunciam novas possibilidades e caminhos. O que ocorreu em Chiapas com a rebelião zapatista é um dos fenômenos positivos em curso, que se propõe a desencadear a energia social represada, a despertar os músculos secretos que a sociedade possui. Nesse sentido, nos encontramos com uma realidade muito mais rica que a de alguns anos atrás. Em grande medida, porque o dogma de que política é feita só por partidos e sindicatos é um dos esquemas que separou a esquerda da realidade. Há uma capacidade de resposta popular nessas organizações comunitárias que segue viva, apesar do sistema impor uma ordem individualista de “salve-se quem puder”.
Mas esses movimentos não estão limitados a um “salve-se quem puder” coletivo, sem alternativa de poder?
Não me animaria desqualificar movimentos. Prefiro aplaudi-los pelo que fazem. Se há um “salve-se quem puder” coletivo, me parece bastante saudável que existam, principalmente em uma época na qual está proibida toda energia coletiva que não esteja a serviço do mercado. Não há mais povos, apenas públicos e massas de consumidores. E é nesse momento que surgem movimentos que reivindicam participação popular e fogem dos limites de a cada quatro anos votar por políticos que, majoritariamente, roubam dinheiro e esperança.
O senhor acredita, como nos anos 70, que esses movimentos podem se articular em torno da ideia de revolução?
A organização do mundo está fundada sobre uma relação ainda mais desigual do que quando escrevi “Veias abertas”. No lugar de falar das hipóteses revolucionárias, em uma realidade tão confusa, talvez fosse melhor penetrar nas contradições que na minha juventude se chamavam capitalismo e hoje se chama economia de mercado. Por exemplo: a tendência à concentração da riqueza e à multiplicação da pobreza, em escala nacional e mundial. Ou a contradição entre o vertiginoso avanço tecnológico, com a diminuição das horas de trabalho necessárias para a produção das mercadorias – e que deveria traduzir-se em um tempo de ócio e liberdade muito maior para os trabalhadores –, e o aumento do número de desempregados e marginalizados. Ou o confronto entre uma cultura que ordena aos povos consumirem e uma economia que os proíbe. Uma contradição que se manifesta mais nas páginas policiais que na política. São esses antagonismos que alimentam a atualidade das opções revolucionárias. Esse sistema, gerador tanto de fome de pão como de abraços, está condenado a criar inimigos, ainda que seja eficaz na hora de reprimi-los.
O senhor sempre foi crítico das corporações multinacionais, identificadas como principal fonte de injustiça e autoritarismo no continente. Não é um tema ultrapassado pela globalização da economia?
Esses últimos vinte ou trinta anos levaram a concentração de poder a extremos inimagináveis. O mundo de hoje vive sob o super governo de um punhado de grupos financeiros e seus tecnocratas. Um ministro da Economia decide menos que um alto funcionário do FMI. Há uma ditadura invisível das grandes corporações, que com seus computadores decidem a sorte ou desgraça de um país sem invadi-lo da forma tradicional. É uma saída menos escandalosa que a ação dos marines [fuzileiros navais norte-americanos]. Apesar de que, quando a política do Iraque provocou elevação do preço do petróleo, não existiu hesitação em se desencadear a Guerra do Golfo.
O senhor ainda acredita que os Estados latino-americanos tenham conflitos com os interesses dessas grandes corporações?
Há um desprestígio do poder público no mundo, uma onda de desnacionalização. Com isso se busca uma rendição sem luta diante da ditadura das corporações transnacionais. O grande desafio é fazer do Estado expressão da vontade coletiva, o que significa trabalhar com a ideia de desprivatizá-lo, tirá-lo das mãos dos politiqueiros que servem aos negócios dos grupos econômicos. E essa é uma tarefa que exige articulação entre os Estados latino-americanos, que têm sido patéticos, até o momento, no enfrentamento dos temas da sua ruína, mesmo numa questão tão clara como a da dívida externa.
Galeano em junho de 2012.
O senhor crê que possa existir uma sociedade socialista?
Sim, não há porque confundir o naufrágio das experiências de poder burocrático na antiga Europa Oriental com a morte do socialismo. Creio que se equivocaram de cadáver. Um sistema de poder vertical, que tratava o povo como menor de idade, não tinha a ver com socialismo.
O senhor inclui Cuba nessa análise?
O caso cubano é diferente. Não houve um processo ortopédico, como em muitos países do antigo Leste Europeu, de imposição do socialismo burocrático por acordos militares das grandes potências. Em Cuba foi um processo de desenvolvimento interno ocorrido na base da sociedade, ao longo dos anos, e que agora passa por uma etapa de trágica solidão. Ainda que eu não tivesse nenhuma afinidade com o que se chamava de socialismo no Leste, é preciso reconhecer que a queda desse bloco foi uma notícia ruim para os países do chamado Terceiro Mundo, que antes podiam tentar caminhos alternativos, graças ao jogo que era possível quando havia mais de uma potência dominante. Precisamos torcer para que se aprofundem as contradições entre japoneses, europeus e norte-americanos, ampliando as margens de manobra da esquerda nos países da periferia do sistema.
Mas Cuba não repete o padrão burocrático?
Essa pequena ilha do Caribe está acossada por um duplo bloqueio. Um bloqueio externo, que já dura quase 40 anos, pelo delito de soberania nacional, de querer deixar de ser colônia e se transformar em pátria. E um bloqueio interno, das estruturas burocráticas de poder, que afogam as energias de mudança que a Revolução gerou. Tenho com Cuba muitas discrepâncias. Não gosto do partido único, da onipotência do Estado, da organização vertical do poder. Mas é um símbolo de dignidade de enorme importância para a América Latina e para o mundo. Ainda mais quando foi abandonada por muitos amigos, que antes a consideravam um paraíso e agora a confundem com o inferno.
Os Estados Unidos justificam sua posição pela ausência de democracia em Cuba.
Há muita hipocrisia nisso. Passei a infância e adolescência ouvindo falar de Formosa (Taiwan), que tinha o Kuomitang como partido único, como baluarte da liberdade contra a China de Mao Tsé-Tung – e a primeira eleição direta em 50 anos só ocorreu há pouco. Quando três cubanos foram fuzilados, em 1992, houve escândalo. Mas ninguém fala dos 33 norte-americanos eletrocutados ou das 66 pessoas executadas na Arábia Saudita (um dos países que mais desrespeita os direitos humanos, mas também o principal cliente da indústria militar norte-americana). Bill Clinton enche a boca contra os cubanos, mas um dos financiadores de sua campanha, nas últimas eleições presidenciais dos EUA, foi o ditador indonésio Suharto, cuja dúvida é se matou meio milhão ou um milhão de opositores.
O senhor se sente frustrado com o cenário cultural da América Latina?
Há uma tendência de reduzir a cultura à atividade dos profissionais da cultura e seus produtos, filmes, músicas, livros, peças de teatro, etc. Penso que essa é uma concepção elitista da cultura. A cultura é feita por todos. Essa tradição elimina dos meios de comunicação a cultura popular, tratada como simplificação degradada e mercadoria de fácil consumo. E esse é o desafio cultural dos latino-americanos, combater a ideologia do consumo, que inibe a criação e escraviza as emoções e os cérebros em função das necessidades de mercado.
O senhor é otimista sobre o futuro da América Latina...
O otimismo deve ser filho do amor, porque o amor é cego.
Fonte: OPERA MUNDI
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