Há vários animais cujas espécies, ameaçadas de extinção pela ação predatória dos seres que se dizem humanos, merecem a proteção do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente, o Ibama. Só para nos limitarmos aos mais simpáticos, mencionamos a ararinha azul, o mico leão dourado e o jaboti.
Mas se o meu advogado/herói predileto, o Dr. Sobral Pinto, pediu ajuda à Associação Internacional Protetora dos Animais para salvar a vida de Harry Berger, não vejo problema em pedir ao Ibama que nos proteja diante das inúmeras tentativas feitas para eliminar a nossa profissão e, assim, a nossa espécie. Afinal, somos todos animais e consta que a maioria seja composta de racionais.
Muitas dessas tentativas ao que parece se destinam a terceirizar (palavra na moda hoje) o Judiciário ou parte dele. Todavia, parece-nos que não seja possível a um dos poderes da república, especialmente o mais respeitado deles, abrir mão de parte de suas funções, de forma a permitir que se vulgarize a solução de conflitos, colocando-as todas como simples atos de negócio, objetos de acordo onde a justiça não comparece, diante da presença de interesses que muitas vezes são apenas os dos que podem mais ou dos que melhor saibam desprezar a ética e idolatrar o lucro. Os direitos que a lei prevê não foram criados para se transformarem em meros instrumentos de troca.
Por isso são perigosas as dispensas da nossa presença nos mais diferentes momentos e atos da Justiça. Começaram nos afastando dos juizados ditos especiais ou de pequenas causas, chegaram aos arrolamentos e inventários, atingiram as separações e divórcios e ampliaram-se um pouco mais pelas armadilhas armadas no matagal do novo Código de Processo Civil. Num dos últimos artigos deste, transforma-se a ação de usucapião em ato meramente cartorial! Parece que o Brasil vai cumprir seu novo ideal: não tornar-se um imenso Portugal, que está falido, mas um imenso cartório, que pode ser enriquecido!
Não precisamos elencar todas as hipóteses em que a presença do advogado é considerada essencial à administração da Justiça, como ordena a Constituição. Afinal, nossos leitores não são leigos.
Reduzindo-se a presença do advogado, coloca-se em risco a qualidade da defesa dos direitos da pessoa humana e prejudica-se a realização da verdadeira justiça. Em qualquer país que se diz civilizado consulta-se sempre um profissional habilitado para cuidar dos direitos que alguém alegue possuir. Esse profissional é o Advogado. Nosso trabalho não se confunde com o dos cartórios.
Ao notário ou tabelião compete, como função delegada do poder público, formalizar juridicamente a vontade das partes, intervir nos seus atos e negócios jurídicos a que devam ou queiram dar forma legal e ainda reconhecer a autenticidade ou autenticar fatos. Tudo isso implica em imparcialidade, pois as partes devem ser orientadas de forma independente. O advogado do cliente que paga pelo seu trabalho não é obrigado a ser imparcial. Daí o risco de, mesmo com a presença de advogado comum, a parte sofrer injustiça.
Fala-se muito em excesso de judicialização no país, registrando-se quase 100 milhões de processos. Tal assunto já está esgotado, depois de brilhantes manifestações de conhecidos juristas. Parece-nos, contudo, que a solução óbvia não seja reduzir recursos, jogar quase tudo para os cartórios, especialmente de protestos e outras soluções simplistas ou mesmo simplórias, muito boas para gerar pautas para assessores de imprensa, mas de pouco resultado prático a curto ou médio prazos.
Mas não é só por causa disso que estamos em perigo de extinção. Perseguem-nos essas monstruosas organizações de indústria e comércio conhecidas por faculdades. As públicas já se transformaram em ilhas da fantasia, acessíveis só aos que possam pagar o ensino básico e médio em escolas de alto padrão ou preencher cotas de proteção que, em nome de critérios raciais ou supostamente sociais, desconsideram o mérito e premiam a simples burocracia. Em algumas universidades públicas os alunos sofrem mais com as inúmeras greves e outras palhaçadas governamentais do que com seus supostos esforços, muitas vezes a alimentar enormes cabides de empregos. Nelas, nenhum orçamento público é suficiente, pois há até mesmo cursos com mais professores e funcionários do que alunos. Tanto o clima é de ilhas de fantasias, que há festas quase todos os dias.
Em muitas faculdades particulares, a hora-aula remunerada a um mestre não dá para pagar um almoço! Alunos entram de qualquer jeito, em número cada vez maior, pois são vistos como se fossem um “gado novo” cujas cabeças serão contabilizadas quando o volume de recebíveis puder ser vendido a um grupo financeiro qualquer que ganhe o próximo leilão da “boiada”. Afinal, existem por aí os financiamentos oficiais e a agiotagem privada com o projeto diabólico de comprar ou penhorar futuros diplomas. Se há funcionários fantasmas em todo lugar, porque não alunos fantasmas em aulas ministradas por mestres fantasmas?
Claro que estudantes de direito aprendem seu ofício. Os que aprendem o essencial conseguem aprovação no exame de Ordem. Tal aprendizado ocorre mais na prática, na Universidade da Vida, do que nas tais universidades privadas, ainda que filiais de instituições internacionais. Neste país com complexo de vira-lata, qualquer produto ou serviço importado é sempre bom!
De outro lado, a grotesca e criminosa tentativa de acabar com o Exame de Ordem é mais uma das tentativas de extinção de nossa espécie. Mesmo com o exame já temos muitos analfabetos jurídicos conosco. Não precisamos de mais colegas incapazes em nossa categoria. A OAB e a Aasp procuram sanar as falhas do ensino e treinar de forma permanente nossos colegas. Mas isso demora e não é fácil. Não somos a ararinha azul, o mico leão dourado ou o jabuti, mas talvez tenhamos que pedir a proteção do Ibama.
Já houve no passado e pode ressurgir a qualquer momento a infame tentativa de que sejam criados convênios jurídicos, a fim de avacalhar de vez com a profissão. Isso não seria apenas concorrência desleal, mas seria a verdadeira prostituição (tipo boca do lixo) da nossa carreira.
Basta que se considere o que já ocorre com muitas associações, institutos, sindicatos e ONGs com os mais diversos rótulos, a ofertar assessoria jurídica gratuita ou vendida a troco de votos para políticos que fazem disso profissão rendosa. Mais ainda: a publicidade nojenta e vergonhosa até em muros e postes, onde milagreiros prometem resolver problemas com multas administrativas. O Tribunal de Ética da OAB pode e deve ser acionado a respeito. Mas essa praga é pior que erva daninha: corta-se aqui, reaparece ali. Temos que resistir a tudo isso. Não transigir nunca. Não facilitar com os inimigos.
Mas pior mesmo e mais tristes são as traições internas. São as tentativas de extinção de nosso trabalho feitas pelos nossos próprios colegas. Alguns desmiolados chegam a pedir a extinção da OAB! Uma das formas de que se utilizam é a exploração da mão de obra dos mais novos, a quem se paga em média salário inferior ao de um motorista. A este, como se sabe, basta o ensino de primeiro grau e aprender a dirigir um veículo.
Essa desvalorização dos profissionais de nível superior não é exclusiva de nossa profissão e faz parte do sistema capitalista pelo qual optamos. A sociedade moderna tem se transformado com alucinante rapidez. Assim, quem faz determinado curso superior não é obrigado a viver disso. E isso é muito bom. Estamos num mundo onde as fronteiras estão desaparecendo e os limites da pessoa humana também.
O diploma de bacharel em direito abre muitas portas. Não sou especialista em orientação profissional a quem não se encontrou na minha. A cerca de 11.000 colegas recém formados durante um pouco mais de dez anos ministrei palestras tentando passar um pouco da minha experiência, o que resultou no livro A Fórmula do Sucesso na Advocacia. Demonstrei que existe a possibilidade de ter uma vida confortável e ser feliz como advogado, embora isso não seja fácil ou rápido. E que nem sempre a solução de vida do bacharel em direito é apenas um emprego, ainda que público.
Esse pessoal que paga salários indignos aos nossos colegas precisa se corrigir e os que os recebem, devem despedir o patrão tão logo isso seja possível. Afinal, s exploração do homem pelo homem é crime, segundo os supostos teóricos de alguns dos que se dizem nossos legisladores ou governantes.
A tabela de honorários da OAB é um bom parâmetro para avaliar o que devemos receber. Embora use o nome de “tabela”, ela não é inflexível. Mas é bom lembrar: nós vendemos apenas tempo e conhecimento, exatamente nessa ordem. A tabela em SP prevê a hora técnica num mínimo de R$ 265,00 aproximadamente. Fala ainda que se deve considerar a competência e o renome do profissional. Creio que seja razoável um tributarista com quatro décadas de experiência levar em conta esses indicadores.
Desde sempre quem deve pagar algo quer o menor preço possível ou mesmo furtar-se a isso. Trata-se de miséria ou falta de caráter. Para a primeira hipótese existe a compaixão, quando for o caso. Para a segunda, a única saída é a recusa de fornecer o trabalho ou os demais meios à nossa disposição. A choradeira faz parte do negócio, como se diz por aí. Não somos negociantes, mas muitos ignorantes não sabem disso. Nessas condições, não podemos nos esquecer do que disse o escritor inglês John Ruskin (Folha, 13/12/2008) : “Não há quase nada no mundo que outra pessoa não possa fazer um pouco pior e vender um pouco mais barato”.
Enfim, nas primeiras horas deste Dia do Trabalho tomo conhecimento de que este feriado chama-se oficialmente Dia do Trabalhador, assim oficializado em todos os países do mundo, desde 1891. Para advogados, mesmo assalariados, não há feriados, mas plantões e emergências, o que ocorre outras atividades: policiais, médicos, jornalistas etc. Escrevendo agora, entre o fim da noite de quinta e já no início da sexta-feira, cheguei à conclusão que nossa espécie, assim como a ararinha azul, o mico leão dourado e o jaboti, está ameaçada de extinção. Por isso vem a pergunta: será que o Ibama pode proteger os advogados?
Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Revista Consultor Jurídico, 1 de maio de 2015, 8h26
Nenhum comentário:
Postar um comentário