Los Angeles registrou neste ano uma população de 58.000 pessoas sem teto, um aumento de 23%
Autoridades locais qualificaram situação de “emergência”
Barracas de camping bloqueiam as calçadas da rua Seis, em Skid Row, no centro de Los Angeles. APU GOMES
Los Angeles 30 DEZ 2017 - 20:09 BRST
“Nunca foi tão ruim.” Quem diz isso enquanto caminha pela rua Seis do centro de Los Angeles, Califórnia, viu de tudo em se tratando de miséria. É o policial Deon Joseph, que tem vinte anos de experiência patrulhando na delegacia Central da cidade, situada em meio à maior concentração de pessoas morando nas ruas dos Estados Unidos, o bairro conhecido como Skid Row.
Os números oficiais dão razão ao policial. Pelo menos no tempo que ele está no bairro, a situação nunca esteve tão ruim. A situação dos moradores em situação de rua em Los Angeles, que as autoridades locais já qualificaram de “emergência”, se tornou uma questão nacional este mês, quando foram divulgados os últimos números do fenômeno nos Estados Unidos. O número de pessoas sem teto aumentou 1% no país, o primeiro aumento em sete anos.
O aumento espetacular no condado de Los Angeles, com 23% a mais de sem-teto em um ano, chegando a quase 58.000 pessoas, explica em si os números nacionais. Se não fosse pela região de Los Angeles, a população sem teto teria caído 1,5%. Os números aumentaram em toda a Costa Oeste. Das sete regiões urbanas com mais pessoas sem teto, cinco estão no Pacífico (Los Angeles, Seattle, San Diego, San José e San Francisco).
Nos Estados Unidos há 553.000 pessoas sem moradia segundo o último censo do Departamento de Habitação publicado no início de dezembro. Corresponde a 0,17% da população, uma porcentagem superior ao México (0,04%), mas inferior ao Canadá (0,44%), Reino Unido (0,25%) e Suécia (0,36%), segundo dados compilados pela OCDE. Um em cada cinco vive em Nova York ou em Los Angeles. Em números absolutos, a cidade de Nova York é a que mais tem sem-tetos nos EUA, acima de 76.000. A diferença é que em Nova York, 90% têm onde passar a noite. Três em cada quatro pessoas sem teto em Los Angeles não têm cama em algum albergue ou solução temporária.
Uma rua de Skid Row, esta semana. APU GOMES
Além disso, a diferença no clima (a temperatura máxima em Nova York esta semana foi de -5 graus e em Los Angeles, 26) faz com que as pessoas fiquem ao ar livre, nas calçadas de toda a cidade. E em Skid Row é onde esse teatro da miséria norte-americana se mostra mais cru. Nas 50 quadras de Skid Row se concentra a metade dos sem-tetos da cidade de Los Angeles. O detetive Harry Bosch, dos romances policiais de Michael Connelly, define a região assim: “Você atravessa uma rua e está em Calcutá”. Bem assim.
O policial Deon Joseph patrulha a pé andando pelo meio da rua Seis, porque não é possível usar as calçadas. São uma mistura de barracas de camping, lixo e ferro-velho, onde vivem milhares de pessoas. De vez em quando, o cheiro é repugnante. Alguns se aproximam para cumprimentar ou contar seus problemas. Joseph diz que essas pessoas se tornaram vítimas das gangues, que cobram pelo espaço nas calçadas, em dinheiro (até 200 dólares por mês) ou em serviços, desde o tráfico de drogas até a prostituição. Em algumas dessas barracas, explica, foram encontradas armas. O comércio está quase à vista. Os estupros são comuns. Carros de alto nível estão estacionados junto a pessoas inconscientes na calçada a quem todo mundo ignora. O crime na região “está fora de controle”, afirma Joseph, atraído pelo tráfico de drogas. O policial é muito crítico com o que considera a “política de não se misturar” das autoridades.
O policial Deon Joseph atende as reclamações de uma mulher em Skid Row. APU GOMES
Em uma esquina encontramos Jennifer de León. Praticamente sem dentes, explica que tem 40 anos e mora nesta esquina desde 2009, em uma barraca que começou pequena, mas agora ocupa cerca de seis metros quadrados. Seus pais moram em Desert Hot Springs, a duas horas daqui. Não fala com eles. Vive de uma pensão da Seguridade Social desde os 18 anos que hoje chega a 997 dólares (cerca de 3.200 reais), e no entanto continua na rua. Simplesmente esta é sua vida. Acabou aqui depois de se envolver com o crack e a metanfetamina. Toma banho no albergue mais próximo. Se não precisa ir até lá, faz suas necessidades em um cesto de lixo e joga na rua.
Midnight Mission é um dos albergues mais antigos de Skid Row, fundado em 1914. “Na crise de 29 servíamos um milhão de refeições por ano”, explica Joey Weinert, coordenador dos voluntários do albergue. Aqui se vem para comer, mas também para passar a noite e, se a pessoa consegue se estabilizar, a Midnight Mission oferece uma solução habitacional temporária que lhe permite reconstruir sua vida. “Quem pede ajuda, encontra”, garante Weinert. Todos os habitantes das calçadas de Skid Row podem comer três vezes por dia e conseguem roupa limpa e acesso à higiene pessoal. “É com a Meca dos sem-teto. Aqui estão todos os serviços.”
Jennifer de León, de 40 anos, na barraca em que vive em Skid Row. APU GOMES
As causas do aumento dos sem-teto são diversas e profundas. Weinert cita o aumento no consumo de drogas, os efeitos de longo prazo da crise econômica e também a crise habitacional que sofre o condado de Los Angeles, onde o aumento dos preços está erodindo rapidamente a classe média. Esta é a razão mais admitida pelas autoridades locais, em todas as cidades da Costa Oeste. Também afirma que vêm moradores em situação de rua de outros lugares, sabendo que aqui é possível levar essa vida. “Se você está na rua em Chicago nesta época do ano e te oferecem uma passagem de ônibus para a Califórnia, você vai.”
A situação está se ampliando há dois anos para fora do centro da cidade. As barracas aparecem da noite para o dia em toda Los Angeles. A situação é tão evidente que este ano os eleitores aprovaram duas vezes em referendo aumentar os impostos para arrecadar um total de 4,7 bilhões de dólares em 10 anos para construir moradias permanentes para pelo menos 15.000 pessoas sem teto e os serviços de que necessitam. Na semana passada, o prefeito inaugurou a primeira dessas obras.
Weinert não acredita que colocar dinheiro no problema seja a solução. “Se você dá um apartamento a um viciado em crack, seus amigos vão se enfiar ali e o que você fez foi montar um apartamento liberado para a venda de crack.” Não se pode resolver a situação de uma pessoa que está na rua sem resolver antes os motivos de terem chegado à rua, explica, especialmente o vício e os problemas mentais. “Nosso país não cuida dos pobres e dos fracos.”
“O SONHO AMERICANO ESTÁ SE TRANSFORMANDO RAPIDAMENTE NA ILUSÃO AMERICANA”
Os Estados Unidos, um dos países mais ricos do mundo e a “terra da oportunidade”, está se transformando no campeão da desigualdade. Esta é a frase que dá início ao relatório de 15 de dezembro passado de Philip Alston, relator especial das Nações Unidas para a pobreza extrema. Alston concluiu em Skid Row, Los Angeles, uma viagem de duas semanas por Califórnia, Alabama, Geórgia, West Virginia, Washington DC e Porto Rico para observar o estado da pobreza no país mais rico do mundo. Sua conclusão é que “o sonho americano está se transformando rapidamente na ilusão americana”.
O relator cita os números do censo, segundo os quais 40 milhões de norte-americanos vivem na pobreza e, deles, 18,5 milhões em extrema pobreza. Alston começa a falar de política e passa em seguida a criticar os possíveis efeitos da reforma fiscal de Donald Trump sobre os mais pobres. Diz que o plano “vai destruir partes cruciais de uma rede de segurança que já estava cheia de buracos”.
No problema dos sem-tetos, concretamente, Alston considera que os números oficiais são menores do que os reais. O relator critica a “criminalização” da pobreza com a prisão por crimes menores de pessoas que moram na rua. Alston publicou uma versão preliminar de seu relatório há uma semana. A versão definitiva será publicada em abril.
Fonte: https://brasil.elpais.com
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