Rubens Valente
Colunista do UOL
04/08/2020 04h02
RESUMO DA NOTÍCIA
Gaeco potiguar listou 20 policiais militares, dois policiais civis e um bombeiro com fotografias, dados pessoais e publicações em redes sociais
O relatório foi produzido a pedido de um promotor de Justiça que apura medidas tomadas pela polícia para cumprir decreto de distanciamento social
Líderes do movimento "Policiais Antifascismo" dizem que investigação "não tem justa causa" e negam afirmações do MP sobre politização
O MP-RN (Ministério Público do Rio Grande do Norte) produziu um relatório de 65 páginas com nomes, dados pessoais, fotografias e publicações em redes sociais de um grupo de 23 servidores da área de segurança pública do movimento "Policiais Antifascismo" do estado.
O UOL teve acesso ao levantamento, datado de 29 de abril, contendo informações sobre 20 policiais militares, dois policiais civis e um bombeiro. No último dia 24, a coluna revelou que, em junho, o Ministério da Justiça, por meio da Seopi (Secretaria de Operações Integradas), também realizou um levantamento com nomes de 579 agentes de segurança do "movimento policiais antifascismo" e quatro acadêmicos citados como "formadores de opinião".
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Diferentemente do caso do MP-RN, contudo, o trabalho do Ministério da Justiça não era acompanhado pelo Ministério Público ou pelo Judiciário e se tratava de um trabalho de "inteligência". No processo potiguar, a investigação foi anunciada nos meios de comunicação e os policiais tiveram acesso ao conteúdo, por meio de seus advogados.
Um "relatório técnico de análise" foi elaborado pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do MP estadual, que acolheu pedido do promotor de Justiça Wendell Beetoven Ribeiro Agra, de Natal. Entre as atribuições do promotor está o controle externo da atividade policial.
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A pedido do promotor, o Gaeco confeccionou o relatório sobre os "policiais antifascismo" a partir de uma pesquisa em "fontes abertas tais como: perfis de Instagram, Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube e outras fontes" com objetivo de "identificar uma possível organização paramilitar ou milícia particular ou partidária". Não fica claro como o Gaeco obteve em "fontes abertas" os endereços residenciais, filiação e outros dados pessoais dos servidores.
O objetivo do levantamento foi "identificar, qualificar quem são os seus possíveis organizadores se seus integrantes são servidores de instituições estaduais ou federais de segurança pública e administração penitenciária, militares ou civis; se há relação dos respectivos cargos com o fim ostensivo ou velado de obter proveito de natureza político-partidária para si ou para outrem".
O relatório do Gaeco faz diversos ataques aos "policiais antifascismo". Diz que o apoio que eles prestam ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em redes sociais, por exemplo, é "apologia de autor de crimes".
Antifascistas publicaram conteúdo contra atos anti-isolamento social
Beetoven havia aberto, em 29 de março, um procedimento preparatório para apurar a atuação de agentes de segurança do estado, que vinham se manifestado contra os atos de protesto agendados após medidas de isolamento social, impostas no estado em razão da pandemia de covid-19.
Naquele momento, diversas medidas estavam sendo tomadas pela governadora Fátima Bezerra (PT) e por prefeitos para restringir a transmissão da doença.
Em 24 de março, o presidente Jair Bolsonaro havia pedido, em cadeia nacional de rádio e TV, a "volta à normalidade" e o fim do "confinamento em massa", além de atacar os meios de comunicação e governadores.
Após carreatas com os slogans "Bolsonaro tem razão" e "Brasil não pode parar", convocadas para os dias 27 e 28 de março, de grupos críticos do distanciamento social, os membros do movimento "Policiais Antifascismo" se insurgiram.
Líder antifascista do estado mandou recado no YouTube sobre carreatas
Duas novas carreatas bolsonaristas estavam agendadas para o dia 19 de abril quando, um dia antes, um dos líderes do movimento, o policial civil Pedro "Chê" Paulo Chaves Mattos, lotado na 1ª delegacia de plantão da zona sul de Natal, colocou no YouTube um vídeo intitulado "Policiais Antifascismo do RN mandam recado aos manifestantes da mega carreata de domingo (19/4)".
O agente disse que a "brigada antifascista irá atuar" sobre as "megacarreatas" convocadas para a capital e Mossoró, que as pessoas seriam identificadas e gravadas. Ele afirmou no vídeo que "como se trata de um flagrante, as autoridades serão comunicadas e solicitadas a efetuarem as prisões".
"A carreata será contra o isolamento social. O que é uma irresponsabilidade [...] é uma irresponsabilidade ignorar os efeitos danosos desse vírus. [...] Essa carreata não é apenas um ato insensato, será também um crime", diz "Chê" no vídeo, citando legislação estadual e federal.
Nas redes sociais, os policiais divulgaram, entre críticas ao presidente Bolsonaro, que "a Brigada Antifascismo surgiu no Brasil, em meio à pandemia do novo coronavírus, em abril de 2020, e visa a combater a ignorância e o fascismo".
Vídeo motivou promotor a pedir detalhamento sobre o grupo
Ao saber do vídeo, o promotor voltou-se contra o movimento dos "Policiais Antifascismo" dentro do mesmo procedimento que apurava a questão do cumprimento das medidas do decreto estadual. Citando um dicionário, ele escreveu que os "conteúdos do vídeo e a sua descrição evidenciam a motivação claramente político-partidária do grupo que se apresenta como uma brigada, expressão que, no jargão militar, significa 'força militar organizada' ou "grande unidade militar, constituída de unidades de combate, de apoio ao combate e de apoio administrativo' (Dicionário Houaiss)".
Para o promotor, os policiais "demonstram ainda [que] a intenção do grupo é de constranger, com amparo na autoridade dos cargos ocupados por seus integrantes (que seriam policiais, em sua maioria), pessoas que têm ideologias políticas diferentes, o que se configura em ato de inaceitável intolerância política, incompatível com o regime democrático brasileiro".
Beetoven instou a Polícia Civil a abrir um inquérito policial "destinado a investigar se a autoproclamada 'Brigada Antifascista' constitui ou não uma organização paramilitar ou milícia particular destinada a cometer qualquer crime previsto no Código Penal". Remeteu uma cópia para o Gaeco do MP-RN.
Quatro dias depois, Beetoven impetrou um habeas corpus com pedido de liminar "em favor de todos os agentes de segurança pública" do Rio Grande do Norte em face de suposto "constrangimento ilegal iminente decorrente de ato inconstitucional" da governadora que restringia as medidas de isolamento social no combate à covid-19. O decreto da governadora mencionava a necessidade de prisão de pessoas que desobedecessem o decreto.
Ele recomendou à PM "adotar as providências necessárias a assegurar aos cidadãos o direito constitucional de livre manifestação através de carreatas". Só deveriam atuar se houvesse aglomeração com mais de 20 pessoas.
Imagem de policial com Dilma entrou em relatório do Gaeco
Afirma ainda que os atos do grupo ao condenar manifestações contra o isolamento social no estado, "implicam em diversas infrações a deveres administrativos de servidores públicos, além de crimes", em especial os militares, "cuja possibilidade de atividade político-partidária é objeto de disciplinamento legal muito específico, rigoroso e com enfática preocupação com o afastamento da função pública".
No relatório, o Gaeco diz que "não dispõe em sua base de dados de qualquer prova objetiva de atuação ou colaboração dos policiais abaixo identificados em operações relativas a combate a grupo de extermínio ou milícia no estado do Rio Grande do Norte — que na ótica da defesa poderia ser uma expressão do fascismo", dando a entender que o grupo não combateria o fascismo na prática.
O Gaeco capturou uma imagem em rede social de fevereiro de 2020 na qual Pedro entrega à ex-presidente Dilma Rousseff uma camiseta do movimento e escreve que tem "orgulho desta mulher (com 'M' maiúsculo e tudo mais que tiver direito)". Para o Gaeco, Pedro "a promoveu, em espaço da administração pública". Na foto, Dilma estava ao lado da governadora Fátima Bezerra.
O policial civil disse à coluna a foto tirada com Dilma ocorreu "dentro uma visita política normal. Nós soubemos que ela viria e pedimos para tirar uma foto com ela. A reunião foi pública, nada foi escondido". O relatório também traz várias fotos de Pedro, inclusive uma com a marca d'água "Detran-RN", dados pessoais e endereço residencial.
Relatório sobre manifestação bolsonarista foi mantido em "caráter sigiloso"
O resultado do levantamento do Gaeco foi muito apreciado pelo promotor Beetoven. Ele disse que, "como se pode observar do relatório, a atuação dos 'Policiais Antifascismo' como uma possível organização policial paralela (diferente das polícias oficiais) ou até uma espécie de polícia política, com atuação em vários estados (o que demonstra uma possível repercussão interestadual de eventual infração penal), vai muito além do objeto deste procedimento, delimitado na portaria de instauração, enveredando, ao menos em tese, por questões de natureza criminal (comum, militar ou até política) e eleitoral".
Numa manifestação que integra o procedimento, o promotor revelou que recebeu um segundo "relatório de inteligência", esse produzido pela "Agência Central de Inteligência da Polícia Militar" em 20 de maio e enviado à Promotoria "em caráter sigiloso". Por isso, disse o promotor, o documento "não foi juntado aos autos". O caso se relacionava às manifestações do Dia do Exército, quando apoiadores de Bolsonaro pediram o fechamento do STF e do Congresso.
Contudo, em vez de investigar dentro do mesmo procedimento também esse caso, que aparentemente atingiria as hostes bolsonaristas na segurança pública de Natal, o promotor optou por enviar os dados para a PGR (Procuradoria Geral da República) em Brasília porque, seguindo ele, o órgão já investigava o caráter antidemocrático dos atos daquele dia.
Em 4 de maio, o promotor remeteu o relatório para o procurador-geral da República, em Brasília, o procurador regional eleitoral, promotores e um delegado do Núcleo Especial de Investigação Criminal da Polícia Civil.
Não há justa causa para inquérito policial, afirma ativista
Após ter acesso à investigação, o policial Pedro "Chê" peticionou nos autos para defender que não há "justa causa" para a instauração de um inquérito policial sobre suas declarações no vídeo ou para investigar os policiais antifascismo.
"O movimento social de Policiais Antifascismo e sua respectiva brigada no RN são públicos e transparentes, pois tem seus princípios, valores e manifestos veiculados na internet e redes sociais", escreveu o agente.
Pedro disse que no vídeo "não falou em instante algum em coibir, intimidar ou fazer qualquer ato de violência ou grave ameaça para impedir as pessoas de realizarem as condutas acerca da carreata ou aglomeração. Tampouco ele disse que iria lhes fazer algum mal injusto e grave — a não ser, com todo respeito, que Vossa Excelência [promotor] considere gravar em vídeo atos públicos praticados pelas pessoas, que podem evidenciar infrações penais, enviando-se os materiais para as autoridades um mal injusto e grave".
O promotor analisou os argumentos de Pedro mas decidiu manter a investigação, que até a última sexta-feira (31) continuava sem encerramento.
Promotor nega ter objetivos políticos ao investigar policiais antifascistas
O promotor Beetoven disse à coluna, por meio da assessoria de comunicação do Ministério Público do RN, que seu objetivo "não é político e nunca foi".
"O que o Ministério Público, enquanto órgão controlador da atividade policial, não pode aceitar é a falta de neutralidade político-partidária das polícias, senão a função policial passa a ser utilizada em prol de uma ideologia e para autopromoção de agentes públicos armados. Em outras palavras: cria-se uma polícia política. E isso não é democrático nem lícito. O policial, como pessoa física, fora do trabalho (sem exibir arma ou distintivo), pode ter e professar a ideologia política que quiser. Mas, no exercício da função, tem que agir com neutralidade e imparcialidade", disse o promotor.
A respeito do relatório do Gaeco, a assessoria disse que o grupo não tem participação direta na investigação e que "apenas auxiliou numa demanda".
O policial Pedro "Chê" disse que considera a presença dos bolsonaristas nas fileiras da polícia "dentro dos valores democráticos, lícita". "Mas o interessante é que apenas em relação a nós, muito por ser de esquerda, é que se teve essa abordagem tão mais rigorosa, tão mais atenta do que dezenas de inúmeros outros relatos de policiais que se manifestam politicamente sobre Bolsonaro", disse o agente
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