4 de agosto de 2020, 8h00
Em fevereiro de 2017, o Brasil teve sua responsabilidade internacional reconhecida num triste episódio de violência policial ocorrido no Rio de Janeiro, que ficou conhecido como Caso Favela Nova Brasília1. Na ocasião, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado Brasileiro, em razão de uma série de violações a direitos, dentre eles, o direito à garantia judicial de independência e imparcialidade da investigação.
De acordo com a sentença da própria Corte, em 18 de outubro de 1994 e 8 de maio de 1995, foram realizadas duas incursões policiais na Favela Nova Brasília, no Estado do Rio de Janeiro, que resultaram no homicídio de vinte e seis pessoas e na violência sexual de outras três.
Na primeira operação, agentes de segurança pública ceifaram a vida de treze moradores da Favela Nova Brasília, quatro dos quais eram crianças. Além disso, alguns dos policiais envolvidos na operação cometeram atos de violência sexual contra três jovens do sexo feminino, duas das quais eram adolescentes de 15 e 16 anos de idade. A segunda incursão teve como resultado três policiais feridos e treze homens da comunidade mortos. Dois deles eram menores de idade.
As mortes foram registradas como “resistência à prisão resultante na morte dos opositores” e “tráfico de drogas, grupo armado e resistência seguida de morte”. Ambas as investigações foram arquivadas em 2009, em virtude da prescrição2.
As investigações não esclareceram as execuções extrajudiciais decorrentes das duas intervenções policiais, e nenhum agente público chegou a ser sancionado.
Na sentença, dentre inúmeras outras medidas de reparação, a Corte ordenou ao Brasil o dever de “estabelecer os mecanismos normativos necessários para que, na hipótese de supostas mortes, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial, em que prima facie policiais apareçam como possíveis acusados, desde a notitia criminis se delegue a investigação a um órgão independente e diferente da força pública envolvida no incidente, como uma autoridade judicial ou o Ministério Público, assistido por pessoal policial, técnico criminalístico e administrativo alheio ao órgão de segurança a que pertença o possível acusado, ou acusados.”
No mesmo ano de tal sentença, foi editada a Lei n. 13.491/2017, que alterou o Código Penal Militar para incluir como crimes militares aqueles previstos na legislação especial, quando praticados no contexto das alíneas a) a e) do art. 9o inciso II, Código Penal Militar3.
No entanto, em nenhum momento, o referido diploma legislativo subtraiu a competência constitucional da Justiça Comum Estadual para processar os crimes dolosos contra a vida de civis praticados por militares, mesmo em serviço, prevista no art. 125, § 4º da CF/884.
Existe, inclusive, súmula antiga do Superior Tribunal de Justiça consolidando tal entendimento5.
No entanto, num contexto da ampliação dos números de violência policial em todo o País6, com base em interpretação indevida e forçosa do referido diploma legislativo, associações de policiais e bombeiros militares vêm tentando construir o entendimento de que seria de competência da Justiça Militar processar mesmo os crimes dolosos contra a vida de civis, insistindo ainda que a atribuição de investigação de tais delitos seria de uma autoridade militar e não da Polícia Civil.
Tal linha de argumentação vai totalmente de encontro à decisão da Corte Interamericana no caso Favela Nova Brasília, que determinou a garantia da independência das investigações, e ainda da condução do inquérito por órgão diferente da força pública envolvida no incidente.
Isso pode parecer óbvio para você que está lendo esse texto, mas não são poucos os pedidos de trancamento de inquéritos policiais civis que investigam mortes decorrentes de intervenção policial, por alegativa que tais homicídios se tratam de crimes militares.
No AgRg no RHC 112726 / PR, o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, da Quinta Turma do STJ, destacou na íntegra do acórdão o argumento do pedido de trancamento feito pela Associação dos Oficiais Policiais e Bombeiros Militares do Estado do Paraná – ASSOFEPAR: “o homicídio é um crime previsto tanto no Código Penal Militar (art. 205), como no Código Penal comum (art. 121). Dito isto, não há como afastar a peremptória conclusão de que o homicídio propriamente dito, quando, em tese, praticado por policiais militares em serviço, não deixa de ser crime militar, por expressa disposição de lei.”
O argumento, portanto, é baseada na mudança promovida na Lei n. 13.491/2017, que em nada alterou a competência do Tribunal do Júri. Há, portanto, um completo equívoco interpretativo, pois em nenhum momento tal lei (e nem poderia) transformou o homicídio de civil praticado por militar em crime militar.
Impende destacar que tal entendimento não se trata de precedente isolado, mas sim de jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça, que subsistiu com o advento da Lei n. 13.491/2017, conforme destacou o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, no julgamento do CC 158084 / RS, pela Terceira Seção do STJ:
Nos termos do art. 125, § 4º, da CF/88, do art. 9o, parágrafo único, do Código Penal Militar (Decreto-Lei n. 1001/1969) e do art.82, "caput" e § 2o, do Código de Processo Penal Militar, é competente a justiça comum para apurar o crime de homicídio praticado por policial militar em serviço contra civil. Essa situação não se alterou com o advento da Lei 13.491, de 13/10/2017, que se limitou a dar nova redação ao antigo parágrafo único do art. 9º do CPM, para nele incluir dois parágrafos, prevendo o § 1º que "Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri". 2. De se entender, portanto, que permanece válido o entendimento jurisprudencial até então prevalente nesta Corte no sentido de reconhecer a competência da Justiça Comum Estadual e do Tribunal do Júri para o julgamento de homicídio doloso praticado por militar em serviço contra civil. Precedentes: CC 144.919/SP, Rel. Ministro FELIX FISCHER, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 22/06/2016, DJe 01/07/2016; CC 145.660/SP, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/05/2016, REPDJe 19/05/2016, DJe 17/05/2016; CC 129.497/MG, Rel. Ministro ERICSON MARANHO (Desembargador convocado do TJ/SP), TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 08/10/2014, DJe 16/10/2014; HC 173.873/PE, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20/09/2012, DJe 26/09/2012; CC 113.020/RS, Rel. Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 23/03/2011, DJe 01/04/2011.
No mesmo sentido, vale transcrever as considerações de Henrique Hoffman e Adriano Sousa Costa sobre o tema, segundo o qual “a competência penal militar não pode ser interpretada como sendo a regra, mas como exceção. Desarrazoado, portanto, o excessivo alargamento da Justiça castrense por mera estratégia hermenêutica. Especialmente ao se considerar que tanto o Supremo Tribunal Federal quanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos rechaçam a indevida ampliação da jurisdição militar, que só deve atingir condutas contrárias a deveres estritamente militares (e não aqueles ligados à atuação na segurança pública, atividade de natureza civil)7.”
Ademais, acertadamente, em compatibilidade com a letra da Constituição e com a legislação infraconstitucional, a Terceira Seção do STJ assentou a atribuição da Polícia Civil para conduzir inquéritos policiais que apurem execuções extrajudiciais de policiais militares contra civis, por aplicação da teoria dos poderes implícitos8.
A quem interessa transformar em crime militar uma morte decorrente de intervenção policial e afastar a investigação das mãos da Polícia Civil? Além de ilegal, é inconstitucional e inconvencional. Como bem pontuaram Henrique Hoffman e Adriano Sousa Costa, “transformar em regra a excepcional atuação da Justiça Militar, em pleno século XXI (quando se avolumam iniciativas de defesa dos direitos humanos), é um atentado contra o Estado Democrático de Direito9.”. Infelizmente, ainda precisamos escrever textos para reafirmar o óbvio.
1Corte Interamericana de Direitos Humanso. Disponível em http://www.itamaraty.gov.br/images/Banco_de_imagens/RESUMEN_OFICIAL_PORTUGUES.pdf
2 Em 2013, em resposta ao relatório emitido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro deflagrou nova ação penal quanto aos autores do primeiro episódio. Em relação à segunda operação policial, não houve recebimento da denúncia.
3 Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz: I - os crimes de que trata êste Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial; II – os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados: (Redação dada pela Lei nº 13.491, de 2017) a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado; b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996) d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
4 § 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.)
5 Súmula 90 do STJ: compete à Justiça Estadual Militar processar e julgar o policial militar pela prática do crime militar, e à Comum pela prática do crime comum simultâneo àquele.
6 Na 12ª Edição do Anuário, apurou-se que, em 2017, em relação ao ano anterior, houve uma redução de 4,9% no número de policiais mortos (367 pessoas), ao mesmo tempo em que cresceu em 21% o índice de pessoas mortas em intervenções de tais agentes (5.159 pessoas). Já em 2018, de acordo com o 13º Anuário, continuou em queda o índice de policiais mortos, reduzindo-se em 8% em relação a 2017, totalizando 343, sendo que 75% deles vieram a óbito fora de serviço, isto é, fora do contexto das operações policiais, que é o que justificaria o aumento do albergue jurídico da letalidade da polícia. No mesmo ano, 6.220 pessoas foram mortas em operações policiais, o que representa um aumento de 19,6% em relação a 2017. FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 12º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2018. FÓRUM NACIONAL DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 2019.
7 HOFFMAN, Henrique; COSTA, Adriano Sousa. Conceito de crime militar não foi ampliado pela Lei 13.491/17. Consultor Jurídico. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-jan-15/academia-policia-conceito-crime-militar-nao-foi-ampliado-lei-1349117.
8 (CC n. 144.919/SP, Rel.Ministro FELIX FISCHER, Terceira Seção, julgado em 22/6/2016, DJe 1º/7/2016).
9 HOFFMAN, Henrique; COSTA, Adriano Sousa. Op. cit.
Lara Teles Fernandes é defensora pública do Ceará atuante nas 2ª e 4ª Varas do Júri da Comarca de Fortaleza e mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará.
Revista Consultor Jurídico, 4 de agosto de 2020, 8h00
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