Preso pelo assassinato de Marielle, ex-sargento foi alvo de atentado por sua conexão com o crime organizado; após ataque, ele perdeu a perna e acabou recebendo benefício reservado a policiais feridos em 'ato de serviço'
Rafael Soares
31/07/2020 - 08:44 / Atualizado em 31/07/2020 - 09:04Apesar de várias denúncias e indícios, Lessa se aposentou da PM com a ficha limpa e o carimbo de bom comportamento. Foto: Arte sobre reprodução
Na madrugada de 2 de outubro de 2009, o sargento da PM Ronnie Lessa foi alvo de um atentado com todas as digitais do crime organizado. Depois de mais um dia de trabalho em incursões por favelas do Rio de Janeiro, Lessa entrou em seu Toyota Hilux prata blindado e começava a se dirigir para casa quando uma bomba, acionada por um telefone celular, explodiu. O policial perdeu a consciência, e a caminhonete desgovernada percorreu 150 metros até bater em um poste, deixando um rastro de sangue e combustível pela Rua Mirinduba, em Bento Ribeiro, a cerca de 500 metros do 9º Batalhão da Polícia Militar, de onde ele havia saído cinco minutos antes. Lessa foi socorrido e recobrou os sentidos na mesma noite no Hospital Municipal Souza Aguiar. Naquela semana, já transferido para um hospital particular, sua perna foi amputada devido a complicações decorrentes dos ferimentos do atentado.
Dez anos depois, o PM foi preso, acusado de ser o assassino de Marielle Franco e Anderson Gomes. Foto: Marcelo Theobald / Agência O Globo
Lessa, que ganharia uma sombria projeção nacional uma década depois, preso acusado de ser o assassino da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, foi aposentado por invalidez, com remuneração integral, dois anos após o atentado, como se tivesse sido ferido em serviço, em combate ao crime, e não por seu envolvimento com ele. Ainda hoje, recebe pouco mais de R$ 8 mil mensais. Os meandros dessa história vêm à tona a partir de documentos inéditos obtidos por ÉPOCA e expõem como a banda podre da polícia protege os seus, em um círculo vicioso que, dizem especialistas, contribui para os abusos e a impunidade de maus policiais ainda hoje nas ruas.
Já naquela época, todos os sinais eram de que Lessa, àquela altura investigado sob suspeita de envolvimento com a máfia do jogo do bicho, tinha sido alvo de um acerto de contas entre criminosos. Documentos das polícias Civil e Federal expunham a atuação do sargento na contravenção. Apesar de ainda estar na ativa na Polícia Militar, ele atuava na segurança de Rogério Andrade, um dos “capos” do jogo do bicho no Rio. Apenas seis meses depois do atentado, Diogo, o filho de 17 anos do bicheiro, foi morto num ataque à bomba com o mesmo modus operandi, na Barra da Tijuca. Segundo uma investigação da Polícia Civil, o fornecedor dos explosivos nos dois casos foi o mesmo, o sargento do Exército e traficante de armas Volber Roberto da Silva Filho — ele também acabou morto, em meados do ano seguinte, num tiroteio com policiais. O próprio Lessa disse, no depoimento que deu à Justiça sobre o caso Marielle muitos anos depois, que Volber “colocou uma bomba em seu carro”.
Todas as suspeitas, no entanto, ficaram de fora da investigação interna da PM sobre o atentado ao sargento. A averiguação 254/2502/2009 foi finalizada apenas dois meses depois do crime. Com base somente no depoimento do próprio PM, a apuração apontou que não havia, por parte de Lessa, “cometimento de crime de qualquer natureza e nem tampouco transgressão da disciplina, imprudência, negligência ou desídia” e concluiu que os ferimentos do sargento eram decorrentes de um “ato de serviço” — o que equiparava Lessa, ferido por sua atuação no submundo do crime, a PMs baleados em serviço, combatendo criminosos. A decisão abriu o caminho para que o policial conseguisse passar para a reserva dois anos depois.
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