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segunda-feira, 9 de agosto de 2021

O voto impresso e o constitucionalismo abusivo no Brasil


8 de agosto de 2021, 6h3


De antemão, adverte-se que a guinada ocorrida nos últimos três anos em prol da retomada do voto impresso no Brasil não é mera coincidência ou fato isolado percebido na ainda incipiente democracia nacional — que sequer completou meio século desde sua retomada com a Constituição de 1988. Na verdade, ataques ao sistema eleitoral se tornaram frequentes nas últimas décadas em diversas ordens democráticas do globo [1], em que pese assumam roupagem diversa de golpes militares escancarados, como os ocorridos nos anos 60.

Se em meados do século 20 governos autoritários subverteram regimes democráticos a golpes de Estado, no século 21 a democracia é enfraquecida pela distorção do próprio constitucionalismo e seus instrumentos formais, como a edição de emendas à Constituição. Lembremos, aqui, que tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 135/2019, apresentada pela deputada Bia Kicis, do PSL, partido pelo qual o atual presidente da República, Jair Bolsonaro, fora eleito, sendo este o principal apoiador da retomada do voto impresso (objeto da PEC).

No entanto, antes de adentrarmos à interrelação entre a citada PEC 135/19, a guinada autoritária representada pela ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República e o que o professor e PhD pela escola de Harvard David Landau denominou de constitucionalismo abusivo, façamos breve retomada histórica do chamado constitucionalismo contemporâneo. Neste, identificamos as marcas deletérias do nazismo e outros movimentos autoritários que resultaram em atrocidades à humanidade e guerras que desafiaram a existência pacífica na sociedade mundial [2].

O neoconstitucionalismo, nesse panorama, exsurge como o compromisso singular — do Estado com seus cidadãos — e coletivo — entre países soberanos no contexto internacional — de reafirmar a proteção aos direitos humanos e fundamentais, aproximando as ideias de constitucionalismo e democracia na produção de uma nova ordem política, o já conhecido, Estado democrático de Direito.

Democracia e constitucionalismo são interfaces distintas, porém, interconectadas do Estado pós-Guerra Fria. Através da interrelação entre supremacia da constituição e autogoverno do povo, erigem-se verdadeiros paradigmas balizadores da vida em sociedade, em que a proteção a direitos radicados na dignidade humana e o exercício da soberania popular, sobretudo através da escolha periódica de seus representantes políticos, representam dois pilares substantivos da democracia liberal. Pelo menos deveriam ser.

Contrariando as expectativas — que agora parecem ingênuas — dos precursores do neoconstitucionalismo, são crescentes os desvirtuamentos de ferramentas constitucionais por governantes democraticamente eleitos para criar regimes autoritários e semiautoritários. David Landau [3] conceitua referido movimento como "constitucionalismo abusivo".

Para o professor norte-americano, o constitucionalismo abusivo é caracterizado pelo uso de institutos de mudança formal da Constituição — emenda e substituição constitucional — para tornar o Estado significativamente menos democrático do que era antes [4]. Ou seja, o constitucionalismo abusivo é uma forma mais sutil de enfraquecer a democracia, em que instrumentos constitucionais que gozam de confiança e legitimidade democrática são usados justamente contra o povo.

É o caso da PEC 135/2019, que busca instituir o voto impresso no Brasil e que ganha fôlego e apoio popular com as inúmeras declarações do atual presidente da República quanto a supostas fraudes ocorridas nas eleições que o conduziram ao posto mais alto do executivo federal. Paradoxal, no mínimo.

Ora, lembremos que Jair Bolsonaro foi eleito não menos do que sete vezes pelo voto eletrônico, o mesmo que reiteradamente coloca em questionamento ao dizer que fora vítima de esquema que o impediu de ser vitorioso em primeiro turno. Mas que, como sabemos, resultou em seu êxito à Presidência nessas mesmas eleições.

Questiona-se: o que, então, mudou? Tornou-se a urna eletrônica subitamente duvidosa após mais de 24 anos sem qualquer comprovação de fraude em seu sistema [5]? Nesse ponto, a discussão tende a recair em discursos polarizados e acusatórios que mais acirram do que esclarecem a questão, a qual transcende em muito a ilibada reputação da urna eletrônica.

Mais do que enunciar as diversas fake news que circundam a narrativa pela adoção do voto impresso no Brasil, é necessário compreender o panorama mais amplo em que descredibilizar de antemão o processo eleitoral e os resultados das eleições de 2022 se insere. A PEC 135/19 e as sucessivas acusações do presidente da República não se direcionam ao voto eletrônico, mas, sim, à deliberação democrática.

Estabelecer no imaginário coletivo a desconfiança quanto ao desfecho obtido nas urnas antes mesmo de iniciada a corrida eleitoral — em verdade, com mais de um ano de antecedência — acentua a polarização existente no país e coloca em xeque o pleito democrático como um todo, uma vez que nenhum resultado será satisfatório para uma sociedade bipartidária e antagônica. Sob a ótica de combate ao inimigo incutida por governantes populistas, ataca-se o concidadão, as instituições, a mídia e qualquer agente político que se colocar no caminho de quem não pretende conviver com a democracia.

No entanto, como advertido por Landau, no constitucionalismo abusivo, mina-se o regime democrático através de mecanismos que a priori foram concebidos para protegê-lo e que, por isso, presumem-se igualmente democráticos. A eventual aprovação da PEC 135/19 carregará a legitimidade do processo legislativo incutido na Constituição, além de manifesto apoio político do chefe do executivo federal. Não será fruto de um arroubo autoritário apto a ensejar reprimenda internacional.

A celeuma não se encerra por aí. Certamente, o Supremo Tribunal Federal será provocado a analisar a constitucionalidade da emenda do voto impresso. A tendência é que mantenha o entendimento esposado no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 5889 [6], em que a corte entendeu pela inconstitucionalidade do voto híbrido pela ofensa à sigilosidade e à liberdade do voto. Mais uma vez, aumenta-se a tensão institucional.

Na oposição entre poderes políticos e cortes, o voto impresso estaria no lado dos primeiros. O STF seria o "usurpador" da deliberação democrática. Pelo menos, assim será identificado pelo governante populista e seus apoiadores.

Na melhor das hipóteses, a sociedade brasileira sairá ainda mais polarizada. Na pior, a invasão ao capitólio americano é um (péssimo) presságio que do enfrentaremos num futuro próximo. No entanto, com a falta de maturidade que advém de mais de 200 anos de diferença entre as experiências democráticas estadunidense e brasileira e que permitiu àquela recolocar a democracia nos trilhos.

Em 33 anos de redemocratização, as instituições brasileiras e os mecanismos de freios e contrapesos foram testados em diversas tentativas de abuso do poder político. Hoje, passa por nova prova de resistência e resiliência.

A adoção do voto impresso enunciada pela PEC 135/19 não contempla em si mesma um retorno ao autoritarismo, mas enfraquece de múltiplas dimensões a democracia brasileira e o projeto constitucional e político que vimos construindo desde a promulgação da Constituição de 1988. Se sabemos que não queremos um retorno à ditadura, também devemos estar vigilantes para que nossa democracia não se esvaia em "mera folha de papel". Um trocadilho com o brocardo do constitucionalismo clássico jamais pareceu tão apropriado.


Referências bibliográficas

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista De Direito Administrativo, 240, 1-42. Disponível em: https://doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618


LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC David Law Review, vol. 47, n. 1, nov. 2013, p. 189-260.



[1] Vide a Colômbia e a Venezuela na América Latina, a Hungria, na Europa e o ataque — malsucedido — ao Capitólio nas eleições que consagraram Biden o novo presidente dos Estados Unidos da América.


[2] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito: O triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Revista De Direito Administrativo, 240, 1-42. Disponível em: https://doi.org/10.12660/rda.v240.2005.43618


[3] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC David Law Review, vol. 47, n. 1, nov. 2013, p. 189-260.


[4] LANDAU, David. Abusive constitutionalism. UC David Law Review, vol. 47, n. 1, nov. 2013, p. 193.


[5] Para maior aprofundamento ver COIMBRA, Rodrigo. Por que a urna eletrônica é segura. Disponível em: https://www.tse.jus.br/o-tse/escola-judiciaria-eleitoral/publicacoes/revistas-da-eje/artigos/revista-eletronica-eje-n.-6-ano-4/por-que-a-urna-eletronica-e-segura. Acesso em 03 de agosto de 2021.


[6] "EMENTA: CONSTITUCIONAL E ELEITORAL. LEGITIMIDADE DO CONGRESSO NACIONAL PARA ADOÇÃO DE SISTEMAS E PROCEDIMENTOS DE ESCRUTÍNIO ELEITORAL COM OBSERVÂNCIA DAS GARANTIAS DE SIGILOSIDADE E LIBERDADE DO VOTO (CF, ARTS. 14, 60, § 4º, II). MODELO HÍBRIDO DE VOTAÇÃO PREVISTO PELO ART. 59-A DA LEI 9.504/1997. POTENCIALIDADE DE RISCO NA IDENTIFICAÇÃO DO ELEITOR CONFIGURADORA DE AMEAÇA À SUA LIVRE ESCOLHA. CAUTELAR DEFERICA COM EFEITOS EX TUNC. 1. A implementação do sistema eletrônico de votação foi valiosa contribuição para assegurar a lisura dos procedimentos eleitorais, mitigando os riscos de fraudes e manipulação de resultados e representando importante avanço na consolidação democrática brasileira. 2. A Democracia exige mecanismos que garantam a plena efetividade de liberdade de escolha dos eleitores no momento da votação, condicionando a legítima atividade legislativa do Congresso Nacional na adoção de sistemas e procedimentos de escrutínio eleitoral que preservem, de maneira absoluta, o sigilo do voto (art. 14, caput, e art. 60, §4º, II, da CF). 3. O modelo híbrido de votação adotado pelo artigo 59-A da Lei 9.504/97 não mantém a segurança conquistada, trazendo riscos à sigilosidade do voto e representando verdadeira ameaça a livre escolha do eleitor, em virtude da potencialidade de identificação. 4. Medida cautelar concedida para suspender, com efeito ex tunc, a eficácia do ato impugnado, inclusive em relação ao certame licitatório iniciado" (ADI 5889 MC, Relator(a): GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 06/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 28-07-2020 PUBLIC 29-07-2020).

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