Os juízes que furam o teto
Mais de 70% dos juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro recebem acima do teto constitucional. Com os complementos, a remuneração pode chegar a R$ 300 mil
RAPHAEL GOMIDE
BENEFÍCIOS
Juízes do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Boa remuneração e dois meses de férias por ano (Foto: Carlo Wrede/Ag. O Dia)
O Congresso Nacional foi criticado no último mês por ter 1.906 servidores com remuneração acima do teto constitucional de R$ 28.059,59, valor equivalente ao salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Depois de uma determinação do Tribunal de Contas da União, para suspender os pagamentos excedentes, o Senado cortou os extras e, a contragosto, aceitou cobrar a devolução dos valores pagos indevidamente. Longe de Brasília, no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, os magistrados gozam privilégios semelhantes. A análise das três últimas folhas salariais dos cerca de 850 juízes e desembargadores do Estado, feita por ÉPOCA, mostra que quase 70% deles recebem, em média, vencimentos mensais acumulados acima do teto constitucional.
Em julho, 607 membros da elite do Judiciário fluminense (71%) superaram os R$ 28 mil. Mais da metade ganhou mais de R$ 40 mil. Um terço, acima de R$ 50 mil, em valores brutos. Cento e quatro (12%) magistrados foram contemplados com valores superiores a R$ 70 mil no mês. Uma juíza chegou a receber a exorbitante soma de R$ 387.485,44 no mês. A média dos rendimentos dos magistrados do Estado do Rio naquele mês foi de R$ 44.799,91 brutos, o equivalente a 66 salários mínimos ou 640 benefícios básicos do Bolsa Família. Nos dois meses seguintes, os números variaram pouco. A remuneração mais alta paga em agosto foi de R$ 209.673,83.
Do ponto de vista dos juízes, não há ilegalidade na remuneração. Seu salário sempre respeita o teto. Mas ele é inflado sob as rubricas de “vantagens pessoais”, “vantagens eventuais” ou “indenizações”. Eles fogem da barreira salarial e permitem receber além do estipulado na Constituição. Os magistrados têm direito a uma série de benefícios, como auxíliocreche, auxílio-refeição (R$ 825) ou auxílio-locomoção, entre outros. O TJ afirma que o teto constitucional é “rigorosamente obedecido”. Ele é, diz a assessoria do TJ, “aplicado nos vencimentos, e não a parcelas eventuais”, caso de acumulação e indenizações. De acordo com o Tribunal, “alguns magistrados têm direitos pontuais, como abono permanência”, por ter direito a aposentadoria, ou o auxílio-moradia. Os valores acima de R$ 70 mil se refeririam a aposentadorias, segundo o Tribunal. A questão toda se resume a uma interpretação da Constituição que só o Supremo Tribunal Federal (STF) pode fazer: o teto deve ser aplicado ao salário básico (como sustenta o TJ) ou ao total de vencimentos recebidos regularmente todo mês (como quer o bom senso)?
Os valores recebidos pelos juízes superam com folga os rendimentos de todos os ministros do Supremo, onde nenhum excede os R$ 31.145 (salário de sete dos 11 membros da mais alta corte do país) – a diferença para o teto de R$ 28.059,59 se deve a acréscimos de benefícios. No STJ, os vencimentos mais altos são de R$ 30.298,52 (de 13 dos 33 integrantes). Como comparação, a presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio, desembargadora Leila Mariano, recebeu R$ 47.165,56, em julho e setembro, e R$ 81.388,42, em agosto. Questionada por ÉPOCA, sua assessoria afirmou que ela ganhou indenização de férias e licença em agosto, maio e março e que tem direito a gratificação pela função, além de receber Parcela Autônoma de Equivalência, um auxílio-moradia concedido a magistrados antigos de todo o país.
Embora os recursos para os salários venham do Tesouro do Estado, o governo não tem ingerência sobre os gastos ou a folha de pagamentos dos juízes, devido ao princípio constitucional que estipula a independência dos Poderes. O orçamento da folha de pagamentos de pessoal do TJ para 2013 é de R$ 2,26 bilhões anuais. Equivale a 88% do orçamento total, de R$ 2,56 bilhões – incluídos os salários dos servidores do Judiciário. Os gastos com pessoal já cresceram 28%, desde 2010. Apesar disso, para pagar os salários, o Tribunal precisou pedir ao Executivo do Rio suplementações orçamentárias nos últimos quatro anos – em 2013 também. No período, a soma dos créditos adicionais é de R$ 526,6 milhões.
Em janeiro de 2012, os salários do TJ foram expostos pela primeira vez na imprensa. O então presidente, Manoel Alberto Rebêlo dos Santos afirmou que eles se deviam à falta de juízes e a consequente acumulação de funções. O TJ ainda usa esse argumento. Estima em 150 os cargos não preenchidos e informa que a carência obriga o Tribunal a pedir aos juízes que acumulem varas e vendam férias. Isso implica maior gasto, de acordo com o TJ, sempre “em função da necessidade do serviço público” e “balizado pela legislação”. Os magistrados têm dois meses de férias. Desde 2012, o Tribunal incorporou cerca de 50 novos juízes, sem que isso tenha tido efeito aparente nos salários.
A Procuradoria-Geral da República ajuizou uma ação direta de inconstitucionalidade no STF, em março de 2010, contra a Lei no 5.535/2009 do Rio, que trata da magistratura e de remuneração, vantagens e subsídios da classe. O relator, ministro Carlos Ayres Britto, hoje aposentado, votou por sua inconstitucionalidade parcial. Segundo ele, a norma cria “vantagens não previstas” na Lei Orgânica da Magistratura Nacional ou “dispõe contrariamente” a ela, cria “indenização equivalente a um terço” do subsídio do magistrado para o “exercício cumulativo” de funções e prevê pagamento de verbas “supostamente indenizatórias” ao presidente e outros. Ayres Britto afirma que, além de fixar “os respectivos subsídios” – atribuição do Congresso –, a lei “prevê o pagamento de grande número de auxílios, gratificações, adicionais e verbas de natureza supostamente indenizatória”.
Logo após o relatório de Ayres Britto, um pedido de vista do ministro do STF Luiz Fux, ex-desembargador do TJ do Rio, interrompeu o julgamento, em maio de 2012. Enquanto o STF não decidir a questão, os supersalários dos magistrados, frutos dos auxílios e gratificações citados por Ayres Britto, continuarão a valer no Rio de Janeiro.
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