por Sam Harris
Diferentemente dos religiosos, como os
acima, ateus não incitam a violência
Se você tem razão ao acreditar que a fé religiosa oferece a única base real para a imoralidade, então os ateus deveriam ser menos morais do que as pessoas de fé. Na verdade, os ateus deveriam ser totalmente imorais. Será que são mesmo? Será que os membros das organizações de ateus nos Estados Unidos cometem crimes violentos em proporção maior que a média? Será que os membros da Academia Nacional de Ciências, dos quais 93% não aceitam a ideia de Deus, mentem, enganam e roubam deslavadamente? Podemos estar razoavelmente seguros de que esses grupos se comportam pelo meno tão bem quanto a populacho em geral. E, contudo, os ateus são a minoria mais vilipendiada dos Estados Unidos. As pesquisas de opinião indicam que ser ateu é um impedimento perfeito para se candidatar a qualquer alto posto (enquanto ser negro, muçulmano ou homossexual não é). Há pouco tempo, milhares de pessoas se reuniram em todo o mundo muçulmano — queimando embaixadas europeias, fazendo ameaças, tomando reféns, até matando pessoas — em protesto contra doze caricaturas representando o profeta Maomé, publicadas em um jornal dinamarquês. Quando será que ocorreu o último levante dos ateus? Será que existe algum jornal neste planeta que hesitaria em publicar caricaturas sobre o ateísmo, temendo que seus editores fossem sequestrados ou assassinados em represália?
Cristãos como você invariavelmente declaram que monstros como Adolf Hitler, Josef Stálin, Mao Tse-tung, Pol Pot e Kim Il Sung surgem do ventre do ateísmo. É verdade que tais homens por vezes são inimigos da religião organizada, mas nunca são muito racionais.
De fato, os pronunciamentos públicos desses homens muitas vezes são totalmente delirantes, nos assuntos mais variados: raça, economia, identidade nacional, a marcha da história,os perigos morais do intelectualismo. O problema desses tiranos não é que eles rejeitam o dogma da religião, e sim que adotam outros mitos destruidores da vida. A maioria se torna o centro de um culto da personalidade quase religioso, que exige o uso contínuo da propaganda para se manter. Há uma diferença entre a propaganda e a disseminação honesta de informações que nós (em geral) esperamos de uma democracia liberal. Tiranos que organizam genocídios, ou que reinam alegremente enquanto seu povo morre de fome, também costumam ser homens profundamente idiossincráticos, e não defensores dar razão. Kim Il Sung, por exemplo, exigia que suas camas, em suas diversas residências, fossem situadas exatamente a quinhentos metros acima do nível do mar. Seus acolchoados tinham de ser feitos com a penugem mais macia que se possa imaginar. E qual é a penugem mais macia que se possa imaginar? Segundo consta, ela vem do papo do pardal. Era necessário matar 700 mil pardais para encher um único acolchoado. Em vista da profundidade de suas preocupações esotéricas, podemos nos perguntar até que ponto Kim Il Sung era um homem movido pela razão.
Veja o Holocausto: o antissemitismo que construiu os campos de morte dos nazistas foi herança direta do cristianismo medieval. Durante séculos os europeus cristãos tinham considerado os judeus a pior espécie de heréticos, e atribuído todos os males da sociedade à sua contínua presença entre os fiéis. Embora o ódio aos judeus na Alemanha se expressasse de maneira sobretudo secular, suas raízes eram religiosas, e a demonização explicitamente religiosa dos judeus da Europa foi contínua durante esse período. O próprio Vaticano perpetuou a calúnia de sangue em seus jornais até 1914. E tanto a Igreja Católica como a Protestante têm um passado vergonhoso de cumplicidade com o genocídio nazista.
Auschwitz, os gulags soviéticos e os campos de morte do Camboja não são exemplos do que acontece quando as pessoas se tornam demasiado adeptas da razão. Ao contrário, esses horrores atestam os perigos do dogmatismo político e raial. Já é hora de os cristãos como você pararem de fingir que uma rejeição racional da sua fé acarreta a adoção cega do ateísmo como dogma. Não é necessário aceitar nada sem ter provas suficientes para concluir que o nascimento virginal de Jesus é uma ideia absurda. O problema da religião — assim como do nazismo, do stalinismo ou de qualquer outra mitologia totalitária — é o problema do dogma em si. Não conheço nenhuma sociedade na história humana que jamais tenha sofrido porque seu povo passou a ansiar por provas concretas para suas crenças fundamentais.
Embora você acredite que acabar com a religião é um objetivo impossível, é importante perceber que ele já foi alcançado por boa parte do mundo desenvolvido. Noruega, Islândia, Austrália, Canadá, Suécia, Suíça, Bélgica, Japão, Holanda, Dinamarca e o Reino Unido estão entre as sociedades menos religiosas da Terra. De acordo com o Relatório do Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (2005), essas sociedades também são as mais saudáveis, segundo os indicadores de expectativa de vida, alfabetização, renda per capita, nível educacional, igualdade entre os sexos, taxa de homicídios e mortalidade infantil.
Até onde há um problema de crime na Europa ocidental ele é, sobretudo, produto da imigração. Na França, por exemplo, 70% dos detentos nas prisões são muçulmanos. Os muçulmanos da Europa ocidental em geral não são ateus. Inversamente, os cinquenta países que ocupam os lugares mais baixos, segundo o índice de desenvolvimento humano das Nações Unidas, são inabalavelmente religiosos. Outras análises pintam o mesmo quadro: os Estados Unidos são o único país, entre as democracias ricas, com alto nível de adesão à religião; e também o que mais sofre com altos índices de homicídio, aborto, gravidez adolescente, doenças sexualmente transmissíveis e mortalidade infantil. A mesma comparação é verdadeira dentro do próprio país: os estados do Sul e do Meio-Oeste, caracterizados pelos mais altos níveis de literatismo religioso, são especialmente atingidos pelas disfunções sociais, segundo os indicadores acima, ao passo que os estados relativamente seculares do Nordeste do país têm uma situação semelhante à europeia.
Embora nos Estados Unidos a filiação a um partido político não seja um indicador perfeito de religiosidade, não é segredo que os estados“vermelhos” [republicanos são vermelhos sobretudo devido à influência política avassaladora dos cristãos conservadores].
Se existisse uma forte correlação entre o conservadorismo cristão e a saúde da sociedade, poderíamos ver algum sinal disso nesses estados. Mas não vemos. Das 25 cidades americanas com os mais baixos índices de crimes violentos, 62% ficam em estados “azuis” [democratas] e 38% em estados “vermelhos”. Das 25 cidades mais perigosas, 76% ficam em estados vermelhos e 24%, azuis.
Aliás, três das cinco cidades mais perigosas dos Estados Unidos ficam no piedoso estado do Texas. Os doze estados com os mais altos índices de assaltos a residências são vermelhos. Dos 29 estados com os mais altos índices de roubo, 24 são vermelhos. Dos 22 estados com os mais altos índices de assassinatos, dezessete são vermelhos.
É claro que correlações desse tipo não esclarecem questões de causalidade — a crença em Deus talvez leve à disfunção social; ou a disjunção social talvez estimule a crença em Deus; cada um desses fatores pode estimular o outro; ou talvez ambos derivem de algum fator nocivo mais profundo. Contudo, deixando de lado a questão de causa e efeito, essas estatísticas provam que o ateísmo é compatível com as aspirações básicas de uma sociedade civil; e também provam, de maneira conclusiva, que a crença generalizada em Deus não garante a saúde de uma sociedade.
Os países com altos níveis de ateísmo também são os mais caridosos, em termos da porcentagem de sua riqueza que dedicam a programas internos de bem estar social e ajuda aos países pobres.
A duvidosa relação entre os valores cristãos e a crença literal na Bíblia cristã é desmentida por outros índices de igualdade social. Considere a proporção entre a remuneração dos executivos de mais alto escalão e o salário médio pago aos funcionários das mesmas empresas: na Grã-Bretanha, é de 24:1; na Franca,15:1; na Suécia, 13:1; e nos Estados Unidos, onde 80% da populacão espera ser chamada diante de Deus no Dia do Juízo Final, é de 475:1. Pelo visto, parece que muitos camelos esperam passar com facilidade pelo buraco de uma agulha.
Sam Harris é escritor, filósofo e neurocientista americano. O texto acima foi extraído do seu livro "Carta a uma nação cristã".
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