A passagem de Saint-Exupéry pelo Rio Grande do Sul há mais de 80 anos
Entre 1929 e 1931, o autor e piloto teria feito pousos em Porto Alegre e Pelotas
Foto: Divulgação / Ver Descrição
Júlia Otero
O homem que escreveu um dos livros mais vendidos do mundo, Antonie de Saint-Exupéry, autor de O Pequeno Príncipe, teria vindo ao Rio Grande do Sul. Mais que isso: teria trabalhado aqui, passeado, tomado banho no rio Gravataí e — para orgulho dos mais bairristas — até saboreado um churrasco gaúcho.
As evidências da passagem do escritor pelo Estado começam a ser descobertas por um estudo que pretende colocar o Estado no mapa do patrimônio material e imaterial da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). O projeto, coordenado pela Fundação Latécoère, quer restaurar as primeiras escalas de voo no Brasil, que por aqui ficavam em Porto Alegre e Pelotas.
E Saint-Exupéry acaba aparecendo porque fora o trabalho nas letras, também era piloto e utilizaria essas pistas entre 1929 e 1931, período em que viveu em Buenos Aires. Não transportava gente, mas cartas da Europa para a América do Sul. Os aviões, ainda precários, não conseguiam percorrer longas distâncias, viviam quebrando e precisavam ir fazendo muitas paradas. Por isso, ele faria pousos periódicos nas cidades gaúchas. Os jornais da época alardeavam o feito dos "aparelhos possantes" que tinham feito viagem de Pelotas a Montevidéu em 3h40min. O mesmo trajeto hoje leva 40 minutos.
Atualmente, a parada de pouso em Pelotas, que contava com uma pista, oficina mecânica e uma casa, já não pode ser reconhecida. Ao invés disso, se amontoam lixo, laranjas podres, madeiras, porcos e cavalos de criação, onde hoje é erguida a casa de Luís Fernando Oliveira, 36 anos. O que era para ser um vão para guardar peças de aviões se transformou em uma piscina de água preta e parada.
— Já ouvi falar que era uma pista. Ainda tem um resto de concreto aqui — aponta no meio do mato, enquanto seus cães fuçam na sujeira em volta.
Mônica Cristina Corrêa, doutora em literatura comparada Brasil-França e pesquisadora da Fundação Latécoère, que está fazendo o levantamento dos locais onde passavam os pilotos franceses no Brasil, visitou o local e se espantou:
— É uma lástima que a memória seja tratada assim. Esse é um lugar histórico, há um livro de um mecânico que narra quando Exupéry teve que voltar à base por um defeito técnico, comprovando a presença dele em Pelotas.
Fora essa evidência, também se fala que havia a proposta de colocar o nome do aeroporto de Pelotas de Saint-Exupéry por sua ligação com a terra do doce. Agora, estudiosos buscam mais detalhes:
— Pedimos para que fossem abertos os livros do aeroclube, onde haveria assinatura dele e também estamos buscando relatos de moradores antigos — afirma o memorialista Ramão Costa.
Em Porto Alegre, a pesquisa deve começar no segundo semestre. A única pista da passagem de Exupéry vinha na obra Voos noturnos, em que ele citava o município. "Havia brumas para os lados de Porto Alegre", escreveu.
Mas a possível confirmação chegou pelo testemunho do jornalista, escritor e advogado Nilo Ruschel, no livro Rua da Praia. Ele escreveu ter visto o francês tomando uma hidrolitol, espécie de refrigerante, nos cafés da Rua dos Andradas.
Nesse tempo, sequer tinha lançado sua obra prima e era reconhecido na cidade "pelos casacos de couro que os aviadores, e só eles, então vestiam", descreveu. Ruschel deixou registrado que os aviadores foram a um assado na zona sul da Capital e deu seu palpite pessoal: "Oh, Saint-Exupéry adorava o céu de Porto Alegre, e Mermoz (outro piloto), as mulheres!".
A antiga pista de pouso em pelotas - Foto: Reprodução
Hoje o local é irreconhecível - Foto: Jerônimo Gonzalez
O exemplo de Santa Catarina
A empresa para qual Saint-Exupéry trabalhava, a atual Air France e antiga Aéropostale, foi a primeira a fazer a distribuição de cartas por avião da Europa para América do Sul. A empresa tinha 28 cidades-escalas nos três continentes. Destas, 11 estavam no Brasil, como a de Pelotas, Porto Alegre e a do Campeche, em Florianópolis.
A casa onde Exupéry morou em Florianópolis - Foto: Cristiano Estrela
A proposta é recuperar esses locais e torná-los patrimônio da humanidade pela Unesco. Em cada um deles, existia uma casa onde os pilotos dormiam e reabasteciam os aviões, a pista de pouso, uma oficina para consertar as máquinas e as redes de comunicação sem fio.
Em Pelotas, o lugar está irreconhecível. Em Porto Alegre, o local ainda não foi vistoriado. Já o de Campeche, no sul da Capital catarinense, ainda é possível ver a casa dos pilotos. Por lá, o processo está adiantado: foi apresentado um projeto, orçado em R$ 900 mil, para captar recursos via Lei Rouanet e restaurar o local. A ideia é apresentar a história de cada piloto, maquetes dos aviões da época e uma coleção de selos.
As aventuras dos pilotos franceses
No década de 1920 e 1930, os aviões para uso comercial recém chegavam no Brasil. A empresa para qual Saint-Exupéry trabalhava foi a primeira a fazer um mapa aéreo do país. Foi pioneira na América do Sul. E para enfrentar o desconhecido contratou pilotos jovens entre 20 e 25 anos. Os aventureiros enfrentaram todo tipo de sorte com aviões que viviam quebrando no ar: há histórias pelo Brasil de pilotos caindo em aldeias indígenas, praias desertas e ainda na Cordilheira dos Andes em pleno inverno, onde um aviador conseguiu sobreviver após cinco dias de caminhada.
O mapa da Aéropostale - Foto: Reprodução
Detalhe ZH
No 5º capítulo de O Pequeno Príncipe aparece o acendedor de lampiões. A pesquisadora Mônica Cristina acredita que tenha sido inspirado nos primeiros Voos noturnos no Brasil, que não tinham luzes nas pistas, mas moradores e pescadores os recebiam com tochas acesas.
Fonte: ZERO HORA
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