Em 1870, os índios Osage foram deslocados de suas terras e colocados em um canto seco e pedregoso de Oklahoma, Estados Unidos. No entanto, a descoberta de uma imensa reserva de petróleo no subsolo tornou esse povo nativo norte-americano o mais rico per capita do mundo no início da década de 1920. Modestos assentamentos como Gray Horse se encheram de casas luxuosas, carros enormes e índios com vasto serviço pessoal em uma ordem social sem precedentes nos EUA.
Uma obscura conspiração de homens brancos, em conivência com as autoridades e as forças de segurança iniciou um lento e implacável trabalho de roubo e extermínio para acabar com os Osage e ficar com o dinheiro do petróleo, época que os nativos definem como uma “orgia de golpes e exploração”.
Não se preocupe se você não ouviu esta história real que parece tirada da ficção mais sinistra. Nos EUA era pouco conhecida antes de o jornalista David Grann publicar Assassinos da Lua das Flores (lançado no Brasil em 2018). “Quando comecei a investigar, cheguei a um museu osage e vi uma foto em que a cabeça de um homem havia sido recortada. Quando lhes perguntei por que, me disseram que o diabo saia dali. Eles estavam se referindo a William King Hale, o autor do plano. Eles não podiam esquecer algo que o resto dos EUA ignorava, que não é estudado na escola, que até mesmo em Oklahoma era desconhecido”, diz por telefone Grann ao EL PAÍS de sua casa em Nova York.
Esta história tem uma heroína: Mollie Burkhart, uma osage que perdeu toda a família em assassinatos, intoxicações causadas por álcool adulterado, desaparecimentos e mortes por doenças nunca vistas. Embora ela tenha ficado sozinha e morrido aos 50 anos em 1937, Mollie nunca calou. “É impossível contar o que ela teve de sofrer. Não é o que o livro pretende”, diz Grann. O drama dos nativos era que os direitos de exploração os recursos da reserva só podiam chegar a mãos alheias à sua linhagem por herança. E aqui entra em cena o diabo: David Hall, um caubói reconvertido em homem de ordem que casa seus sobrinhos e amigos com os índios para depois eliminá-los e herdar. Mas essa mente criminosa não estava sozinha. O próprio Estado usou todos os seus recursos para o espólio e, por exemplo, declarou os Osage menores de idade e nomeou um tutor branco para cada fortuna do petróleo. “Um sistema federal de roubo foi criado, por meio do qual alguns ganharam milhões, milhões e milhões”, resume Grann. “Hall é o típico monstro e era reconfortante pensar que ele foi o único responsável por essa matança prolongada. Perceber que a maldade aninhava nos corações de tanta gente comum foi terrível”, acrescenta antes de contar como o livro deixou de ser a clássica pesquisa para descobrir quem havia cometido o crime e se tornou a descrição “uma cultura do assassinato”.
Uma família Osage, em seu carro, nos anos vinte.
O nascimento do FBI
Os Osage contrataram detetives particulares como o mítico William J. Burns, sempre no limite da lei, ou a agência Pinkerton, que pouco puderam fazer diante da conivência das autoridades, da polícia e dos juízes com os assassinos. W.W. Vaughan, o primeiro advogado que se interessou realmente pelos Osage, morreu ao ser jogado de um trem quando tinha em seu poder provas essenciais para desmascarar a trama. A imprensa da época falava de “complô para matar os índios ricos”, mas ninguém fazia nada.
Depois de um processo tortuoso, Hall foi condenado por alguns dos assassinatos, mas o livro, com uma estrutura do melhor thriller, vai além e revela uma conspiração mais ampla. “Sou um grande leitor de romances policiais e isso me ajudou muito. Além disso, as pessoas viveram aquilo como um mistério. Mollie não sabia quem seria o próximo a morrer, quem os estava matando. Com essa forma de narrar tento capturar o leitor e transmitir a realidade da melhor forma possível”, conta Grann, que passou cinco anos investigando o caso.
As instituições brancas e o ‘establishment’ universitário apagaram essa tragédia da narrativa histórica estabelecida porque as vítimas eram indígenas
David Grann
No entanto, os vilões da história não contavam com um fator: o FBI e a ambição do jovem J. Edgar Hoover. A agência federal havia sido criada em 1908 e nos anos vinte do século passado tinha uma estrutura frágil e escassa jurisdição em casos de assassinato, mas podia agir em tudo o que acontecesse em reservas indígenas. Armado com sua impiedosa inteligência e usando como chefe da investigação o agente White – um implacável vaqueiro de outro tempo, um homem de honra que não usava armas e provocava respeito e estupefação entre os criminosos–, o diretor do FBI transformou o caso no pilar sobre o qual construiu o prestígio da agência. “Hoover o usou para avançar em todos os sentidos. Foi assim que acumulou todo o poder e começou a abusar dele. Tinha apenas 28 anos, mas já se via seu gênio organizativo, sua megalomania e sua obsessão pela boa imprensa”, explica Grann.
“Estas terras estão encharcadas de sangue”, diz a neta de uma das vítimas, parte de um povo orgulhoso que não quer nem pode esquecer. O autor explica assim: “As instituições brancas e o establishment universitário apagaram essa tragédia da narrativa histórica estabelecida porque as vítimas eram indígenas. Quando você conhece os descendentes dos Osage começa a entender o inferno que viveram, história viva para eles, um massacre que não aconteceu há 300 anos, mas em pleno século XX”.
“O VELHO E A PISTOLA”, PARA ALÉM DO ‘TRUE CRIME’
David Grann (nascido em 1967) é um escritor que investiga ou um investigador que escreve. Na época áurea das histórias baseadas em crimes reais, da produção em massa de livros e podcasts sobre true crimes, Grann toma seu tempo, tenta entender os elementos essenciais, ir mais longe. “Não se trata de buscar o sensacional, o sangue ou um cadáver”, afirma. Seu livro The Old Man and the Gun and Other Tales of True Crime (O Velho e a Pistola e Outras Histórias de True Crime, ainda não publicado no Brasil) reúne três dos seus melhores artigos publicados na The New Yorker nos últimos quinze anos. Um elegante ladrão septuagenário mestre em fugas, um escritor polonês que incluiu as chaves de seu crime em um romance e um francês artista da fraude protagonizam as três histórias, que se fossem ficção ninguém acreditaria e que guardam um pouco da essência de um jornalista que se aventurou no interior da Amazônia em busca de uma cidade perdida ou que encontrou o sucesso desvendando os mistérios da estranha morte do maior especialista do mundo em Sherlock Holmes.
Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/24/cultura/1548339691_518086.html
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