A passagem do ano
de 1851 para 1852 foi marcada por convulsão e desordem no Império do
Brasil. Em diversas vilas e cidades do Nordeste, principalmente em
Pernambuco, Alagoas e Paraíba, centenas de pessoas se aglomeraram em
frente a prédios públicos para protestar - muitas delas, armadas.
"Tendo
nós, pretos e pardos pobres, (recebido) notícia sobre o 'papel da
escravidão', que hoje era o competente dia de se ler, desejamos saber se
é ou não verdade", disseram os representantes de um grupo de quase 200
pessoas, que havia encurralado o delegado da vila de Pau d'Alho, em
Pernambuco, em 1º de janeiro.
Eram pessoas livres, mas pobres e receosas de serem escravizadas juntamente com seus filhos.
O perigo, acreditavam, vinha do "papel da escravidão",
dois decretos imperiais com determinações estatísticas. O primeiro
deles marcava a realização do primeiro Censo do Brasil para o mês de
julho de 1852. O segundo estabelecia o registro de todos os nascimentos e
mortes no país a partir de janeiro de 1852.
Para protestar contra os decretos, manifestantes se
aglomeraram em volta de delegacias e prédios do Poder Executivo,
rasgaram cópias dos documentos e impediram que fossem lidos, afixados e
implementados. Em alguns casos, ameaçaram de morte funcionários públicos
e até membros de forças de segurança.
"O
motivo pelo qual o povo se ostenta tão descontente e ameaçador é porque
diz que (os decretos) têm por fim escravizar seus filhos, visto que os
ingleses não deixam mais entrar africanos (no Brasil)", escreveu o juiz
de paz de Santo Antão, em Pernambuco, ao presidente da província, no
início de 1852 - segundo documentação encontrada pelo historiador
Guillermo Olivares.
Naquele momento, a sociedade escravocrata
brasileira passava por uma grande transformação. Em 1850, o tráfico de
africanos escravizados havia sido proibido pela Lei Eusébio de Queiroz.
"A importação de escravos no território do Império fica nele considerada
como pirataria", decretava a lei.
Assim, fechava-se a principal
forma de aquisição de pessoas escravizadas, que foi responsável pela
entrada de 4,8 milhões de africanos no Brasil, ao longo de três séculos e
meio - nenhum outro local no mundo traficou tanta gente assim.
Qual
seria, então, a nova forma de obter mão de obra no Brasil? Ninguém
sabia. E se o Império quisesse criar escravizar brasileiros pobres,
negros e pardos?
Afinal, a escravidão ainda era permitida no
Brasil. O tráfico não havia acabado porque a sociedade brasileira
reivindicava a liberdade dos escravos, mas sim por causa da pressão
feita pela Inglaterra.
Pouco depois do fim do tráfico, vieram os
decretos estatísticos. Então, logo proliferou a crença de que o objetivo
real do Estado era saber quem eram as pessoas pobres e livres
(especialmente, negros e pardos) e transformá-las em novos escravos.
"Os
indivíduos mais incautos têm chegado a acreditar que o objetivo de
semelhante decreto é captivar (escravizar) os homens de cor", informou o
juiz de Vitória, em Pernambuco.
Manifestantes 'zumbiam' feito abelhas e marimbondos
O
Império argumentava que era essencial ter dados mais fidedignos sobre a
população do Brasil. Na época, era a Igreja Católica que registrava os
nascidos e mortos, vinculados aos sacramentos de batismo e
extrema-unção. Essas informações deveriam, a seguir, ser enviadas para o
governo central.
Porém, "há imperdoável desleixo da maior parte
dos párocos", reclamou o ministro e secretário de Negócios do Império,
em relatório para o Legislativo, em 1850. Segundo ele, apenas Maranhão e
Espírito Santo haviam mandado dados detalhados.
A justificativa
não colou entre a população que, indignada, foi para a rua para
protestar. Mário Melo, o primeiro historiador a tratar da revolta, em
1920, afirmou que manifestantes zumbiam como insetos agitados. Por isso,
resolveu apelidar o evento de "rumor das abelhas" ou "guerra dos
marimbondos" - como é conhecida até hoje.
Durante a revolta, há
registros de que manifestantes enfrentaram e desarmaram forças de
segurança locais, tomando povoados e vilas. Em Pernambuco, por exemplo,
Limoeiro foi ocupada por cerca de 500 pessoas, Guaranhuns por 300 e
Jaboatão por outros 400 homens armados.
Um juiz de paz chegou a
ser morto em Pernambuco, em 1˚ de janeiro, para evitar o início da
aplicação do regulamento do registro civil.
Delegados, juízes de
paz, presidentes de província e senhores de engenho ficaram
aterrorizados. Nas correspondências oficiais da época, relatavam
dificuldades para deter a multidão de "pobres", "povo miúdo", "população
menos abastada, ignorante e supersticiosa", "gente da última ralé" -
como foram chamados os manifestantes.
"O clima entre as
autoridades era de medo. Governantes escreviam desesperados ao
presidente da província solicitando apoio", explica a mestre em história
Renata Saavedra, que pesquisou sobre a guerra dos marimbondos.
"Um
ofício do Quartel do Destacamento de Vitória, em Pernambuco, declara
que 'não há munição' para lutar contra os revoltosos e que 'todos os
dias esperamos por algum assalto', destacando que 'mesmo as mulheres
andam todas armadas de faca de ponta, facões, canivetes e navalhas'",
completa Saavedra.
Grupos armados, invasão a engenhos, missas interrompidas
Os
protestos começaram alguns meses depois da publicação das regras do
Censo e do Registro Civil. Em novembro de 1851, por exemplo, houve
registro de agressão a um delegado em Alagoas por um grupo de
"amotinados" contrários aos decretos. A seguir, no começo de dezembro,
atos de rebeldia se multiplicaram por Pernambuco.
Ainda em 1851,
juízes e delegados comunicaram seus superiores sobre a formação de
grupos de manifestantes armados, de acordo com correspondências da época
encontradas pela pesquisadora Renata Saavedra no Arquivo Nacional do
Rio. Em alguns casos, pediram reforços de segurança. Em comum, os
protestos pareciam ser espontâneos, sem líderes, o que tornava difícil
combatê-los.
Em Pau D'Alho, Pernambuco, uma "porção de gente
armada" dizia que "quem primeiro morre é o Vigário e o Escrivão" caso
houvesse qualquer tentativa de aplicar os decretos, segundo carta
enviada pelo subdelegado local, em dezembro. Outro delegado
pernambucano, escreveu: "Já se apresentam mais de quarenta indivíduos
armados para se oporem à fixação do edital, número muito superior ao
destacamento desta cidade".
Também em dezembro, um senhor de
engenho pediu ajuda às autoridades. Segundo ele, os manifestantes
mandavam emissários para "seduzir os moradores dos engenhos da minha
casa, para lutarem contra a minha vida dizendo-lhes que os filhos deles,
de quem ultimamente fui padrinho, estarão lançados no livro do Vigário
como meus escravos" - o livro do vigário, no caso, se refere ao registro
de nascimentos.
A igreja católica, na época muito próxima do
Estado, também foi alvo dos protestos. Em muitos lugares, os "papéis da
escravidão" seriam lidos à população durante a missa de 1˚ de janeiro.
Por isso, manifestantes impediram a realização de diversas cerimônias.
Na
Paraíba, "até as mulheres armadas de pedras esperavam que nas missas se
lesse a lei da escravidão para romperem-nas", de acordo com a
historiadora Maria Luiza Ferreira de Oliveira, professora da
Universidade Federal de São Paulo.
Apesar do pânico das
autoridades, "a ordem era a de que os governantes 'abafassem' os ataques
e comunicassem que a província 'goza de paz'. O discurso oficial
buscava reduzir o levante a boatos, espalhados por 'noveleiros', 'partos
de imaginações esquentadas'", explica Saavedra.
Na virada para 1852, os ânimos se exaltaram ainda mais. Em diversas províncias do Nordeste, o cenário era de caos.
Em
2 de janeiro, o diretor do censo provincial de Pernambuco escreveu um
apelo para seus subordinados: "Constando-se que homens inexpertos tem
cometido atos violentos e vociferam contra o decreto 797 (do Censo),
venho rogar a vossa senhoria que empregue todos os esforços em
esclarecê-los".
O objetivo deveria ser mostrar "que não só a lei
do censo, senão a do registro de nascimentos e óbitos não são
atentatórias aos direitos dos cidadãos, mas pelo contrário, concorrem
poderosamente para o progresso civilizador do país". A carta também foi
encontrada por Saavedra.
Também em Pernambuco, o secretário de Polícia
instruiu os delegados regionais que os manifestantes fossem convencidos
de que os decretos não visavam "destruir a liberdade, mas pelo
contrário, a garanti-la, fazendo com que se multipliquem mais os títulos
pelos quais se prova que alguém nasceu livre" - diz carta encontrada
pelo historiador mexicano Guillermo Olivares, autor da principal
pesquisa sobre a guerra dos marimbondos.
Já em 26 de janeiro, o
jornal Diário de Pernambuco publicou: "O nosso povo do interior caiu no
deplorável e repreensível excesso de tentar opor-se à execução do
regulamento com armas nas mãos (...) pondo em fuga algumas das
autoridades, prendendo outras, e atirando sobre a tropa que para ali se
dirigira com o fim de coibir os seus desatinos (...) conflito que
resultou na morte de dois soldados, assim como alguma perda da parte dos
sublevados".
Por que o foco foi no Nordeste? Em primeiro lugar, o
Nordeste já vinha vivendo uma dinâmica de protesto e conflito. Entre
1848 e 1850, por exemplo, Pernambuco foi palco da Revolução Praieira,
que defendia ideais federalistas, ou seja, mais autonomia em relação ao
poder central. Outras revoltas na região foram a Cabanada, em Pernambuco
e Alagoas, a Sabinada, na Bahia, a Balaiada, no Maranhão.
Além
disso, diz Guillhermo Olivares, o Nordeste estava prestes a enfrentar
uma escassez de mão de obra. Muitos dos escravos da região haviam sido
vendidos para o Sudeste - para abastecer de mão de obra a cultura do
café em São Paulo e os serviços urbanos do Rio de Janeiro, capital do
Brasil na época.
No entanto, em meados do século 19, a
cana-de-açúcar nordestina voltou a se expandir, demandando
trabalhadores. Por outro lado, o algodão, plantado por agricultores
pobres, entrou em crise. "Essa pressão do mercado certamente influiu no
temor dos pobres e livres de estarem ao ponto de virar a bola da vez",
afirma Olivares.
A instabilidade da liberdade no Brasil imperial
Ser
negro ou pardo livre em uma sociedade escravista era muito difícil. Por
causa da cor da pele, as pessoas eram frequentemente enquadradas por
forças de segurança sob a suspeita de serem escravos fugidos.
Ex-escravos que haviam conquistado a liberdade ainda corriam o risco de
serem alvo de ações na Justiça para serem reescravizados.
"Cotidianamente,
ocorriam inúmeros casos de reescravização", explica Saavedra. "A
resistência de muitos homens e mulheres à escravidão, portanto, tinha
que ser permanente". Nesse contexto, os decretos estatísticos foram
vistos como mais uma ameaça à liberdade.
O que mais alimentava as
suspeitas era uma enorme coincidência de datas. O fim do tráfico havia
sido assinado em 4 de setembro de 1850. Apenas dois dias depois, em 6 de
setembro de 1850, o governo publicou um decreto autorizando despesas
"para levar a efeito, no menor prazo possível, o Censo geral do Império
e, outrossim, para estabelecer registros regulares dos nascimentos e
óbitos anuais".
Então, em junho de 1851, foram publicadas, de fato, as regras do Censo e do registro de nascimentos e óbitos.
O
decreto do Censo estabelecia que cada família deveria preencher uma
ficha cadastral, com endereço e dados de cada membro - quem não fizesse
isso poderia ser punido por desobediência.
Nessa ficha, era
obrigatório informar a condição de cada pessoa: nascida livre, liberta
(ou seja, alguém que nasceu escravo, mas depois obteve a liberdade) ou
escrava. Já se a pessoa fosse de origem indígena, seria preciso
especificar "a tribo a que pertence".
Todos também precisavam ser identificados com nome,
idade, profissão ou modo de vida, estado civil. A exceção eram os
escravos - donos de escravos só precisavam indicar "o número por sexo",
ou seja, quantos homens e quantas mulheres.
Já o decreto do
registro civil estipulava que, quando uma criança nascesse, seriam
registrados endereço, profissão dos pais e "tribo", caso fosse indígena.
Se o recém-nascido fosse filho de pais escravos, mas ganhasse a
liberdade, essas informações deveriam constar no registro.
Assim,
o Estado saberia onde viviam ex-escravos e pessoas pobres. Também
saberia quando nascessem crianças nessas famílias. O que os revoltosos
temiam era que essas informações fossem utilizadas para escravizá-los.
Para
Guillermo Olivares, o Censo iria, de fato, gerar informações
importantes para organizar a mão de obra no Brasil após o fim do
tráfico. Afinal, o Império iria saber qual era o número de trabalhadores
em potencial do Brasil.
"Registrar e contar eram atos que
procuravam mapear efetivamente os recursos humanos do Império, com
vistas à nova fase que se anunciava com a suspensão do tráfico
interatlântico de africanos escravizados em 1850", afirma Olivares. "A
suspensão do tráfico, a lei do registro de nascimentos e a lei do censo
eram parte de um mesmo pacote".
Ou seja, mesmo que o governo
brasileiro não tivesse a intenção de escravizar pessoas livres no
Brasil, queria saber quantos deles poderiam ser contratados como
assalariados.
Isso era particularmente importante no Norte e
Nordeste, onde as populações pobres foram utilizadas "pelas oligarquias
regionais como a mão-de-obra destinada a substituir o trabalho escravo",
diz o pesquisador. Já as regiões Sudeste e Sul focaram na atração de
imigrantes europeus - sobretudo italianos - para lidar com a proibição
do tráfico.
Primeiro censo foi realizado apenas 20 anos depois
Sob
pressão popular, em 29 de janeiro de 1852, o regime imperial revogou os
decretos estatísticos. Assim, o Registro Civil ficou vigente por apenas
29 dias. Já o Censo, previsto para julho daquele ano, nem chegou a sair
do papel.
"A revogação resultou dos protestos e do medo de que
eles reacendessem o fogo não completamente morto da (Revolução)
Praieira. Também influiu (para a revogação) o rompimento dos limites das
áreas originais dos conflitos e sua propagação por áreas 'nobres',
sedes das grandes famílias da oligarquia", diz Olivares.
Outro
fator que influenciou a revogação dos decretos foi uma falha logística
do Império, que não conseguiu distribuir pelo país as fichas de papel
para registrar os nascimentos e óbitos.
Segundo o decreto do
Registro Civil, sem essa documentação os párocos não podiam batizar
crianças ou dar a extrema unção para os enfermos. Ou seja, crianças
ficaram sem batismo e mortos sem a última benção - uma heresia em uma
sociedade majoritariamente católica, o que acabou acirrando a revolta.
"Os
decretos não eram exequíveis dada a amplitude do território, as longas
distâncias e a estrutura macrocefálica do estado, que não chegava da
mesma maneira a níveis locais", afirma Saavedra.
Apenas 20 anos depois, em 1872, o Brasil realizaria
seu primeiro Censo. A população computada foi de 9,9 milhões de pessoas.
Dessas, 1,5 milhões eram escravas (15%). Em algumas províncias, a
proporção de escravos era maior, especialmente no Rio de Janeiro (31%).
Naquele
momento, a escravidão já estava em declínio, devido à proibição do
tráfico de escravos africanos, em 1850, e à Lei do Ventre Livre, em
1871, pela qual os filhos de escravos passaram a ser considerados
livres. Na prática, as duas leis bloquearam todas as formas de obter
novos escravos no Brasil. A tendência, então, era que a escravidão um
dia acabasse por esgotamento.
Por isso, se o Censo de 1852 tivesse
sido realizado, o percentual de população escrava seria muito maior -
afinal, o tráfico tinha acabado havia somente dois anos e os filhos de
escravos ainda eram mantidos cativos.
Evidência disso é que, em
1872, a quantidade de pessoas declaradas pretas era maior que a de
escravos - 20%. Ou seja, uma parte cada vez maior da população negra já
não era mais escrava. Já os pardos representavam 38% dos brasileiros.
Outro
dado do Censo de 1872 ajuda a entender o temor dos pobres livres na
revolta ronco das abelhas. Assim como os homens escravos, a maior parte
dos homens livres eram lavradores. E, da mesma forma que as mulheres
escravas, as mulheres livres também eram sobretudo trabalhadoras
domésticas ou lavradoras.
Por isso, se o Império quisesse obter
novos escravos no Brasil para desempenhar os mesmos serviços, havia uma
enorme massa de pobres livres capazes de executar as mesmas funções.
"A
coincidência da promulgação da lei que suspendia o tráfico
interatlântico com a lei que mandava contar os vivos e os mortos e, não
menos importante, passar do pároco ao escrivão - isto é, de Deus ao
Coronel - o registro de nascimentos, eram certamente indicativos para as
populações pauperizadas do agreste de que grandes mudanças se
avizinhavam", resume Olivares.
De 1872 em diante, o Brasil
realizou outros 11 censos. A partir de 1940, a pesquisa ficou a cargo do
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Ao longo
desses quase 150 anos, os levantamentos revelaram mudanças intensas no
país. A população, por exemplo, saltou dos cerca de 10 milhões, no
período do Império, para 190 milhões, em 2010 - o último levantamento
realizado.
Os censos também passaram a registrar cada vez mais
dados, como rendimento, transformações no domicílio, desemprego,
movimentos de migração - informações usadas por todos os níveis de
governo para embasar políticas públicas.
O próximo Censo será
realizado pelo IBGE em 2020. Devido a restrições orçamentárias no país, a
expectativa é que o orçamento da pesquisa seja cortado em até 25%. Para
lidar com essa redução, uma das possibilidades discutidas é cortar o
número de perguntas feitas aos brasileiros, limitando o escopo do censo.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/48391613
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