Relatório traz à luz a terrível situação das mulheres indígenas e acusa o Estado de ser “cúmplice” dessa impunidade
Ninguém ajudou Tina Fontaine antes de ser assassinada. Depois da
morte violenta do pai, quando ela tinha 12 anos, começou a faltar à
escola, a usar drogas, a fugir de casa e a sair com adultos que abusaram
sexualmente dela. Apesar dos sinais de uma grave depressão, os serviços
sociais não atenderam a menor. Em agosto de 2014, quando tinha 15 anos,
o cadáver da adolescente, pertencente ao povo anishinaabe, foi
encontrado no rio Vermelho, em Winnipeg (Canadá), enrolado em um
cobertor. Fontaine estava desaparecida havia uma semana. Um júri
absolveu o único suspeito do crime, Raymond Joseph Cormier. O caso
provocou grande indignação e foi um dos fatores que desencadearam uma
investigação independente em nível nacional sobre a violência contra as
mulheres indígenas no Canadá que, 33 meses depois, concluiu que o país foi “cúmplice” de um “genocídio” contra essa população.
Depois
de ouvir os depoimentos de cerca de 1.500 pessoas (familiares, vítimas,
especialistas de diferentes áreas), a comissão encarregada de
investigar esses fatos entregou na semana passada um relatório de 1.192
páginas. “Este genocídio se apoiou nas estruturas colonialistas” que
ainda sobrevivem no Estado canadense, como conclui o documento.
Refere-se, entre outras, à Indian Act, a lei federal que regula a
maioria das atividades dos grupos autóctones.
O relatório mostra que os erros do sistema, como o que Fontaine experimentou em sua própria carne, são mais comuns entre as indígenas.
Elas são as mais vulneráveis e as que mais sofrem mais com a violência
em um ambiente de racismo, falta de atenção e impunidade. Segundo dados
da Real Polícia Montada do Canadá, a taxa de homicídios das mulheres
pertencentes a grupos autóctones é quase seis vezes superior à do resto
dos canadenses. Cerca de 10% de todas as mulheres declaradas
desaparecidas são indígenas. Em seu conjunto, os grupos autóctones
canadenses –como os Innu, Cree, Abenaki, Mohawk e Atikamekw– contam com
1,6 milhão de membros, 4,6% da população total do país.
Inação do Estado
Os autores do relatório não apontam, com nomes e sobrenomes, os
responsáveis por esse quadro aterrorizante, mas denunciam que esses
crimes obedecem a um “genocídio planejado, baseado na raça, na
identidade e no gênero”, que se apoia em políticas colonialistas e na
inação do Estado e que atinge especialmente mulheres, meninas e membros
da comunidade LGTBI.
Indiretamente, o relatório se refere tanto ao Governo federal quanto ao
de cada uma das províncias. Desde 1980, as indígenas assassinadas e
desaparecidas somam 1.200, segundo os cálculos mais conservadores. Em
muitos casos, não se sabe quem foram os autores, porque os crimes
ficaram impunes.
“De repente, o mundo desmoronou. Tamara havia desaparecido. Passaram
os dias, as semanas, os meses e os anos”, disse Gladys Radek, cujo
depoimento aparece no relatório. Radek é tia de Tamara Lynn Chipman, uma
jovem que foi vista pela última vez em uma estrada no norte da Colúmbia
Britânica, uma província canadense, em 21 de setembro de 2005. Ela
tinha 22 anos e um filho de três. “Minha irmã desapareceu em 18 de junho
de 2006”, conta Melanie Morrison no mesmo documento. “Encontraram seus
restos quatro anos depois, a menos de um quilômetro de sua casa. A
polícia local estava encarregada da investigação, mas depois passou para
a do Quebec. O caso ainda está aberto”, acrescentou.
Abusos físicos, psicológicos e sexuais
O relatório evoca a esterilização forçada de
indígenas, prática que oficialmente terminou em 1973, mas que poderia
ter continuado de acordo com investigações e depoimentos
O relatório também faz referência à rede de internatos, que funcionou
entre 1883 e 1996, onde cerca de 150.000 crianças foram levadas à força
para serem despojadas de suas expressões culturais. Uma Comissão da
Verdade concluiu em 2015 que lá sofriam abusos físicos, psicológicos e
sexuais, e estimou que cerca de 3.200 crianças morreram nesses centros
por falta de cuidados.
Alguns especialistas apontam que a experiência nos
internatos foi um fator que propagou a violência e os problemas de
dependência entre os sobreviventes. Da mesma forma, o relatório evoca as
esterilizações forçadas sofridas por várias mulheres indígenas, prática
que oficialmente terminou em 1973, mas investigações e vários
depoimentos apontaram para casos posteriores. Além disso, o texto
destaca que a taxa de suicídio é de cinco a sete vezes maior entre os
jovens indígenas.
A comissão fez 231 recomendações, inclusive mudanças nos protocolos
policiais, com mais agentes indígenas, e no sistema judicial. O
relatório afirma que o aparato de justiça ignorou desde sempre os
problemas das indígenas e as viu através de “lentes de racismo
persistente e estereótipos sexistas”. Isso gerou muita desconfiança
entre elas em relação ao sistema. “A apatia da polícia muitas vezes toma
a forma de estereotipar as vítimas e criminalizá-las, como quando a
polícia descreve as desaparecidas como ‘bêbadas’, ‘festeiras’ ou
‘prostitutas que não vale a pena procurar’”, segundo o relatório.
Os familiares das vítimas entrevistados afirmaram que os processos
judiciais eram frequentemente, em sua opinião, “inadequados, injustos e
traumáticos”. O documento também enfoca a misoginia, a homofobia e a
transfobia que essas pessoas enfrentam no dia a dia, bem como as
dificuldades que enfrentam para ter acesso a vários serviços.
Polêmica sobre como definir um problema alarmante
“Saudamos seu trabalho [da comissão de investigação] e aceitamos suas
descobertas, especialmente que o que aconteceu foi um genocídio”, disse
o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, na semana passada, um dia depois da apresentação do relatório, à qual também compareceu.
A referência ao genocídio provocou polêmica. No coro dos debates,
algumas vozes catalogam essa afirmação como precisa e extremamente
necessária; outras a definem como não adequada. No entanto, ninguém põe
em duvida a grave situação que enfrentam os povos indígenas do país.
A convenção sobre o genocídio de 1948 define o crime de maneira
estrita: se refere a atos violentos que são cometidos claramente com uma
intenção muito específica, o que muitas vezes é difícil de provar. No
relatório sobre as mulheres indígenas, os autores argumentam que o termo
genocídio é válido neste caso e, “dada a gravidade” do problema,
preparam um relatório complementar dedicado apenas a fornecer detalhes
sobre suas razões para qualificá-lo assim.
Fonte - https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/09/internacional/1560074545_588818.html
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