Não temos que fazer do direito penal algo melhor, mas sim fazer algo melhor que o direito penal
Gustav Radbruch
Quando se trata de crime organizado, a Itália é referência. Não só pelas organizações mafiosas que marcam sua história, mas pelas iniciativas para combate-las. Giovanni Falcone e Paolo Borselino são figuras mundialmente reconhecidas por suas ações antimáfia e seu trágico fim. A Operação Mãos Limpas, referência no combate à corrupção, é citada como exemplo a ser seguido por juízes e procuradores brasileiros.
Por isso, vale olhar de perto a história do combate às organizações criminosas na península, seus sucessos e fracassos, e aprender com seus acertos e erros[1].
Nos anos 80 e 90 a Itália produziu leis em série que endureceram o tratamento do crime organizado. Em 1982, após o assassinato do general-prefeito de Palermo Dalla Chiesa, foi criado o delito de organização criminosa de tipo mafioso, com penas altas. Depois, foram aprovadas regras sobre prisões preventivas, de confisco, e de endurecimento da execução penal.
Em 1992, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, símbolos da luta contra o crime organizado, foram assassinados nas ruas de Palermo. A violência das mortes chocou e levou às ruas milhares de pessoas, que exigiam leis mais duras contra aqueles que participavam da máfia. A resposta do Parlamento foi rápida. Foram criados novos crimes e um regime ainda mais severo para o cumprimento de pena, criando-se na Itália um sistema penal bipolar, ou do duplo binário, que trata de forma distinta os agentes de crimes comuns daqueles que participam de organizações mafiosas.
Para além de diferentes penas, há para os últimos prazos mais longos para investigações e interceptações telefônicas, regime de cautelares e de penas diversos, todos previstos em um Código específico, que reúne as regras voltadas aos grupos mafiosos. Existe toda uma estrutura legal distinta, que deixa no ar uma sensação de aplicação prática do direito penal do inimigo de Jakobs.
No campo da corrupção, a mesma política foi adotada. A Lei Spazzacorroti (Varre Corruptos) consolidou a ampliação do que se entende por corrupção – afastando-se a necessidade do ato de ofício, aumentou penas e instituiu regras mais duras sobre cautelares e execução penal.
As constantes alterações legislativas permitiram alguns processos e condenações simbólicas. O Maxiprocesso de 1992 levou à prisão 476 membros da Cosa Nostra, enquanto a Operação Mãos Limpas investigou e processou milhares de políticos e empresários nos mesmos anos 90.
Os resultados foram importantes. Mas, por maiores que sejam os números apresentados, foram momentos específicos e experiências isoladas. Embora a Cosa Nostra – máfia siciliana – tenha reduzido sua ostensividade, a cidade de Palermo continua dividida em mandamentos mafiosos – conhecidos e mapeados pelas autoridades. Como bem pontuou Ney Bello em artigo nesta Conjur[2] cerca de 70% dos comerciantes de Palermo ainda pagam o pizzo, a taxa cobrada pela máfia para garantir segurança às pessoas e estabelecimentos. Em 2013, eram estimados mais de dois mil filiados na Cosa Nostra apenas em Palermo, sem contar os demais grupos mafiosos que ligam a Itália ao resto do mundo através do tráfico de drogas e outros crimes.
Já a decepção com os resultados da Mãos Limpas vem nas palavras de um dos procuradores mais destacados da operação, Gherardo Colombo: “Apesar dos treze anos de investigações e processos, a corrupção na Itáia não desapareceu. Ao contrário, a opinião geral é de que esteja no mesmo nível ou até mesmo de que a situação tenha piorado”. E conclui: “A Manu Pulite é a comprovação de que o processo penal não pode reduzir a corrupção”[3].
Ao que parece, a instituição de grandes processos, condenações simbólicas e a transformação de procuradores e juízes em heróis não contribuiu para a redução do crime organizado na Itália. A máfia continua a atuar sob as estátuas e Falcone e Borselino. Talvez menos ostensiva, menos violenta, mas certamente mais sofisticada e produtiva.
Com alguma distância temporal, e peculiaridades próprias, o Brasil usou do mesmo remédio para enfrentar a corrupção e o crime organizado. Foi aprovada em 2013 uma lei que define e tipifica a organização criminosa, com penas, métodos de investigação específicos e medidas cautelares próprias. A execução penal também foi recrudescida com a instituição do Regime Disciplinar Diferenciado e as regras sobre lavagem de dinheiro tornaram-se mais duras.
O resultado foi similar ao italiano: pequeno. Apenar de simbólicos processos, como o Mensalão e a Lava Jato, os resultados são tímidos no que se refere ao crime organizado. O PCC tem cerca de 30 mil membros e movimenta cerca de 400 milhões de reais ao ano. O Brasil continua a ocupar altos postos em rankings de corrupção.
Apesar disso, as propostas na pauta do Congresso Nacional insistem na mesma política criminal de aumento de penas e do encarceramento, na linha proposta pelo atual Ministro da Justiça Sergio Moro.
Não funcionou na Itália. Não funcionará no Brasil.
O aumento de penas e a deflagração de grandes operações pode oferecer um alento momentâneo, em especial para aqueles que sofrem de forma mais direta a violência das ordens delitivas. Mas no médio prazo não significam muito. As condições que permitiram tais operações são peculiares e raramente se repetem. Os soldados do crime presos são facilmente substituídos, enquanto seus líderes continuam a operar dentro do presídio, usando as próprias condições do encarceramento para ampliar sua rede de contatos, cobrando pedágios, recrutando adeptos, organizando demandas e suprindo necessidades.
Combater a corrupção e as ordens criminosas exige propostas mais inteligentes que o binômio crime/pena, que identifiquem as formas de organização e financiamento das entidades, que incentivem a deserção e a delação, que facilitem a identificação dos beneficiários finais de suas atividades.
O próprio Giovanni Falcone apontava a necessidade de medidas para além da prisão para combater o crime organizado, explicando que “os mafiosos temem mais o confisco de bens do que serem presos”. O procurador da Mãos Limpas, Gherardo Colombo, defende uma regra de anistia para políticos e empresários que – dentro de um período – devolverem os recursos ilícitos e relatarem suas operações[4].
São propostas que exigem reflexão. Não existem soluções mágicas. É necessário dedicar tempo para repensar o sistema de colaborações premiadas, tornando-o mais seguro, para desenvolver métodos de rastreamento de patrimônio ilícito, para negociar acordos mais eficientes de cooperação internacional, para desenvolver métodos de gestão de informações capazes de identificar o funcionamento das estruturas criminosas.
De nada adianta aumentar anos de penas ou criar regimes severos sem a integração de dados policiais, sem a organização mínima dos cartórios onde correm os processos penais, sem a qualificação de servidores que possam levar adiante uma perícia ou uma análise contábil em tempo adequado.
O combate ao crime organizado exige mais do que super-heróis e ameaças de pena. Como ensina SANTINO, “Per combatere questi gruppi non ci vuole um singolo eroe, ma un impegno corale, coletivo”. Estátuas de juízes e procuradores podem ser inspiradoras, mas não resolvem um problema que continua a afligir milhares de pessoas e que afeta profundamente as relações políticas, sociais e econômicas do país.
Gustav Radbruch
Quando se trata de crime organizado, a Itália é referência. Não só pelas organizações mafiosas que marcam sua história, mas pelas iniciativas para combate-las. Giovanni Falcone e Paolo Borselino são figuras mundialmente reconhecidas por suas ações antimáfia e seu trágico fim. A Operação Mãos Limpas, referência no combate à corrupção, é citada como exemplo a ser seguido por juízes e procuradores brasileiros.
Por isso, vale olhar de perto a história do combate às organizações criminosas na península, seus sucessos e fracassos, e aprender com seus acertos e erros[1].
Nos anos 80 e 90 a Itália produziu leis em série que endureceram o tratamento do crime organizado. Em 1982, após o assassinato do general-prefeito de Palermo Dalla Chiesa, foi criado o delito de organização criminosa de tipo mafioso, com penas altas. Depois, foram aprovadas regras sobre prisões preventivas, de confisco, e de endurecimento da execução penal.
Em 1992, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, símbolos da luta contra o crime organizado, foram assassinados nas ruas de Palermo. A violência das mortes chocou e levou às ruas milhares de pessoas, que exigiam leis mais duras contra aqueles que participavam da máfia. A resposta do Parlamento foi rápida. Foram criados novos crimes e um regime ainda mais severo para o cumprimento de pena, criando-se na Itália um sistema penal bipolar, ou do duplo binário, que trata de forma distinta os agentes de crimes comuns daqueles que participam de organizações mafiosas.
Para além de diferentes penas, há para os últimos prazos mais longos para investigações e interceptações telefônicas, regime de cautelares e de penas diversos, todos previstos em um Código específico, que reúne as regras voltadas aos grupos mafiosos. Existe toda uma estrutura legal distinta, que deixa no ar uma sensação de aplicação prática do direito penal do inimigo de Jakobs.
No campo da corrupção, a mesma política foi adotada. A Lei Spazzacorroti (Varre Corruptos) consolidou a ampliação do que se entende por corrupção – afastando-se a necessidade do ato de ofício, aumentou penas e instituiu regras mais duras sobre cautelares e execução penal.
As constantes alterações legislativas permitiram alguns processos e condenações simbólicas. O Maxiprocesso de 1992 levou à prisão 476 membros da Cosa Nostra, enquanto a Operação Mãos Limpas investigou e processou milhares de políticos e empresários nos mesmos anos 90.
Os resultados foram importantes. Mas, por maiores que sejam os números apresentados, foram momentos específicos e experiências isoladas. Embora a Cosa Nostra – máfia siciliana – tenha reduzido sua ostensividade, a cidade de Palermo continua dividida em mandamentos mafiosos – conhecidos e mapeados pelas autoridades. Como bem pontuou Ney Bello em artigo nesta Conjur[2] cerca de 70% dos comerciantes de Palermo ainda pagam o pizzo, a taxa cobrada pela máfia para garantir segurança às pessoas e estabelecimentos. Em 2013, eram estimados mais de dois mil filiados na Cosa Nostra apenas em Palermo, sem contar os demais grupos mafiosos que ligam a Itália ao resto do mundo através do tráfico de drogas e outros crimes.
Já a decepção com os resultados da Mãos Limpas vem nas palavras de um dos procuradores mais destacados da operação, Gherardo Colombo: “Apesar dos treze anos de investigações e processos, a corrupção na Itáia não desapareceu. Ao contrário, a opinião geral é de que esteja no mesmo nível ou até mesmo de que a situação tenha piorado”. E conclui: “A Manu Pulite é a comprovação de que o processo penal não pode reduzir a corrupção”[3].
Ao que parece, a instituição de grandes processos, condenações simbólicas e a transformação de procuradores e juízes em heróis não contribuiu para a redução do crime organizado na Itália. A máfia continua a atuar sob as estátuas e Falcone e Borselino. Talvez menos ostensiva, menos violenta, mas certamente mais sofisticada e produtiva.
Com alguma distância temporal, e peculiaridades próprias, o Brasil usou do mesmo remédio para enfrentar a corrupção e o crime organizado. Foi aprovada em 2013 uma lei que define e tipifica a organização criminosa, com penas, métodos de investigação específicos e medidas cautelares próprias. A execução penal também foi recrudescida com a instituição do Regime Disciplinar Diferenciado e as regras sobre lavagem de dinheiro tornaram-se mais duras.
O resultado foi similar ao italiano: pequeno. Apenar de simbólicos processos, como o Mensalão e a Lava Jato, os resultados são tímidos no que se refere ao crime organizado. O PCC tem cerca de 30 mil membros e movimenta cerca de 400 milhões de reais ao ano. O Brasil continua a ocupar altos postos em rankings de corrupção.
Apesar disso, as propostas na pauta do Congresso Nacional insistem na mesma política criminal de aumento de penas e do encarceramento, na linha proposta pelo atual Ministro da Justiça Sergio Moro.
Não funcionou na Itália. Não funcionará no Brasil.
O aumento de penas e a deflagração de grandes operações pode oferecer um alento momentâneo, em especial para aqueles que sofrem de forma mais direta a violência das ordens delitivas. Mas no médio prazo não significam muito. As condições que permitiram tais operações são peculiares e raramente se repetem. Os soldados do crime presos são facilmente substituídos, enquanto seus líderes continuam a operar dentro do presídio, usando as próprias condições do encarceramento para ampliar sua rede de contatos, cobrando pedágios, recrutando adeptos, organizando demandas e suprindo necessidades.
Combater a corrupção e as ordens criminosas exige propostas mais inteligentes que o binômio crime/pena, que identifiquem as formas de organização e financiamento das entidades, que incentivem a deserção e a delação, que facilitem a identificação dos beneficiários finais de suas atividades.
O próprio Giovanni Falcone apontava a necessidade de medidas para além da prisão para combater o crime organizado, explicando que “os mafiosos temem mais o confisco de bens do que serem presos”. O procurador da Mãos Limpas, Gherardo Colombo, defende uma regra de anistia para políticos e empresários que – dentro de um período – devolverem os recursos ilícitos e relatarem suas operações[4].
São propostas que exigem reflexão. Não existem soluções mágicas. É necessário dedicar tempo para repensar o sistema de colaborações premiadas, tornando-o mais seguro, para desenvolver métodos de rastreamento de patrimônio ilícito, para negociar acordos mais eficientes de cooperação internacional, para desenvolver métodos de gestão de informações capazes de identificar o funcionamento das estruturas criminosas.
De nada adianta aumentar anos de penas ou criar regimes severos sem a integração de dados policiais, sem a organização mínima dos cartórios onde correm os processos penais, sem a qualificação de servidores que possam levar adiante uma perícia ou uma análise contábil em tempo adequado.
O combate ao crime organizado exige mais do que super-heróis e ameaças de pena. Como ensina SANTINO, “Per combatere questi gruppi non ci vuole um singolo eroe, ma un impegno corale, coletivo”. Estátuas de juízes e procuradores podem ser inspiradoras, mas não resolvem um problema que continua a afligir milhares de pessoas e que afeta profundamente as relações políticas, sociais e econômicas do país.
[1] O que me foi possível graças ao V Corso di Alta Formazione per Giudici Federali Brasiliani, nas Universitá degli Studi di Palermo, organizado por Ney Bello e Vicenzo Militello
[2] Direito Penal no Brasil e na Itália: uma comparação necessária? em https://www.conjur.com.br/2019-jun-16/direito-penal-brasil-italia-comparacao-necessaria
[3] Colombo, Gherardo. Corrupção e responsabilidade. In PINOTTI, Maria Cristina. Corrupção; lava jato e mãos limpas. São Paulo: Portfolio -Penguin, 2019, p.91
[4] Colombo, Gherardo. Corrupção e responsabilidade. In PINOTTI, Maria Cristina. Corrupção; lava jato e mãos limpas. São Paulo: Portfolio -Penguin, 2019, p.88
Pierpaolo Cruz Bottini é
advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor
livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 2 de julho de 2019, 10h11Fonte:Revista Consultor Jurídico, 2 de julho de 2019, 10h11
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