“Se não morrer na castração… vai dar bom” - Previsão sinistra dos riscos do procedimento rude a que são submetidos os cavalos.
Aquela frase do milico Figueiredo, sobre gostar mais do cheiro dos cavalos que do povo, não foi nada original.
Ouvi, muitas vezes, de meu pai, esta frase que nasceu do desencanto de um poeta beduíno: "Quanto mais conheço os homens, mais amor tenho aos cavalos..."
Seu eu não me tivesse criado nas campanhas de Itaqui, então ásperas e bravias, e no lombo dos cavalos, talvez não desse à sentença do cavaleiro oriental as justas dimensões que lhe dei sempre.
Foi no trato dos galpões, nas madrugadas azuis, tépidas ou geladas, das épocas de estio ou das duras invernias, que eu aprendi todas as razões do amor do gaúcho ao cavalo.
Em nenhuma circunstância, o gaúcho sofrerá um desencanto, do cavalo que habituou ao seu sistema, que afeiçoou à sua maneira, que educou ao seu trato.
E o cavalo, dócil mas altivo, fogoso mas terno a um tempo, acorre, do potreiro ou do fundo do campo em que estiver à voz de chamamento de seu dono e inclina a cabeça indomável à subjugação do buçal.
Não é um ato de humilhação, de covardia ou de subserviência: é um gesto de confiança e de carinho.
Muitas vezes, ao receber o buçal, encosta a cabeça no ombro de seu cavaleiro, como a lhe dizer que o faz pela íntima alegria de servi-lo".
O texto acima, em itálico, é de autoria de MANOELITO DE ORNELLAS (na obra Máscaras e murais de minha terra), publicado em 1966.
Ouso discordar da forma poética com que o talentoso escritor tradicionalista abordou o assunto.
Terá o sufixo "dor", do vocábulo “doma-dor”, o significado de sofrimento, com que estamos habituados?
Penso que não, mas remeto a minha ingênua dúvida aos linguistas.
Pra começar, a doma gaúcha tradicional implicava em uma série de atos violentos, sangrentos, impiedosos, praticados pelo domador contra o animal, macho ou fêmea. Contra o macho era pior ainda, posto que implicava na castração (*) do animal ainda jovem, com o intuito de acalmá-lo, tirar-lhe as "cismas" de reprodutor, tornando-o dócil, conformado, incapaz de lutar com outros sementais ("cuiudos", "pastores") pela posse das fêmeas, dentre outras estrepolias que resultam naturalmente da libido, necessária à perpetuação da espécie. Não era raro resultar, da castração, a morte do animal amputado.
Ironicamente, dizia-se que capar era sinônimo de "beneficiar". (**)
Se a castração é uma demonstração de "amor", ou um benefício, quem de nós não preferiria viver mal amado?
Depois vinha o ritual impiedoso da doma: laçar, amarrar no tronco ("palanque de amansar potro"), deixar com fome e sede, chicotear, orelhar, cabrestear e montar (gineteada), com um "bocal" de couro sovado, que esfolava os beiços e as "barras" (gengivas) do bicho, para que aprendesse a obedecer ao comando do cavaleiro. Na gineteada, o domador não abria mão de esporas perfurantes, massacrando as ilhargas e o ventre do animal.
Havia ainda o "tirão" ou "quebra-queixo", outra crueldade também tendente a submeter o animal ao "sistema" do cavaleiro.
Talvez o que o gaúcho considerava gesto de "amor" se resumisse ao que ainda se denomina "amanonsiar", ou seja, ganhar a confiança do bicho, correndo-lhe a mão pelo corpo, sem causar-lhe nenhuma dor.
A parte do corpo que os animais mais temem, quando delas se lhes aproxima as mãos humanas, é a orelha. Ocorre que, para submeter qualquer animal, pela dor, costumava o domador agarrá-lo por uma das orelhas. Também com uso da "biqueira", submetia o domador, pela dor, a qualquer animal. Aplicada uma volta de tira de couro ou de corda presa a uma das pontas de um porrete, ao belfo ou à orelha e torcido o tal porrete para apertar o torniquete, o animal se rende à dor e permite que o seu dono ou peão pratique uma série de atos que implicam desconforto, tortura, até martírio.
Em suma: o cavalo nunca foi tratado, pelos gaúchos tradicionalistas como ser senciente, mas sim como coisa, utilidade, instrumento insensível, para o serviço ou para o lazer. Em uma palavra, como escravo.
Basta lembrar que, além das famigeradas esporas ("choronas" ou "chilenas"), havia a boleadeira (usada para imobilização do animal, mesmo que isso implicasse em eventual dano físico, consequentemente, no "sacrifício"), os chicotes de vários tipos (desde o "vergalho" de boi), cujo uso não era, obviamente, para fazer qualquer carinho ou afago aos bichos.
As embocaduras pesadas (freios de ferro, dotados de alavancas poderosas), que contavam com o auxílio de correntes (barbelas), destinadas a cortar o couro do queixo do animal desobediente. Ou as serrilhas metálicas, as quais, pela ação das rédeas, pressionavam o focinho do equino, muitas vezes lesionando o couro causando dor.
Não raro, em momentos de fúria ou até de bebedeira, cavaleiros usavam bater na cara dos animais, lesionando-lhes os olhos, do que resultavam úlceras e até cegueiras. Ou, por puro exibicionismo, os cavaleiros faziam a denominada brocha (sentada, esbarro, riscada), parada brusca, que o animal era forçado a fazer, à força de violento puxão no queixo, com que o cavaleiro "pavão" tencionava demonstrar a sua perícia de exímio ginete. Esfoladuras, sinóvias (“ovas”), solas dos cacos feridas e doloridas, dentre outras lesões, poderiam ser o resultado de tais práticas "amorosas".
Nos rodeios de campo aberto e no aparte de bovinos, os animais de montaria ficavam sujeitos, ainda, à reação raivosa dos animais acuados, disto resultando poderosas cornadas, furos nos corpos dos cavalos, até exposição das vísceras...e morte, claro.
Nas desabaladas correrias pelos campos, um simples buraco de coruja, de tatu ou de outro bicho qualquer, implicavam em queda ("rodada:", no linguajar campeiro) e, como consequência, pernas quebradas ...e sacrifício, eis que "osso de cavalo não solda" e cavalo manco só serve pra fazer sabão ou tirar lonca de couro.
Para culminar, muitos animais, depois de trabalhar durante décadas, quando velhos e já sem forças ou destreza, eram vendidos para frigoríficos, virando sabão ou ração para cachorros.
Para dizer o mínimo, os cavalos e éguas eram submetidos, em muitas ocasiões, a jornadas estafantes, sem que os seus "carinhosos" donos cuidassem de prover-lhes comida e água regularmente, nem se preocupassem seriamente com dolorosas esfoladuras, frutos de freios mal ajustados (cantos de boca) e de lombos mal protegidos contra a fricção impiedosa dos arreios (selas) e suas cinchas (barrigueiras).
Muitos, ainda, depois de muito suar, eram simplesmente largados a pasto, sob o clima inclemente, para roerem as escassas ervas dos potreiros. Ou colocados na "soga" (corda), muitas sem rigidez suficiente para evitar que nelas os animais enroscassem as pernas e padecessem doloridas assaduras, no afã de se desenrolar. Não era incomum, premidos pela fome, descurarem os animais de cautelas naturais e comerem o venenoso mio-mio, amanhecendo cadáveres.
Quanto gesto de consideração, de estima (alguns falam em “animais de estimação”) e até de amor, não?
E, frise-se, isto não é tudo. Cólicas intestinais e renais, "nós nas tripas", laminite (mais conhecida como "aguamento", quadro de acidose metabólica, por excesso de trabalho, que leva até à queda dos cascos) e outros "azares" que os animais enfrentavam como decorrência de tratamento inadequado e impiedoso, poderiam ser acrescentados ao panorama geral dos maus tratos incontáveis que o ser humano inflige aos equinos e muares.
As mulas, então, coitadas, fadadas às tropeadas, carregando cargas que muitas vezes tinham pesos próximos dos de seus corpos, sofreram barbaridade na mão dos tropeiros, mascates e pombeiros, montadas ou atreladas, puxando pesados veículos "de tiro" (tração), recebendo, como ração, apenas minguada porção de folhas de taquara ou de coqueiro. E quando, exaustas ou por temor dos riscos de perigosas trilhas, negavam-se a caminhar (empacavam), sofriam atrozes castigos, ou eram largadas em algum almargio.
Em suma: na verdade, os seres humanos nunca trataram os animais em tela sequer com respeito e compaixão mínimos que a condição humana impunha. Muito menos com amor.
É por isto que ousei contestar o festejado escritor gaúcho.
No mais, a obra de Ornellas é muito preciosa. A edição que possuo, simples brochura, com 218 páginas, cuidarei de mandar digitalizá-la, para que algumas pessoas (dentre as poucas que ainda têm a pachorra de apreciar uma boa leitura) possam desfrutar dos fartos conhecimentos nela contidos.
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(*) CASTRAR ou CAPAR - retirar os testículos, com o objetivo de amansar o animal ou de não permitir que se reproduza, transmitindo características morfológicas ou de comportamento indesejáveis. Capar de macete é expressão que se usa para referir o ato da castração sem retirada dos testículos, pelo amassamento dos cordões seminais.
- (...) O potro andava corrido, farejando...Mas nem uma petiça arrastadeira de água e poronguda achou, para consolo da vida. Té que o caparam. (...) - SIMÕES LOPES NETO - Contos Gauchescos & Lendas do Sul - L&PM Editores S.A/SP-RS/1998, p. 144. Dentre as fêmeas, as "éguas bagualas" tinham um destino inglório - Égua baguala era só para tirar as loncas, alguma bota - JOÃO SIMÕES LOPES NETO - Contos gauchescos.
Alguns potros eram apenas "retalhados":
- RETAJAR - Tratándose de caballos, practicar en el aparato generativo una incisión y desvío que, sin dejarlos castrados, les impide su ejercicio, á fin de que, incapaces de procrear, pero enteros, mantengan entablada la tropilla de yeguas en las manadas de retajo.
Cuando una yegua se aparta de la comunidad, el retajado la hace volver á patadas, si no bastan otros requerimientos para inducirla á desistir de su intento.
Lo propio significa retalliar, del esp., retajar, en la prov. bras. de Rio Grande del Sur (Beaurepaire-Rohán), donde tomaron el vocablo de los países del Plata. - DANIEL GRANADA - Vocabulario rio-platense razonado.
(**) PEDRO WAYNE – Xarqueada – Editora Movimento – P. Alegre/1982, p. 21, discorrendo sobre o pesado trabalho da mulher da campanha gaúcha, escreveu: “(...) elas eram que nem homem. Faziam toda a lida do campo, igual como o pai. Laçavam, derrubavam e apartavam um terneiro para curar, marcar, beneficiar, e até a mais pequena pegava na enxada ou no rabo do arado”
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