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terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Até que ponto as decisões judiciais são confiáveis?

 PARADOXO DA CORTE
8 de fevereiro de 2022, 8h00

Por José Rogério Cruz e Tucci

A soberania estatal tem como uma de suas importantes vertentes a função judicial cuja precípua finalidade é a de conferir efetividade ao princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal).


No âmbito das sociedades civilizadas, como é cediço, é defeso fazer justiça pelas próprias mãos. Assim, os litígios são resolvidos por um órgão predeterminado, dotado de jurisdição. Ao conduzir os processos e proferir as suas decisões, os tribunais devem agir de forma independente e imparcial.

Na mesma linha principiológica, que marca as denominadas "Normas Fundamentais do Processo Civil", constantes do preâmbulo do Código de Processo Civil em vigor, inspirando-se, por certo, na dogmática do Direito Privado, o legislador estabelece, no artigo 5º, uma cláusula geral de boa-fé processual, que deverá nortear a conduta, durante as sucessivas etapas do procedimento, de todos os protagonistas do processo: o juiz, as partes, o representante do Ministério Público, o defensor público e também os auxiliares da justiça (serventuários, peritos, intérpretes, etc.). O fundamento constitucional da boa-fé advém da cooperação ativa dos litigantes, especialmente no contraditório, que devem participar da construção da decisão, colaborando, pois, com a prestação jurisdicional. Não há se falar, com certeza, em processo justo e équo se as partes atuam de forma abusiva, conspirando contra as garantias constitucionais do devido processo legal.

Note-se que a boa-fé processual se desdobra nos deveres de veracidade e de lealdade na realização dos atos processuais, contemplados nos artigos 77 e 142 do Código de Processo Civil. O descumprimento destes deveres caracteriza ato atentatório à dignidade da justiça e litigância de má-fé, cujas sanções estão detalhadamente previstas no diploma processual.

Acrescente-se, por outro lado, que o Código de Processo Civil também impõe comportamento ético e leal aos órgãos jurisdicionais, coibindo-os, por exemplo, de proferir "decisão-surpresa" (artigo 9º). Exemplo marcante da lealdade do órgão jurisdicional em relação aos litigantes vem expresso na preciosa regra do parágrafo único do artigo 932 do diploma processual: "Antes de considerar inadmissível o recurso, o relator concederá o prazo de 5 (cinco) dias ao recorrente para que seja sanado o vício ou complementada a documentação exigível".

Bem é de ver, por outro lado, que os pronunciamentos judiciais se revestem da presunção de legalidade. É dizer: as decisões, em princípio, devem se conformar com as normas jurídicas. Enquanto permanecerem hígidos, os atos decisórios são eficazes e traduzem confiança aos seus destinatários. Tanto é verdade, que a própria legislação processual autoriza o cumprimento de decisões mesmo antes de seu respectivo trânsito em julgado.

Sob diferente perspectiva, a segurança jurídica, como relevante vetor social, decorre da certeza do direito, materializada nos julgamentos de nossos tribunais.

Confiança e segurança constituem destarte o binômio para um pacífico convívio em sociedade.

Saliente-se outrossim que no âmbito do processo de cunho cooperativo, entre os deveres do juiz, destaca-se o de "auxílio", no sentido de exortar ou facilitar às partes a superação de eventuais dificuldades ou obstáculos que impeçam o exercício de direitos ou faculdades (por exemplo: ao julgar os embargos de declaração, atender, tanto quanto possível, ao escopo da pretensão da parte, explicitando o fundamento que restou omisso, para que este reste efetivamente prequestionado na complementação do acórdão).

Ademais, nessa linha de raciocínio, não é incomum que da decisão colegiada conste um obiter dictum, ou seja, uma recomendação a latere que, embora não sendo parte do núcleo do julgamento, presta-se a esclarecer tanto o juiz de primeiro grau quanto as partes envolvidas na demanda.

A esse propósito, para evitar a oposição de embargos de declaração, que tem causado confessadamente enorme repugnância aos integrantes dos tribunais, a prática revela que algumas turmas julgadoras têm "ameaçado" os litigantes com potencial aplicação de sanção processual, caso sejam opostos embargos de declaração. E, assim, iludindo as partes — que, de resto, depositam confiança no Judiciário —, fazem constar do acórdão capciosa exortação, mais ou menos nos seguintes termos:

"... Por fim, para facultar eventual acesso às vias especial e extraordinária, considero prequestionada toda a matéria infraconstitucional e constitucional, observando a sedimentada orientação do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, na hipótese de prequestionamento, é desnecessária a citação numérica dos dispositivos legais, bastando que a questão colocada tenha sido decidida... Desse modo, na hipótese de oposição de aclaratórios, incidirá o disposto no artigo 1.026 do CPC, com a imposição de multa".

O advogado, muitas vezes incauto pela inexperiência, por um lado, temeroso da aplicação da referida sanção processual, e, de outro, fiando-se piamente na afirmação provinda de quem detém o poder de dizer o direito, deixa de provocar o tribunal para, em atendimento ao enunciado das Súmulas 211/STJ e 356/STF, buscar o prequestionamento da tese que restou omissa no acórdão.

A despeito da inequívoca denegação de justiça, o passo seguinte da parte que deseja se insurgir contra o acórdão é então o da interposição de recurso especial e/ou extraordinário.

Pois bem, qual não é a decepção (para dizer o mínimo) do cliente e, em particular, do causídico, ao se depararem com o seguinte pronunciamento do Supremo ou do Superior Tribunal de Justiça, que nega seguimento ao recurso, forte no argumento de que:

"Caberia à parte alegar violação do artigo 1.022 do CPC/2015, o que não ocorreu. Dessa forma, à falta do indispensável prequestionamento, incide a Súmula nº 211 do Superior Tribunal de Justiça.
(...)
Ressalte-se que esta Corte Superior perfilha o entendimento de que a admissão do prequestionamento ficto previsto no art. 1.025 do CPC/2015 exige que se aduza, no recurso especial, violação do art. 1.022 do diploma processual (art. 535 do CPC/1973), providência não adotada pelo recorrente".

Do cotejo de ambas as decisões, isto é, a do tribunal de origem e a da corte superior, fica patenteada a impressão de que aquela não ostenta valor algum..., não vale o preço do papel em que é lançada...

Sim, porque, primeiro, tal certificação no acórdão recorrido não tem o condão de suprir o efetivo prequestionamento; segundo, o tribunal superior, preferindo pautar-se pelo rigor técnico, não demonstra qualquer espírito cooperativo com a parte recorrente. Faz ouvido de mercador à "promessa" contida no acórdão impugnado, deixando de cumprir o mandamento do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, visto que não tem a mínima preocupação em justificar o motivo pelo qual a tese exposta nas razões recursais não foi prequestionada de forma satisfatória.

Entendo, contudo, com mais de 40 anos de efetivo exercício da advocacia, que, em prestígio à segurança jurídica, as coisas não podem ser assim... A credibilidade que as decisões infundem aos cidadãos não pode ser desmoralizada no próprio seio do Judiciário, pela famigerada e muito mal vista "jurisprudência defensiva"!

É por esta razão que o diálogo dos pronunciamentos judiciais deve ser regido por um grau de respeito, integridade e coerência, a evitar situações como estas, que, a um só tempo, acarretam notório desgaste institucional e, muito pior, produzem considerável prejuízo ao direito dos litigantes!


José Rogério Cruz e Tucci é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da Aasp, professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

Revista Consultor Jurídico, 8 de fevereiro de 2022, 8h00

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