Perfil

Advogado - Nascido em 1949, na Ilha de SC/BR - Ateu - Adepto do Humanismo e da Ecologia - Residente em Ratones - Florianópolis/SC/BR

Mensagem aos leitores

Benvindo ao universo dos leitores do Izidoro.
Você está convidado a tecer comentários sobre as matérias postadas, os quais serão publicados automaticamente e mantidos neste blog, mesmo que contenham opinião contrária à emitida pelo mantenedor, salvo opiniões extremamente ofensivas, que serão expurgadas, ao critério exclusivo do blogueiro.
Não serão aceitas mensagens destinadas a propaganda comercial ou de serviços, sem que previamente consultado o responsável pelo blog.



terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

O direito ao silêncio é hoje garantido pela Constituição - Sempre foi assim?



- Homem que estás aqui acorrentado, pela última vez, escuta a voz da justiça. Foste tirado de tua cela e trazido para esta cadeia. Devidamente interpelado, e dentro das formas requeridas, formalis verbis pressus, sem ter levado em consideração as leituras e comunicados que te foram feitos e que te serão renovados, inspirado por um espírito de tenacidade má e perversa, tu te fechaste em silêncio e te recusaste a responder ao juiz, o que se trata de uma conduta detestável e constitui, entre os fatos castigáveis do cashlit, o crime e delito de oversenesse.

O oficial perito em leis, em pé à direita do xerife, interrompeu e disse, com uma indiferença que tinha algo de fúnebre:

— Overhernessa. Lei de Alfred e de Godrum. Capítulo seis.

O xerife continuou:

— A lei é venerada por todos, exceto pelos ladrões que infestam os bosques onde os cervos se procriam.

Como uma badalada depois da outra, o oficial disse: — Qui faciunt vastum in foresta ubi damœ solent founinare. — Aquele que se recusa a responder ao magistrado — disse o xerife — é suspeito de todos os vícios, é considerado capaz de todos os males.

O oficial interveio: — Prodigus, devorator, profusus, salax, ruffianus, ebriosus, luxuriosus, simulator, consumptor patrimonii, elluo, ambro, et gluto.

— Todos os vícios — disse o xerife — pressupõem todos os crimes. Quem não admite nada confessa tudo. Aquele que cala diante das perguntas de um juiz é de fato mentiroso e parricida.

— Mendax et parricida — disse o oficial.

O xerife prosseguiu: — Homem, não é permitido fazer-se de ausente pelo silêncio. O dissimulado contumaz faz uma ferida na lei. Assemelha-se a Diomedes ferindo uma deusa. A taciturnidade diante da justiça é uma forma de rebeldia. Lesa-justiça equivale a lesa-majestade. Nada mais odioso e temerário. Quem se subtrai ao interrogatório rouba a verdade. A lei se preveniu contra isso. Para casos como esse, os ingleses têm usufruído desde sempre do direito de fosso, de forca e de correntes.

— Anglica charta, ano 1088 — disse o oficial.

E sempre com a mesma gravidade mecânica acrescentou: — Ferrum, et fossam, et furcas, cum aliis libertatibus.

O xerife continuou: — É por isso, homem, porque não quiseste renunciar ao silêncio, apesar de estar mentalmente são e perfeitamente informado a respeito do que te pede a justiça; por seres diabolicamente refratário, tiveste de ser supliciado e, nos termos dos estatutos criminais, tiveste de ser colocado à prova pelo tormento chamado “pena forte e dura”. Eis o que te foi aplicado. A lei exige que sejas autenticamente informado por mim a esse respeito. Foste trazido para este porão, foste despido de tuas roupas, foste colocado nu, deitado de costas sobre o chão, teus quatro membros foram estendidos e amarrados às quatro colunas da lei, uma prancha de ferro foi colocada sobre teu ventre e foram colocadas sobre teu corpo tantas pedras quantas consegues suportar.

“E mais”, diz a lei. — Plusque — anunciou o oficial.

O xerife prosseguiu: — Nessa situação, e antes de dar continuidade à prova, foi-te feita por mim, xerife do condado de Surrey, reiterada intimação para responder e falar, mas satanicamente perseverastes no silêncio, apesar de submetido a privações, correntes, grilhões, travas e ferros.

— Attachiamenta legalia — disse o oficial.

— Com base em tua recusa e resistência — disse o xerife —, uma vez que a obstinação da lei é equivalente à obstinação do criminoso, a prova teve continuidade, tal como recomendam os editais e textos. No primeiro dia, nada te foi dado de comer nem de beber.

— Hoc est superjejunare — disse o oficial.

Fez-se um silêncio. Ouvia-se a medonha respiração do homem sob o amontoado de pedras.

O oficial completou, depois da interrupção: — Adde augmentum abstinentiœ ciborum diminutione. Consuetudo britannica, artigo quinhentos e quatro.

Os dois homens, o xerife e o oficial, se alternavam; nada era mais sombrio do que essa imperturbável monotonia. A voz lúgubre respondia à voz sinistra; pareciam o padre e o diácono do suplício celebrando a feroz missa da lei.

O xerife recomeçou: — No primeiro dia, nada te foi dado de comer nem de beber. No segundo dia, deram-te de comer, mas não de beber; puseram entre teus dentes três nacos de cevada. No terceiro dia, deram-te de beber, mas não de comer. Derramaram na tua boca, por três vezes e com três copos, um quartilho de água recolhida do encanamento da prisão.

O quarto dia chegou. É hoje. Agora, se insistires em não responder, serás deixado aí até que morras. Assim quer a justiça.

O oficial, sempre fazendo sua réplica, aprovou: — Mors rei homagium est bonœ legi.

— E enquanto te sentires lamentavelmente morrendo — retomou o xerife — ninguém te ajudará, ainda que o sangue saia pela tua garganta, barba e axilas, e por todos os buracos do teu corpo, da boca até os rins.

— A throtebolla et pabu et subhircis, et a grugno usque ad crupponum.

O xerife continuou: — Homem, presta atenção. Pois as consequências te esperam. Se renunciares a teu execrável silêncio e confessares, serás apenas enforcado, e terás direito ao meldefeoh, que é uma quantia em dinheiro. — Damnum confitens habeat le meldefeoh — disse o oficial.

— Leges Inœ, capítulo vinte. — Quantia essa — insistiu o xerife — que te será paga em doitkins, suskins e galihalpens, único caso em que essa moeda pode ser utilizada, nos termos do estatuto da abolição, ano terceiro de Henrique quinto, e terás direito a usufruir de scortum ante mortem, e depois serás estrangulado na forca.

Essas são as vantagens da confissão. Gostarias de responder à justiça?

O xerife se calou e aguardou.

O condenado permaneceu imóvel.

O xerife retomou: — Homem, o silêncio é um refúgio onde há mais risco do que salvação. A obstinação é condenável e perversa. Quem se cala diante da justiça é traidor da Coroa. Não persistas nessa desobediência não filial. Pensa em Nossa Majestade. Não oponhas resistência à nossa graciosa rainha. Responde a ela quando me dirijo a ti. Mostra tua lealdade.

O padecente arquejou.

O xerife recomeçou: — Então, após as primeiras setenta e duas horas de prova, eis que chegamos ao quarto dia. Homem, este é o dia decisivo. É no quarto dia que a lei fixa a confrontação.

— Quarta die, frontem ad frontem adduce — resmungou o oficial. — A sabedoria da lei — continuou o xerife — escolheu esta hora extrema para o que nossos ancestrais chamavam de “julgamento pelo frio mortal”, visto que é o momento em que se acredita nos homens com base em seu sim e em seu não. O oficial apoiou: — Judicium pro frodmortell, quod homines credendi sint per suum ya et per suum na. Carta do rei Adelstan. Tomo primeiro, página cento e setenta e três.

Houve um momento de espera, depois o xerife inclinou seu rosto severo na direção do condenado. — Homem que aí estás deitado no chão… Fez uma pausa. — Homem, tu me ouves? —gritou ele.

O homem não se mexeu.

— Em nome da lei, abre os olhos — disse o xerife.

As pálpebras do homem permaneceram fechadas. O xerife se voltou para o médico que estava em pé à sua esquerda: — Doutor, dê seu diagnóstico. — Probe, da diagnosticum — disse o oficial.

O médico desceu da pedra com uma rigidez magistral, aproximou-se do homem, inclinou-se, colocou o ouvido perto da sua boca, sentiu sua pulsação no punho, na axila e na coxa, e levantou-se.

— E então? — disse o xerife.

— Ele ainda ouve — respondeu o médico.

— Ele vê? — perguntou o xerife.

— Ele pode ver — respondeu o médico.

A um sinal do xerife, o justiceiro-quorum e o wapentake avançaram. O wapentake aproximou-se da cabeça do padecente; o justiceiro-quorum parou atrás de Gwynplaine.

O médico recuou um passo entre os pilares.

Então, levantando o buquê de rosas como um padre levanta seu aspersório, o xerife interpelou o homem em voz alta deste modo formidável: — Ó miserável, fala! A lei te suplica antes de te exterminar. Queres parecer mudo, pensa na tumba, que é muda; queres parecer surdo, pensa na condenação, que é surda. Pensa na morte, que é pior do que tu. Pensa bem, serás abandonado nesta masmorra. Escuta, meu semelhante, pois sou um homem! Escuta, meu irmão, pois sou cristão! Escuta, meu filho, pois sou velho! Cuidado comigo, pois sou o mestre do teu sofrimento e em breve serei terrível. O horror da lei faz a grandiosidade do juiz. Pensa que eu mesmo estremeço diante de mim. Meu próprio poder me consterna. Não me faças perder a paciência. Sinto-me cheio da santa maldade do castigo. Portanto, ó infeliz, sente o saudável e honesto temor da justiça e me obedece. A hora da confrontação é chegada e deves responder. Não te obstines em resistir. Não entres no irrevogável. Pensa que é meu direito pôr nisso um ponto final. Escuta, cadáver já começado! A menos que te agrade aqui expirar ao longo de horas, dias e semanas, e agonizar durante muito tempo, de uma medonha agonia faminta e fecal, sob o peso dessas pedras, sozinho neste subterrâneo, abandonado, esquecido, aniquilado, devorado por ratos e baratas, mordido pelos bichos das trevas, enquanto todo mundo poderá ir e vir, comprar e vender, e enquanto os carros passarão na rua acima da tua cabeça; a menos que te convenha agonizar sem remissão no fundo deste desespero, gemendo, chorando, blasfemando, sem um médico para tratar das tuas feridas, sem um padre para oferecer o copo de água divino à tua alma; ah, a menos que queiras sentir brotar lentamente em teus lábios a pavorosa espuma do sepulcro, ah, te rogo e te conjuro, ouve o que digo! Apelo-te por tua própria salvação, tem pena de ti mesmo, faz o que te pedem, cede à justiça, obedece, vira a cabeça, abre os olhos e diz se reconheces este homem! 
- VICTOR HUGO - O homem que ri.

Nenhum comentário: