[1] Em caso paradigmático julgado pela Suprema Corte dos EUA, o juiz Douglas afirmou (em tradução livre): "Uma reclamação, que um tribunal ou agência pode considerar sem fundamento, pode passar despercebida; mas pode surgir um padrão de alegações repetitivas e infundadas, o que leva o investigador a concluir que os processos administrativos e judiciais foram abusados. Essa pode ser uma linha difícil de discernir e traçar. Mas, uma vez desenhado, o caso é estabelecido que o abuso desses processos produziu um resultado ilegal, ou seja, efetivamente barrando o acesso dos réus às agências e tribunais. Na medida em que os processos administrativos ou judiciais estão envolvidos, ações desse tipo não podem adquirir imunidade buscando refúgio sob a égide da 'expressão política'." (California Motor Transport Co. v. Trucking Unlimited, 404 U.S. 508, 1972; tradução livre do original a seguir: "One claim, which a court or agency may think baseless, may go unnoticed; but a pattern of baseless, repetitive claims may emerge which leads the factfinder to conclude that the administrative and judicial processes have been abused. That may be a difficult line to discern and draw. But once it is drawn, the case is established that abuse of those processes produced an illegal result, viz., effectively barring respondents from access to the agencies and courts. Insofar as the administrative or judicial processes are involved, actions of that kind cannot acquire immunity by seeking refuge under the umbrella of 'political expression.'"). Também a doutrina brasileira analisa o tema à luz do direito concorrencial (cf., dentre outros, Bruno Braz de Castro, Sham litigation: o abuso do direito de petição com efeitos concorrenciais, Revista do Ibrac – Direito da Concorrência, Consumo e Comércio Internacional, v. 18, p. 58-74, jul.-dez. 2010).
[2] Afirmou-se, ainda: "O ardil, não raro, é camuflado e obscuro, de modo a embaralhar as vistas de quem precisa encontrá-lo. O chicaneiro nunca se apresenta como tal, mas, ao revés, age alegadamente sob o manto dos princípios mais caros, como o acesso à justiça, o devido processo legal e a ampla defesa, para cometer e ocultar as suas vilezas. O abuso se configura não pelo que se revela, mas pelo que se esconde. Por esses motivos, é preciso repensar o processo à luz dos mais basilares cânones do próprio direito, não para frustrar o regular exercício dos direitos fundamentais pelo litigante sério e probo, mas para refrear aqueles que abusam dos direitos fundamentais por mero capricho, por espírito emulativo, por dolo ou que, em ações ou incidentes temerários, veiculem pretensões ou defesas frívolas, aptas a tornar o processo um simulacro de processo ao nobre albergue do direito fundamental de acesso à justiça" (STJ, REsp 1.817.845/MS, rel. p/ Acórdão ministra Nancy Andrighi, 3.ª T., j. 10/10/2019). Em seu voto, a eminente ministra Nancy Andrighi afirma, ainda: "A despeito de a doutrina da sham litigation ter se formado e consolidado enfaticamente no âmbito do direito concorrencial, absolutamente nada impede que se extraia, da ratio decidendi daqueles precedentes que a formaram, um mesmo padrão decisório a ser aplicado na repressão aos abusos de direito material e processual, em que o exercício desenfreado, repetitivo e desprovido de fundamentação séria e idônea pode, ainda que em caráter excepcional, configurar abuso do direito de ação. A excepcionalidade de se reconhecer eventual abuso do direito de acesso à justiça deve ser sempre ressaltada porque, em última análise, trata-se um direito fundamental estruturante do Estado Democrático de Direito e uma garantia de amplíssimo espectro, de modo que há uma natural renitência em cogitar da possibilidade de reconhecê-lo em virtude da tensão e da tenuidade com o próprio exercício regular desse direito fundamental. Respeitosamente, esse não é um argumento suficiente para que não se reprima o abuso de um direito fundamental processual, como é o direito de ação. Ao contrário, o exercício abusivo de direitos de natureza fundamental, quando configurado, deve ser rechaçado com o vigor correspondente à relevância que essa garantia possui no ordenamento jurídico, exigindo-se, contudo, e somente, ainda mais prudência do julgador na certificação de que o abuso ocorreu estreme de dúvidas".
[3] A respeito, cf., dentre outros, George W. Pring, SLAPPs: Strategic Lawsuits against Public Participation, Pace Environmental Law Review, v. 7, set./1989.
[4] Como se afirmou em julgado do STF dedicado ao "efeito resfriador" quanto à atuação parlamentar, "o debate público não pode ser paralisado sob a ameaça constante e generalizada da responsabilização penal e cível, especialmente no que se refere à manifestação de opiniões dos detentores de mandato parlamentar. O designado ‘efeito resfriador’ sobre o discurso (chilling effect) deve ser evitado, sob pena de induzir à autocensura e à mitigação do debate democrático e difusão da informação" (STF, Inq 3817, 1.T., j. 7/4/2015, trecho do voto do min. Marco Aurélio). Afirmou-se, ainda, em outro julgado do STF: "Vale lembrar que as funções parlamentares abrangem, além da elaboração de leis, a fiscalização dos outros Poderes e, de modo ainda mais amplo, o debate de ideias, fundamental para o desenvolvimento da democracia. Naturalmente, o ideal seria que tais funções fossem exercidas sem ofensas pessoais, centrando-se nos fatos e argumentos expostos, e não em seus interlocutores. Contudo, mesmo quando tal não ocorre, quis a Constituição proteger os parlamentares da reprimenda judicial. Isso para evitar que a ameaça de persecução cível e penal gerasse um efeito resfriador de seus discursos (chilling effect) e, consequentemente, prejudicasse a livre exposição de pensamentos na esfera legislativa, vocacionada que é ao debate público. O que se tutelou, convém frisar, foi a própria democracia" (STF, RE 600.063, Pleno, j. 25.02.2015, trecho do voto do Min. Roberto Barroso). Tais considerações aplicam-se, mutatis mutandis, ao que escrevemos no presente texto. Examinamos o assunto sob a perspectiva constitucional e processual em dois de nossos livros, a Constituição Federal Comentada (7.ª edição, 2022, comentário ao artigo 5.º, caput, inciso XXXV e ao artigo 53 da Constituição) e o Código de Processo Civil Comentado (8.ª edição, 2022, comentário ao artigo 80 do CPC), ambos publicados pela Editora Revista dos Tribunais (mais informações sobre essas obras aqui).
[5] Consta da Recomendação: "Artigo 1º — Recomendar aos tribunais a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão. Artigo 2º — Para os fins desta recomendação, entende-se por judicialização predatória o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão. Artigo 3º — Com o objetivo de evitar os efeitos danosos da judicialização predatória na liberdade de expressão, recomenda-se que os tribunais adotem, quanto ao tema, medidas destinadas, exemplificativamente, a agilizar a análise da ocorrência de prevenção processual, da necessidade de agrupamento de ações, bem como da eventual má-fe dos demandantes, a fim de que o demandado, autor da manifestação, possa efetivamente defender-se judicialmente. Artigo 4º — O CNJ poderá, de ofício ou mediante requerimento, acompanhar a tramitação de casos de judicialização predatória, bem como sugerir medidas concretas necessárias para evitar o efeito inibidor (chilling effect) decorrente da judicialização predatória." Íntegra disponível aqui.
[6] Embora por motivos ligeiramente diversos, Zulmar Duarte de Oliveira Junior e Rodrigo da Cunha Lima Freire, em texto recente, chegam à mesma conclusão (Assédio processual: o abusivo exercício do direito de demandar e o interesse processual, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/tendencias-do-processo-civil/359308/o-abusivo-exercicio-do-direito-de-demandar-e-o-interesse-processual, acesso em 15/02/2022).
[7] A respeito, cf. Sofia Temer, Financiamento de litígios por "terceiros" (ou "third-party" funding): O financiador é um sujeito processual? Notas sobre a participação não aparente, Revista de Processo, vol. 309, p. 359-384, nov./2020.
José Miguel Garcia Medina é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense (Unipar), professor associado na Universidade Estadual de Maringá (UEM) e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados.
Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2022, 8h00
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