Editor da seção Mente Aberta de ÉPOCA, escreve sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV
O artista pernambucano Gil Vicente virou a vedete da 29ª Bienal de São Paulo antes mesmo de o evento abrir para o público. É uma série de desenhos em que o próprio artista se autorretrata assassinando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o papa Bento XVI, a rainha Elizabeth II da Inglaterra e o presidente George W. Bush, entre outros líderes. As imagens podem parecer chocantes para muita gente. Por esse motivo, o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB-SP), Luiz Flávio D’Urso, solicitou em nota que os as obras de Gil Vicente fossem retiradas da mostra da Bienal porque elas fazem “apologia ao crime” (sic). Quem tem razão nesse caso? O artista em expressar graficamente sua revolta contra os líderes mundiais, assassinando-os simbolicamente, ou o jurista indignado com a incitação ao crime manifestada na série de desenhos? Na minha opinião, os dois têm lá suas razões. O artista, ao chamar atenção sobre si próprio com uma obra que ele considera de teor “crítico”. E o jurista, que deseja também ele promover as artes, mesmo que seja falando mal. Ambos manifestam comovente ingenuidade. Os dois, mesmo em polos opostos, pensam que a arte ainda tem um poder de afetar a realidade. Pobre arte. Ela já não pode nada, virou refém do mercado e tem pouco ou nada a dizer. A controvérsia pelo menos ajuda a arte a sair da tumba para fazer algum barulho.
Para o curador da Bienal, Agnaldo Faria, a indignação da OAB só ajudou a promover a obra de Gil Vicente – até então um artista mais ou menos obscuro no cenário local, embora veterano e dono de uma produção numerosa. Pelo que pude ver, a série de Gil Vicente é formada realistas, sem nenhum tipo de recurso simbólico ou abstrato e revelam o talento do artista em representar personagens reais. É um artista que usa a boa e velha mimese (imitação da natureza) para fazer efeitos especiais em desenhos de boa fatura. Agora Gil Vicente vive seu momento de glória.
Não conheço os gostos artísticos do doutor D’Urso, mas aparentemente ele se rendeu ao efeito mais óbvio da arte: o fato de que ela imita a natureza e, por isso, carrega dentro dela características que a tornam tão real quando a realidade. Mostrou toda a sua noção “naif” em relação a obras artísticas. E acabou promovendo uma obra, tentando aplicar censura, como nos tempos da ditadura.
Condenar obras de arte por subversão à ordem é algo antiquado. Em 1857, o escritor francês Gustave Flaubert teve de responder nos tribunais por ofensa à moral e à religião. Teve de defender a personagem de seu romance, Madame Bovary, Emma, uma adúltera que chamaríamos hoje de viral ou serial. “Madame Bovary c’est moi” (Madame Bovary sou eu), foi a frase que Flaubert pronunciou no tribunal. Queria dizer assim que o artista carregava todos os pecados de sua personagem – e da humanidade. O artista, portanto, era culpado como todos nós o somos, porque imaginamos crimes, porque a arte não é pregação moral. A arte faz perguntas – e tenta responde-las muitas vezes com violência.
O crítico Affonso Romando de Samnt’Anna lembra o fenômeno da “morte em efígie”, uma forma que os artistas encontraram de eliminar gente que de quem não gostavam, exterminando-as em representação. Sant”Anna cita o assassinato simbólico do artista Marcel Duchamp feito em 1965 por três pintores: Gilles Aillaud, Antonio Recalcati e Eduardo Arroyo. Eles pintaram oito quadros em que apareciam agredindo e matando Duchamp, o artista que preconizava a morte da arte. Duchamp não gostou das obras. E quem gostaria de se ver representado assim? Mas ali havia pelo menos uma motivação artística: contra aquele que queria matar a arte, nada melhor que matá-lo e assim restituir a arte. O crítico lança uma questão incõmoda: até que ponto o artista pode se atrever? Para ele Gil Vicente comete violência. Ele seria um justiceiro, ainda que simbólico. “É o artista um cidadão acima de qualquer suspeita, acima de todas as leis sociais?”
Eu responderia que não. Quando um artista magnífico como Iberê Camargo matou um homem, foi julgado, e, mesmo absolvido, seu ato teve consequências em sua arte, contaminada desde então pelo luto. O mesmo se deu ao príncipe Gesualdo di Venosa, que no século XVII assassinou a mulher e o amante – e se persignou por isso até morrer inutilmente. Mesmo assim, compôs madrigais cromáticos e dissonantes que até hoje nos impressionam. O marquês de Sade criou um catálogo de perversões sexuais, praticou algumas, foi preso por longos anos por isso, mas hoje é considerado um gênio. O artista não está acima do bem e do mal, quando ele pratica um crime. Mas a arte que ele pratica não deve ser considerada como um prolongamento do crime que supostamente cometeu.
Eu me pergunto se Gil Vicente praticou um crime simplesmente porque se desenhou matando personalidades vivas e ativas no cenário mundial. Ele incita a violência ou provoca nosso desalento e reflexão? A motivação do artista pernambucana é motivação política. Ele quer se vingar da ordem constituída e matar os ícones em seus desenhos. Diz que as personalidades que ele matou no papel são em geral criaturas detestáveis e muitas delas desonestas. Quer mostrar sua revolta contra o Estado e a ordem jurídica. Gil Vicente diz que não vota e odeia líderes. Podemos discordar ou não dessas afirmações, mas não vejo mais do que isto: a intenção de chocar que todo artista cedo ou tarde (neste caso tarde) tem.
Não vou me deter na qualidade das obras. Elas me parecem bem feitas, hiper-realistas e interessantes. São virulentas no efeito, e refletem este mundo feito de violência desenfreada, em que atentados contra políticos, tortura e crueldades passam a ser tolerados. Gil Vicente está debaixo do mal, afetado por um espírito de época em que tudo parece permitido. Nem por isso deve ser condenado. Retirar suas obras da Bienal seria um ato de violência e censura maior que os perpetrados na série do artista. Seria interpretar literalmente uma obra de arte. Bom ou mal, o artista só é criminoso quando pratica um crime. As obras não constituem um crime em si mesmas.
O doutor D’Urso está agindo como inocente útil, e colaborando na divulgação do evento. Sugiro que os monitores da Bienal levem-no a dar um passeio pelas obras, para entender o estado da arte contemporânea. Ele talvez se espante. E, quando quiser prender todo mundo no pavilhão da Bienal, será preciso explicar que a ordem simbólica e imaginária é outra que a real.
(Luís Antônio Giron escreve às terças-feiras)
Nenhum comentário:
Postar um comentário