(...)
A intervenção do Poder Judiciário para
decretação do tombamento de imóvel particular de interesse histórico, artístico
e cultural deve ser admitida apenas em casos excepcionais, nos quais haja
evidente receio de sua deterioração decorrente da omissão da Administração
Pública em proceder execução das medidas administrativas necessárias à
preservação do bem.
Caso concreto em que o imóvel discutido está
passando por reformas para sua manutenção em razão do desgaste do tempo, sem no
entanto afetar as suas características históricas essenciais.
Improcedência dos pedidos formulados na ação
civil pública para decretação do tombamento com a interrupção das reformas na
denominada Igreja Queimada.
Restabelecimento dos comandos da sentença de
improcedência da demanda.
EMBARGOS
INFRINGENTES PROVIDOS.
Embargos Infringentes
|
Segundo Grupo
Cível
|
Nº 70023476856
|
Comarca de
Pedro Osório
|
IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL
|
EMBARGANTE
|
MINISTÉRIO PUBLICO
|
EMBARGADO
|
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes do Segundo Grupo
Cível do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em dar provimento aos
embargos infringentes, vencido o Desembargador Rogério Gesta Leal.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os
eminentes Senhores Des. João Carlos Branco Cardoso (Presidente),
Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco, Des.ª Matilde Chabar Maia, Des. Alexandre
Mussoi Moreira, Des. Rogério Gesta Leal e Desa. Agathe Elsa Schmidt da Silva.
Porto Alegre, 11 de julho de 2008.
DES.
PAULO DE TARSO VIEIRA SANSEVERINO,
Relator.
RELATÓRIO
Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (RELATOR)
Trata-se de embargos
infringentes opostos pela IGREJA EVANGÉLICA LUTERANA DO BRASIL, nos autos
da ação civil pública ajuizada pelo
MINISTÉRIO PÚBLICO, do acórdão que, por maioria, deu provimento ao recurso de
apelação, para declarar o prédio da “Igreja Queimada” como patrimônio
histórico-cultural do Município de Cerrito, averbando-se essa declaração
judicial no registro imobiliário, além de impor a condenação à demandada às
obrigações de não-fazer consistentes em não destruir, demolir ou mutilar, reparar,
pintar ou restaurar a Igreja Evangélica Luterana São João sem autorização do
órgão municipal competente, bem como ao pagamento das custas processuais, sem
condenação de honorários advocatícios, eis que ausente previsão legal.
Irresignada, nas razões recursais, a embargante
sustentou que o tombamento pelo Poder Judiciário implica em invasão da
competência exclusiva da Administração, por se tratar de ato de competência
privativa do Poder Executivo, nos termos do art. 216, §§ 1º e 2º da
Constituição Federal. Destacando a existência de um Conselho Consultivo Federal
do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a fim de alicerçar o
tombamento em dados técnicos em motivada fundamentação por lei o ato do Poder
Executivo. Além disso, argüiu que não se podem dispensar as fases do processo
administrativo previsto no Dec.-lei n. 25/37, com alteração da Lei n. 6.292/75,
não se podendo esquecer da necessidade de elaboração da intervenção do Estado
e/ou Município para o enquadramento e definição do tema. Postulou o provimento
dos embargos, coma reforma do acórdão e restabelecimento da sentença de
improcedência.
Não houve contra-razões.
A Procuradoria de Justiça manifestou-se pelo
desacolhimento dos embargos infringentes.
É o relatório.
VOTOS
Des. Paulo de Tarso Vieira Sanseverino (RELATOR)
A matéria controvertida central devolvida ao
conhecimento deste colendo 2º Grupo Cível, no caso presente, diz respeito à
possibilidade de o Poder Judiciário
declarar o tombamento de bem particular, independente de ato administrativo do
Poder Executivo.
Não obstante esta seja a matéria devolvida ao
conhecimento através das razões de apelação da parte interessada, abalizada em
precedente jurisprudênciais do Superior Tribunal de Justiça, colacionadas nas
razões recursais, a solução da controvérsia está na prevalência dos fundamentos
da sentença recorrida.
Com a devida vênia ao voto vencedor do eminente Des.
Rogério Gesta Leal, embasado no parecer do Procurador de Justiça, Dr. Eduardo
Roth Dalcin, ao meu sentir razão assiste ao voto minoritário da lavra do Dr.
Pedro Pozza, que confirmava a sentença de 1º grau por seus próprios
fundamentos.
A solução conferida pelo eminente Juiz de Direito da
Comarca de Pedro Osório, Dr. Marcelo Malizia Cabral, na sentença, levou em
consideração as peculiaridades locais, especialmente os seus aspectos
históricos. Como o Magistrado de 1º grau encontra-se mais próximo do local dos
fatos do que este Tribunal de Justiça, a sua manifestação merece ser
especialmente sopesada nesse tipo de questão.
Por isso, tomo liberdade de transcrever os fundamentos
da sentença, como parte integrante das razões de decidir:
“Inicialmente,
de se dizer que não há dúvida concernente ao prédio representar verdadeiro
símbolo da colonização alemã no Município de Cerrito.
Como bem
salientado pelos contendentes, o prédio erguido na década de 20 do século
passado foi, em plena guerra mundial, alvo de um incêndio, catástrofe que lhe
deu o apelido “Igreja Queimada”.
Ocorre
que, de acordo com a prova ofertada pelo órgão ministerial:
“O que restou da Igreja
‘Diz A. Westermann: ‘Ficaram só as paredes e a torre. O teto e
as telhas caíram. O altar tiraram para fora porque diziam que este eles não
poderiam queimar porque era de Deus. Tudo o que era de madeira ficou reduzido a
cinzas.” (Leopoldo Wille, em Igreja Evangélica
Luterana ‘São João’: um pouco de história, pág. 15).
Ora, se de um lado há pretensão do Estado e
da sociedade em manter intactos os prédios históricos, de outro não há
informação nos autos sobre obras ou projetos modificadores da fachada externa e
do altar – únicos resquícios da construção teutônica.
No que diz com o pedido de declaração do
prédio como patrimônio cultural do Estado, este deve andar nas disposições do
Decreto-Lei n.º 25, de 30 de novembro de 1937.”.
Consigno que a obra referida na sentença, da autoria de
LEOPOLDO WILLE, denominada “Igreja Evangélica Luterana São João: Um pouco de
História”, está colacionada a fl. 85.
Deve-se ponderar que, não obstante a polêmica central
trazida pelos presentes embargos infringentes atacar a possibilidade de o Poder
Judiciário decretar o tombamento de imóvel particular, constitui questão
prejudicial os fatos contemplados na sentença, concernentes à inocorrência de “
obras ou projetos modificadores da fachada externa e do altar – únicos
resquícios da construção teutônica.
Diante desse quadro, a causa de pedir da petição
inicial decorre do receio da comunidade local da descaracterização denominada
“Igreja Queimada” (fls. 35-8), em razão de reformas já realizadas e que
estariam por ser realizadas por Ruben Scheunemann e Aldino Leitzke, segundo do
relatório de vistoria às fls. 111-6 dos autos, apresentado junto à contestação.
Observa-se não haver premência em decretar o tombamento
da “Igreja Queimada”, por não se revelar presentes nos autos, o prejuízo
premente a ensejar a atuação do Poder Judiciário.
Nesse ponto, merece referência o ofício de fl. 169 do
Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE), datado de 27
de outubro de 2006 e assinado pela Arquiteta Angela Braghirolli e pelo
Engenheiro Paulo Tatsch, que deixa claro que a importância histórica do prédio
está consubstanciada em seus aspectos exteriores, ou seja, no seu fachadismo e
volumetria. Acrescentaram, além disso, que a intervenção feita, com o forro de
PVC, é reversível, podendo ser substituído, em época oportuna, por um de
madeira. Finalmente, referem que o prédio não é tombado.
Deve-se, então, estabelecer a possibilidade de ser
feito esse tombamento por decisão judicial.
Com efeito, o tombamento é ato administrativo a ser
realizado pelo Poder Público, consoante art. 216, §1º, da Constituição Federal,
sendo matéria de competência comum aos três entes federativos, nos termos do
art. 23, inc. III, da Constituição Federal.
A questão envolve diretamente o interesse público,
tendo por fundamento “a necessidade de
adequar o domínio privado às necessidades de interesse público” (Carvalho
Filho, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo 17ª ed.,
LumenJuris:Rio de Janeiro, p. 681). A questão pode ser analisada pelo Poder
Judiciário, na hipótese de omissão dos órgãos competentes para analisar do
Poder Executivo.
Com efeito, a doutrina, embora aponte tratar-se de ato
de competência exclusiva do Poder Executivo, por se tratar de ato tipicamente
administrativo e não legislativo, pois nesta última – através de leis de
efeitos concretos – suprimiria do proprietário qualquer possibilidade de
controle, nos termos de Carvalho Filho, José dos Santos. Manual de Direito
Administrativo 17ª ed., LumenJuris:Rio de Janeiro, p. 685.
Por outro lado, Maria Sylvia Di Pietro, Direito
Administrativo 13ª Ed., Atlas: São Paulo, p. 131, acompanhando a ampliação da
proteção ao patrimônio histórico e ao meio ambiente fomentada pela Constituição
Federal de 1988, sustenta a possibilidade da utilização da ação civil pública e
da ação popular como “meios mais úteis,
como formas de proteção, precisamente em relação aos bens ainda não tombados,
porque, em relação a estes, as restrições e a fiscalização a que se sujeitam já
têm por objetivo dar-lhes adequada tutela.”
A melhor solução para essa questão é limitar-se a
intervenção do Poder Judiciário para casos excepcionais, nos quais haja efetiva
receio prejuízo à conservação do patrimônio histórico, artístico ou cultural
brasileiro, em razão da omissão do Poder Executivo em proceder a medidas
administrativas limitativas (tombamento).
Não é o que se infere no caso em espécie, no qual o
imóvel sobre o qua recai a disputa da comunidade local está passando por
reformas em razão do desgaste do tempo, sem no entanto afetar as suas
características essenciais.
Observa-se que o exame acurado desta questão demanda
conhecimento técnico específico, não sendo em vão que o Decretp-Lei nº 25/67,
prevê um procedimento esecífico para a decretação do tombamento.
Diante desse quadro, penso que a melhor solução para o
caso concreto é a improcedência dos pedidos da demanda, considerando não haver
elementos suficientes para autorizar a intervenção do Poder Judiciário na
esfera privada, dada a ausência de demonstração de risco efetivo para a
preservação do patrimônio histórico cultural
no caso considerado.
Ante o exposto, estou em dar provimento aos embargos
infringentes para restabelecer os comandos da sentença de improcedência da
demanda.
É o voto.
Des.ª Matilde Chabar Maia (REVISORA)
Senhor Presidente examinei os autos e acompanho o e.
Relator.
Primeiro concordo que o Poder Judiciário poderá, quando
provocado, reconhecer a necessidade de proteção de bens ainda não tombados.
Para isto, tenho que a ação civil pública é meio hábil à preservação de certos bens de valores
histórico, artístico, arqueológico, etnográfico ou bibliográfico, não
condicionando a iniciativa do Parquet a manifestação da Administração previamente.
Depois, os autos mostram que a denominada “Igreja
Queimada” tem importância histórico-cultural à comunidade local do atual
Município de Cerrito, antigo Passo do Sant’Ana.
Embora assim conclua, tenho que no caso examinado
inexiste a ofensa ao patrimônio histórico ante a prova produzida.
O Relatório de Visitas de fls.155/159 encaminhado pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – IPHAE – revela que a
Igreja Evangélica Luterana “Igreja Queimada” foi construída em 1940 e em 1942
sofreu um incêndio, permanecendo somente as paredes externas e a torre,
iniciando-se a reconstrução em 1948.
A igreja é um prédio eclético e não gótico, sendo que o
mobiliário, o piso em madeira e o mezanino, embora posterior à construção,
podem ser considerados originais do prédio. O forro, contudo, embora a
estrutura tenha conservado a volumetria original, restou alterado no ano de
2003, com a substituição da madeira original por PVC na cor branca.
Esta a alteração parcial havida e, segundo os
especialistas, não provocou qualquer degradação ao patrimônio
histórico-cultural local, eis que plenamente reversível, ou seja, em época
oportuna, caso haja interesse da comunidade, o forro de PCV poderá ser
substituído por um de madeira com as mesmas características do da construção
original (conclusão que se extrai da comunição do IPHAE de fls. 169).
Merece registro que dita alteração se fez em virtude do
mau estado do forro de madeira original e a pedido de representantes da
comunidade, objetivando facilitar a manutenção, evitando deteriorações.
Assim, tenho que não há informação nos autos sobre
obras modificativas da fachada externa e do altar.
Os únicos
resquícios do incêndio mencionado, conforme concluiu o magistrado sentenciante,
colhe-se de fls. 85, foram as paredes, a torre e o altar. O teto e as telhas
caíram.
Diante do Exposto, também estou acompanhando para
acolher os embargos infringentes.
Des. Alexandre Mussoi Moreira - De acordo com o Relator.
Des. Rogério Gesta Leal
Com a devida vênia, divirjo em parte do eminente
Relator, a fim de vedar a realização das obras de recuperação da Igreja
Queimada, localizada no Município de Cerrito.
Eminentes colegas, fui o Relator da Apelação Cível n.
70020269072 (3ª Câmara Cível, j. 01.11.2007), ocasião em que acolhi em parte o
apelo deduzido pelo Ministério Público, vedando a realização de obras que
viessem a utilizar PVC na reconstrução da referida Igreja.
Reedito os fundamentos lançados no referido acórdão:
“Avaliados, preliminarmente, os
pressupostos processuais subjetivos e objetivos da pretensão deduzida pelo
apelante, tenho-os como regularmente constituídos, bem como os atinentes à
constituição regular do feito até aqui, conhecendo do recurso em termos de
propriedade e tempestividade.
Inicialmente, a tutela antecipada
foi deferida, no sentido de suspender qualquer obra de reforma no prédio
denominado “Igreja Queimada”, sob pena de multa diária na ordem de R$ 500,00
(quinhentos reais). A sentença cassou a antecipação de tutela anteriormente
deferida, julgando improcedente a ação, ensejando o manejo do presente recurso.
Passo à análise das questões
aduzidas no apelo, senão vejamos:
A Constituição Federal em seu
artigo 216, menciona que:
“Art. 216 – Constituem patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade
brasileira nos quais se incluem:
(...)
§1º - O Poder Público, com a
colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural
brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e
desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.” grifei
Pelo que se depreende do
mencionado artigo, a declaração de bens como sendo patrimônio
histórico-cultural, pode se dar, além das formas elencadas no referido artigo,
por “outras formas de acautelamento e preservação”. Sendo assim, ou seja, pode
o Poder Judiciário reconhecer, através desta ação civil pública, a Igreja como
patrimônio histórico-cultural sem o prévio tombamento, uma vez que constatado
inclusive pela perícia realizada juntada às fls. 154/159, o valor
histórico-cultural da Igreja mencionada .
A matéria, ora discutida, foi
muito bem abordada pelo Procurador de Justiça que atuou no feito, dessa forma adoto
as razões do parecer ministerial como razões de decidir, afim de evitar
tautologia, in verbis:
“(...)
Da (des)necessidade de prévio tombamento
Na respeitável sentença recorrida,
o magistrado sustentou a impossibilidade de declaração judicial do prédio como
patrimônio histórico-cultural sem o prévio tombamento na forma prevista no
Decreto-Lei n.º 25, de 30.11.1937.
Não procede este fundamento.
Com o devido respeito, trata-se de
tese superada pela maciça doutrina nacional.
Conforme preleciona HUGO NIGRO
MAZZILLI, encontra-se ... superado o argumento no sentido de que seria
indispensável o prévio tombamento para a proteção jurisdicional do bem de valor
cultural...[1]
JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO explicita que
... Embora o tombamento seja um meio de restringir a propriedade por ato do
Estado, para o fim de preservação de certos bens de valores histórico,
artístico, arqueológico, etnográfico ou bibliográfico, não se pode condicionar
o ajuizamento da ação civil pública a essa providência administrativa . E há
mais de uma razão para esse entendimento. De um lado, a lei não previu esse
tipo de condição da ação no caso em foco. Depois, pode ocorrer que a falta de
proteção de tais bens decorra exatamente da omissão do Poder Público, de forma
que, se esse fato ocorre, é através da ação civil pública que os legitimados
buscarão a necessária tutela jurisdicional.[2]
Igualmente, é a lição de DI
PIETRO:
Além da proteção administrativa,
por meio do tombamento, disciplinado por esse Decreto-lei [n.º25/37], o
patrimônio histórico ou artístico pode ser defendido por meio da ação popular
ou da ação civil pública. Não é exigível o prévio tombamento como condição da
ação; aliás, são precisamente os bens ainda não tombados os quais mais
necessitam de proteção. É curioso que, se em juízo ficar reconhecido o valor
patrimonial do bem, para fins de proteção, ter-se-á um caso típico de tombamento resultante de decisão judicial.
Pelo exposto, pode-se definir a
ação civil pública como o meio processual de que se podem valer o Ministério
Público e as pessoas jurídicas indicadas na lei para proteção de interesses
difusos e gerais.[3]
Esse entendimento doutrinário é
fruto interpretativo do preceito constitucional estatuído no artigo 226, e seus
§§, da Carta Magna de 1988, e no artigo 1.º, inciso III, da Lei n.º 7.347/85.
A leitura de ambos os dispositivos
não demonstra qualquer restrição à atuação do Poder Judiciário mediante a
indispensável prestação jurisdicional que cada caso concreto requer, pois
incumbe ao Poder Público, nas esferas Federal, Estadual e Municipal, seja por
intermédio do Poder Executivo, Legislativo ou Judiciário, proteger os bens
integrantes do patrimônio cultural mediante ações de acautelamento e ou
preservação,[4]
nem existe a exigência constitucional de que essa atuação jurisdicional dê-se
apenas nos casos de prévio tombamento.
Portanto, resta afastado um dos
fundamentos que sustenta a sentença recorrida.
Da “Igreja Queimada” como patrimônio histórico-cultural do Município de
Cerrito
Na petição inicial, o ilustre Promotor
de Justiça ANDRÉ DE AZEVEDO COELHO, com base em obras históricas anexadas aos
autos, efetuou a retrospectiva histórica da denominada “Igreja Queimada”, demonstrando a sua importância
histórico-cultural à comunidade local do atual Município de Cerrito, antigo
Passo do Sant’Ana, que merece reprodução:
Da Igreja Queimada:[5]
Os primeiros imigrantes alemães,
provindos, principalmente, da Pomerânia, chegaram à região de Pelotas e São
Lourenço do Sul no ano de 1958. Eram, em sua grande maioria, evangélicos
luteranos.
Nessa época, por motivos
econômicos e religiosos, milhares de pessoas provenientes da Alemanha emigraram
para a América do Norte e América do Sul.
Como referido, a imensa maioria
dessas pessoas eram evangélicas luteranas, sendo que a própria Lei de Emigração
estabelecia que os grupos deveriam ser acompanhados por um pastor.
Obedecendo as exigências da Lei de
Emigração um grupo de 800 pessoas, dirigidas por 5 pastores, emigraram para os Estados Unidos e ali fundaram, em
1847, o Sínodo Evangélico Luterano de Missouri, Ohio e outros Estados.
Em 1920, chegaram ao Passo do
Sant’Ana, atualmente pertencente ao Município de Cerrito, algumas famílias
alemãs provenientes da Colônia de São Pedro, hoje Município de Morro Redondo.
Essas famílias foram fundadoras da Congregação São João de Passo do Sant’Ana
após, o que, construíram a Igreja, em
estilo gótico, com suaves linhas arquitetônicas refletindo ordem, equilíbrio e
beleza (fl. 54 e 55).
Dois anos, após, em plena 2a Guerra Mundial, a
Igreja foi queimada por pessoas da localidade sob o argumento de que no local
existia um rádio que transmitia informações para a Alemanha nazista.
Da queima restaram apenas as paredes e a torre, sendo que nesta
foram colocadas dinamites que não explodiram. O altar também foi “poupado”, visto que os agressores entendiam que era
“sagrado”.
“Perguntamos ao Sr. A. Westermann
se assistiu a queima a igreja e ele respondeu o seguinte:
‘Sim, assisti a queima da igreja
de longe. O chefe dos incendiários era um farmacêutico residente na Vila
Freire, localidade próxima a Passo do Sant’Ana. Meu sogro, Pedro Munsberg, que
tinha um caminhão, mantinha boas relações com ele. Jamais poderia imaginar que
detrás de aparência aparentemente amistosa se escondesse tanta maldade e
preconceito. Também havia um relacionamento amistoso dos colonos com os outros
incendiários. Naquele dia fatídico, meu sogro tinha ido de carroça para a
localidade de Passo do Vieira. Repentinamente, viu-se cercado por um grupo de
desordeiros que prenderam-no e o levaram de volta para o Passo do Sant’Ana,
onde já estava presa sua esposa em frente à igreja. Com o revólver encostado na
cabeça e a faca no peito, obrigaram-no, junto com sua esposa, a assistir a
destruição por incêndio da sua igreja construída há apenas dois anos. Depois
levaram meu sogro preso à Pelotas onde foi encontrado morto numa cela do
quartel do exército’.
(...)
‘Depois da queima da igreja’,
continua A. Westermann, ‘não houve interrupção dos cultos. A reconstrução da
igreja foi iniciada dois anos depois pelo mesmo construtor que a construiu, o
Sr. Pierobom’.
Transcrevemos aqui o que consta na
Ata No 27 de 18 de janeiro de 1948: ‘O presidente relata que entrou
em contato com o construtor Pierobom. Diz que o mesmo está disposto a
reconstruir a igreja e se a comunidade aceitar a sua proposta, pode iniciar a
obra com a entrada do mês de fevereiro e não aceitando outro serviço. A
proposta é esta: por Cr$ 70,00, diários ele vêm trabalhar, podendo a comunidade
empregar serventes a sua vontade. Entrou em contato também com o marcineiro
Guilherme Noerenberg. Este quer fornecer e colocar as janelas, feito de madeira
louro, vidraças, salvo o ferro, por Cr$ 600,00, da mesma maneira portas
colocadas, pela maior Cr$ 500,00, e pela menor Cr$ 450,00.
Westermann continua sua exposição
dizendo: ‘Hoje em toda a Região Sul, a localidade de Passo do Sant’Ana é
conhecia como Igreja Queimada. Se perguntam a alguém de onde ele é, respondem: Da Igreja Queimada... ou dizem: Aquele
alemão é da Igreja Queimada. Assim a localidade da Igreja é hoje muito mais do
que uma simples localidade. Ela constitui um símbolo que fala alto. Também
mostra o que um grupo de desvairados pode fazer com seu vandalismo. Por outro
lado, a reconstrução da igreja revela a fé, a esperança no futuro.” (Igreja
Evangélica Luterana São João: um pouco de história, Leopoldo Wille, págs. 13 e
16 – fl. 55 do inquérito civil em anexo).
Por sua vez, José Plínio Guimarães
Fachel, em sua obra Histórias e Etnias de Pelotas, fls. 215/219 (fls. 61/66 do
anexo inquérito civil), relata:
“Uma outra Igreja Luterana, também
de nome São João, foi atacada na mesma ocasião, sua torre foi dinamitada. Neste
caso o templo pertencia aos luteranos de Missouri, nos Estados Unidos, e se
localizava na zona rural de Pelotas, a cerca de 50 Km da cidade (atualmente
pertence ao município de Cerrito).
O ataque a essa igreja é muito
significativo, porque ela pertencia a uma confissão religiosa que tinha sede no
principal país aliado do Brasil na Guerra, e isso demonstrava que as violências
tiveram mais um cunho de perseguição étnica – pois era uma colônia de alemães –
do que política.
Lembramos que a perseguição
religiosa pela polícia era justificada, na ótica do Estado, pela vinculação e
subordinação que os luteranos poderiam ter com a Alemanha nazista, mas, nesse
caso, não havia nenhuma relação. De qualquer forma, também foram presos dois
pastores dessa religião, no campo de concentração de ‘Daltro Filho’ (conforme
depoimento de Berthold Engelardt, em 11/9/1999).
Conforme depoimento de Zeli Krause
Muns Berg, ‘só sobraram as paredes da igreja’, prenderam e torturaram alguns
homens, entre eles seu avô, que foi primeiro espancado na cada paroquial,
depois levado para Pelotas, em cuja delegacia morreu; de lá o corpo foi
trazido, no dia seguinte, num caminhão do exército. A vinculação entre as
autoridades e o assassinato de Pedro Munsberg é evidente.
(...)
Caracterizando o desrespeito
cultural e religioso, os agressores colocaram um cavalo no altar e
representaram seu batizado. Ainda conforme o relato da senhora Zeli, liderança
naquela comunidade religiosa, depois do episódio, todos fugiram para os matos,
e, apesar do inverno, lá ficaram refugiados quatorze dias.
(...)
O medo provocou o isolamento e a
solidariedade nessa colônia. Ao invés de destruir as características germânicas
do grupo, o episódio fortaleceu laços étnicos. Alguns velhos não aprenderam o
português e os casamentos, até o final do século XX, eram realizados, quase que
exclusivamente, na própria comunidade, apesar de bem próximo dali existir outra
colônia alemã, da Igreja de Confissão Luterana.
Ainda que já se tenham passado
cerca de sessenta anos, todos na vila conhecem o episódio, que é relembrado
através da tradição oral.
(...)
Nesses dois depoimentos, fica
evidenciada a violência étnica. O luteranismo era a religião de um número
significativo de alemães e o batizado do cavalo, em 1942, foi uma humilhação
para os colonos. Nessa ação, ficou em primeiro plano a intenção de
desmoralização religiosa, ao invés da propalada vingança política. A restrição
comercial gravada na memória do agricultor indica que os descendentes de
alemães ainda sofrem preconceitos. As autoridades não promoveram nenhuma
indenização pelo assassinato de Pedro ou pelo menos danos materiais ao templo.
(...)
O relato de Luiz Henrique Hepp,
agricultor na mesma colônia, nascido em Cruz Alta, em 1907, confirma que ‘botaram
dinamite na torre da igreja’ e que torturaram e mataram Pedro Munsberg. Luiz
vivenciou o episódio e também foi perseguido, lembra que ‘um colono que tinha o
filho no exército escapou’. Pedro foi espancado na casa do pastor, onde ‘o
suspenderam com cordas e puxaram seu pênis’. Os agressores ‘colocaram os
cavalos sobre nós, era para os alemães entregar as terras e as casas, os
brasileiros queriam tomar conta’. Foram os militares que trouxeram o corpo: -
‘o exército fazia o que queria!’ Depois do episódio, viviam escondidos no mato’
(conforme depoimento feito em 27/6/1999).”
Vê-se, assim, que o episódio
marcou sensivelmente a comunidade. As razões invocadas pelos agressores não
refletiam a realidade, o ataque ocorreu, sim, em razão de discriminação étnica
e religiosa sendo, ainda, ao que tudo indica, chancelado pelo Governo
Brasileiro que se encontrava em guerra declarada com a Alemanha.
A Igreja Queimada é o símbolo
presente na comunidade do episódio histórico importantíssimo, entretanto, todo
esse patrimônio vem sendo ameaçado.
Destarte, está bem delineada a
importância da igreja enquanto signo daquele capítulo da história da comunidade
local do atual Município de Cerrito, que não é combatido pelo demandado. Essa
importância está reconhecida na perícia judicial pelos peritos do IPHAE que, ao
responderem aos quesitos 1 e 2 formulados pelo autor (fls. 150/151), afirmaram
que o prédio da “Igreja Queimada” possui
valor histórico-cultural municipal, na medida em que se constitui em
materialização dos hábitos e costumes da comunidade local – fl. 159. Portanto,
diferentemente do pretendido pelo demandante na petição inicial, o pedido deve
ser parcialmente acolhido para ser declarado o prédio da “Igreja Queimada” como
patrimônio histórico-cultural do Município de Cerrito.
Da ocorrência de ofensa ao patrimônio e da necessidade de restabelecer
o status quo ante
O contexto probatório demonstra
ter ocorrido intervenção indevida no forro do prédio, causando alteração na sua
estrutura, conforme bem delineou, com percuciência, a ilustre Promotora de
Justiça LUANA ROCHA RIBEIRO, nas suas razões recursais (fls. 194/195):
Os peritos nomeados pelo juízo
confirmaram a intervenção procedida nas características originais da “Igreja
Queimada” a partir do momento em que substituído o material do forro,
reconhecendo que o estilo arquitetônico do prédio foi parcialmente alterado em
função disso, consoante consta nas fls. 155/159, senão vejamos:
“(...) 5- Se estas obras afetaram
o estilo arquitetônico do prédio?
Parcialmente, na medida em que não houve alteração da volumetria, mas
tão somente substituição do material do forro de madeira por PVC, intervenção
esta perfeitamente reversível.”
Assim, em que pese a substituição
do forro tenha sido realizada em razão do risco que vinha apresentando, a
insurgência do Ministério Público diz com a maneira que se deu a reforma, a
qual foi realizada sem observar os cuidados necessários à preservação do valor
histórico-cultural do prédio.
Ademais, conforme mencionado no
laudo pericial à fl. 159, “(...) Vale registrar que o PVC quando não for
tratado adequadamente é um material altamente combustível e tóxico.”
Resta evidente, portanto, que a
apelada, ao proceder a retirada do forro da Igreja sem observar as
características da construção, colocando uma nova cobertura de PVC - material
este que, além de destoar da estrutura, quando não tratado adequadamente
apresenta riscos, vez que altamente combustível e tóxico - causou dano ao
patrimônio cultural, razão pela qual deve realizar a devida reparação do
dano.
...
Em resposta aos quesitos de nº 5
da fl. 157 e de nº 3 da fl. 159, os experts, a par de reconhecerem a efetiva
alteração no estilo arquitetônico original do prédio, com a substituição do
material do forro por outro de natureza diversa, concluíram que tal intervenção
seria reversível.
...
De outra banda, descabe razão ao
eminente julgador quando entende inviável a tutela do patrimônio cultural pelo
fato de o forro de madeira substituído não ser mais o original, em função do
incêndio que garantiu boa parte da fama da Igreja.
De ter-se que a recuperação do
prédio, após esse incidente, além de ter guardado sintonia com a estrutura
anterior, já conta também com mais de 50 anos, sendo, portanto, igualmente
digno de proteção.
Ademais, há de ser compreendido o sentido da expressão
preservar. O Ministério Público não pretende evitar reformas tendentes à
manutenção do prédio. Ao contrário, reconhece-as como fundamentais. Impensável
a manutenção rigorosa dos mesmos materiais com os quais a Igreja foi
construída, vez que perecíveis.
O importante é que tais reformas
se dêem de modo a não contrariar as linhas originais do imóvel, mediante
restauração que mantenha a harmonia e o mínimo de alteração possível.
Até mesmo para um leigo, é
evidente que a colocação de forro plástico em um prédio histórico constitui uma
chocante intervenção, assim como a pretendida substituição do assoalho por piso
cerâmico - como foi por várias vezes referido pelos administradores da Igreja,
que já haviam adquirido o material e tinham data certa para o início das
reformas (declarações das fls.87/89).
É compreensível que o
intervencionismo estatal nessa esfera de interesses possa ter uma certa
resistência inicial, porquanto a conscientização da população brasileira no
sentido da conservação do patrimônio histórico-cultural mostra-se ainda muito
incipiente.
Por outro lado, o Ministério
Público não desconhece que as reformas realizadas no imóvel e aquelas que ainda
eram pretendidas tivessem boa intenção por detrás; fosse para substituir o
material depredado por um novo, fosse para facilitar a manutenção e a limpeza
com a substituição da madeira por PVC e cerâmica.
No entanto, é importante que se
tenha horizontes mais amplos para reconhecer que a “Igreja Queimada” não é mais
só patrimônio daquela pequena comunidade de Passo do Sat’Ana, merecendo
especial proteção do poder público dada a sua relevância
histórica-cultural-paisagística para todo o Município de Cerrito.
Tal reconhecimento implicará, mais
adiante, maior destaque à Igreja, incremento a seu valor turístico e também
possibilidade de que venha a receber verbas públicas para futuras reparações e
recuperações que certamente se farão necessárias, circunstâncias que reverterão
em favor da comunidade local.
Contudo, em prosseguindo a omissão
do Estado, essas reformas ocorrerão de qualquer forma, sem nenhuma fiscalização
ou orientação técnica no sentido de preservação das características do prédio,
e no futuro muito pouco ou nada restará para retratar o momento histórico por
ele representado.
(...)”
Por outro lado, mister é que se
reconheça que, consoante demonstrado pelas fotos juntados da condição atual da
Igreja e o tipo de madeira que foi substituída por PVC (fls. 115/116),
percebe-se facilmente que se afigura difícil uma reposição do madeiramento
original, quiçá demasiadamente oneroso à própria comunidade, em face do tipo de
material envolvido naquela época. É de se notar também, conforme os
demonstrativos fotográficos, que a estrutura matricial da Igreja, na parte em
que foi já reformada, restou preservada – em termos de ângulo e formatação da
colocação dos novos materiais -, autorizando o entendimento de que tal não
descaracterizou o plano estético do prédio.
Por todo o exposto, voto no
sentido de dar parcial provimento ao apelo para: a) declarar o prédio da
“Igreja Queimada” como patrimônio histórico-cultural do Município de Cerrito,
averbando-se essa declaração judicial no registro imobiliário, além de impor:
b) a condenação à demandada às obrigações de não-fazer consistentes em não
destruir, demolir ou mutilar, reparar, pintar ou restaurar a Igreja Evangélica
Luterana São João sem autorização do órgão municipal competente.
Diante do resultado do julgamento,
condeno a apelada ao pagamento das custas processuais, sem condenação de
honorários advocatícios, eis que ausente previsão legal”.
Do exposto, voto para desacolher os embargos
infringentes.
É o voto.
Desa. Agathe Elsa Schmidt da Silva - De
acordo com o Relator.
Des. João Carlos Branco Cardoso (PRESIDENTE)
Acompanho o voto do em. Relator, com os acréscimos da
em. Desembargadora Matilde.
Des. Nelson Antonio Monteiro Pacheco - De
acordo com o Relator.
DES. JOÃO CARLOS BRANCO CARDOSO -
Presidente - Embargos Infringentes nº 70023476856, Comarca de Pedro Osório: "DERAM PROVIMENTO AOS EMBARGOS INFRINGENTES, POR MAIORIA, VENCIDO O
DES. ROGÉRIO."
Julgador(a) de 1º Grau: MARCELO MALIZIA CABRAL
AH
[1] In A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo,
4.ª ed., p. 99, RT, 1992.
[2] In Ação Civil Pública – Comentários por
Artigo, 2.ª ed., p. 25, Lumen
Juris, 1999.
[3]
MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO, in
Direito Administrativo, 10.ª ed., p.
547, Atlas, 1999.
[4]JOSÉ
EDUARDO RAMOS RODRIGUES, in Tombamento:
Instrumento de defesa do patrimônio cultural – papel da ação civil pública,
apud Ação Civil Pública – Reminiscências
e Reflexões após dez anos de aplicação, p. 305, Coordenador Édis Milaré,
RT, 1995.
[5] As
informações constantes deste título foram extraídas das seguintes obras
literárias:
a)
História e Etnias de Pelotas – As violências contra os
alemães e seus descendentes, durante a Segunda Guerra Mundial, em Pelotas e São
Lourenço do Sul, volume 5, José Plínio Guimarães Fachel;
b)
Igreja Evangélica Lutera “São João”: um pouco de
história, Leopoldo Wille.
Fonte: PORTAL DO TJ/RS
Nenhum comentário:
Postar um comentário