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terça-feira, 9 de abril de 2019

Assassinatos, drogas e abusos policiais: Baltimore continua presa a ‘The Wire’





Marginalização, fracasso escolar, drogas e abusos policiais criam uma espiral de mortes violentas na cidade que foi cenário da série televisiva




Antonia Laborde
Baltimore 7 ABR 2019 - 22:52 BRT
  A avenida W Norte, uma das artérias de West Baltimore, a zona mais afetada pela violência. Xavier Dussaq


Os Estados Unidos têm uma ferida aberta no seu flanco direito. É Baltimore, que não para de sangrar. Uma cidade onde o ritmo é ditado pelo estampido dos tiroteios: em apenas duas horas, três afro-americanos foram mortos antes de chegar à idade adulta. Aconteceu numa quarta-feira de fevereiro, mas poderia ter sido numa segunda-feira de março, ou numa sexta-feira de abril. Esta cidade de 610.000 habitantes (aproximadamente o tamanho de Cuiabá) não conseguiu completar nem sequer uma semana sem vítimas de homicídio neste ano. São 71 casos até agora. “Nós, negros, nascemos em códigos postais que determinam que vamos morrer antes, porque o sistema escolar está destruído, porque não há comida saudável por perto, porque ninguém investe em nossos bairros”, diz Erricka Bridgeford, ativista que perdeu seu irmão, um enteado e dois primos por causa da violência armada.

Dos nomes que aparecem diariamente nas páginas policiais dos jornais locais há um que a população negra de Baltimore (64%) não é capaz de esquecer: Freddie Gray, um afro-americano de 25 anos que foi detido sem justificação em 2015. Enquanto estava sob custódia policial, sofreu lesões na medula espinhal que o deixaram em coma. Uma semana depois da detenção, em 19 de abril, ele morreu. Seu assassinato pelas mãos da polícia —conforme a descrição do Ministério Público, embora o caso não tenha resultado em condenações— abalou a moral da comunidade e marcou um ponto de inflexão nos índices de homicídios.

Os agentes receberam a ordem de diminuir as detenções, o que deu lugar a um crescimento da violência. Naquele ano, Baltimore registrou 342 vítimas de homicídios, a taxa per capita mais elevada da sua história, que em cifras absolutas foram quase as mesmas que em Nova York (13 vezes mais populosa). A explosão da criminalidade em decorrência dos abusos policiais de quatro anos atrás ainda não regrediu, numa cidade que em 2011 comemorava sua menor taxa de homicídios em quatro décadas.

A zona oeste da cidade portuária é a imagem crua da desindustrialização. Os prédios de tijolos aparentes ostentam janelas quebradas, portas substituídas por tábuas precárias e, em algumas esquinas, velas pequenas, balões murchos ou alguma imagem religiosa para recordar que alguém morreu ali. “As mães não queremos que o telefone toque de noite”, diz Sonya Chapple, da Rede de Familiares Sobreviventes. Na noite de 26 de setembro do ano passado, o telefone de Treshawna Williams, de 49 anos, tocou. Era a mãe de seu ex-marido. Fazia anos que não se falavam. Pediu-lhe que fosse imediatamente até a sua rua, por onde Justin, único filho de Williams, costumava perambular. Quando chegou ao local, ela mal notou as fitas amarelas que formavam um cordão de isolamento em meio à escuridão de um quarteirão sem iluminação pública. “Não parava de pensar: ‘Não tem nenhum paramédico’. Um policial me parou e me disse: 'Este não é o seu filho, você não é daqui’.”

Mas era ele: Justin, 28 anos, afro-americano. Segundo o agente, levou 21 tiros. Os primeiros pelas costas. “Eu o tive aos 19 anos, crescemos juntos”, contava Treshawna numa praça, enquanto sua neta de quatro anos corria alegre entre os bancos.
 
Balas perdidas

Nove meses antes de ser assassinado, seu filho tinha terminado de cumprir pena de três anos por posse ilícita de armas. “Cada vez que abro a porta da minha casa tenho medo. Não acredito que eu nem minha neta estejamos a salvo, qualquer um pode ser atingido por uma bala perdida”, afirma a mulher. Um mês depois do homicídio, o detetive deixou escapar a ela que não houve detidos pelo crime por falta de testemunhas. “A polícia está ultrapassada. Cada vez que falava com o agente, me perguntava quem era eu e quem era meu filho”, lamenta, incapaz de sobrepor a impotência à sua doçura. Justin foi morto numa quinta-feira. Uma semana depois, já havia outras 21 vítimas de homicídio em Baltimore.

“Os principais problemas da polícia neste momento não são só os crimes violentos”, afirma Jessica Anderson, jornalista do Baltimore Sun. Nessa seção do mesmo jornal trabalhou David Simon, criador de The Wire, a série criminal por excelência ambientada em Baltimore. Em pouco mais de um ano, a polícia local teve quatro chefes. Um deles, Darryl de Sousa, foi sentenciado no fim de março a 10 meses de prisão por evasão fiscal. Depois da morte de Gray e dos protestos que se seguiram, o Departamento de Justiça investigou o comportamento policial e encontrou um uso excessivo da força, perseguição e detenções arbitrárias contra os afro-americanos. Em 2017, foi aprovado um pacote de reformas para um tratamento policial mais justo, cuja aplicação é fiscalizada por uma entidade independente.

A cada domingo, a igreja presbiteriana First & Franklin estende fora do templo uma fita roxa para cada assassinato ocorrido na semana anterior. No ano passado, foram pendurados 309 panos que se sobrepunham uns aos outros nesse varal. No último fim de semana de março, um grupo liderado pelo reverendo Robert P. Hoch e por familiares das vítimas levaram as fitas ao Departamento de Polícia. O oficial graduado Jeffrey Featherstone, branco, recebeu as peças uma a uma, enquanto os nomes das vítimas eram lidos. Ao seu lado, um oficial afro-americano o acompanhava. Quando as vozes se elevaram ao som de Amazing Grace, Featherstone permaneceu em silêncio, mas não seu companheiro. E, quando propuseram que todos dessem as mãos para orarem em círculo pelas vítimas, Featherstone foi o único a não aderir.
Familiares das vítimas de homicídio entregam à polícia uma fita roxa para cada pessoa assassinada em 2018, em 29 de março. A.L.


– Que estão fazendo? –, pergunta um jovem transeunte, curioso.

– Homenageando as 309 vítimas de homicídio de 2018.

–Pelas mãos da polícia? –, reage, com absoluta naturalidade.

Tori Rose, candidata a vereadora pelo Sétimo Distrito, renunciou a um cargo no Governo federal para voltar à sua Baltimore natal e mudá-la a partir de sua cloaca. Em um ato contra a violência organizado pela ONG Baltimore Ceasefire, ela convida as pessoas que foram embora da cidade —há um problema de despovoamento— a voltarem para ensinar o que aprenderam aos jovens locais. “O que temos aqui são crianças e jovens cujos pais estão na prisão e terminam deixando a escola e caindo nas drogas”, diz. Duas marcas que a cidade carrega: 13,9% dos alunos do ensino médio largaram os estudos em 2016, quase o dobro da taxa nacional, e quase 10% da população é de viciados em heroína, a maior cifra per capita dos EUA. “Se alguém lhes ensinasse administração desde os 14 anos, se o banco lhes permitisse ter uma conta sem a permissão de seus pais e se reabríssemos os centros recreativos estes jovens encontrariam uma alternativa à rua”, reflete Rose.

As crianças das quais os adultos falam estão entediadas, frustradas, querem ir embora. Quando crescer, Journey Ky, de 10 anos, deseja ser advogada “para ajudar as pessoas”. Dois de seus tios estão presos, e outros dois morreram em tiroteios. Gostaria de viver em Los Angeles ou na Austrália: “Aqui eu não me atrevo a sair na rua sozinha”. Kemontae Spears, também de 10 anos, que sonha em jogar na Liga Nacional de Futebol, se soma ao desgosto com a sua cidade. “As pessoas se agridem muito sem razão”, reclama, enquanto faz uma bola rolar. Jerome Adams, de 15, já mudou de expressão. Sob seu capuz, esconde olhos tristes e lhe custa sorrir. Resignado, acha que ficará em Baltimore, mas se agarra a um fio de esperança e diz que, se um dia ficar rico, “adoraria” ir embora.

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