O presidente dos EUA defende valores democráticos, mas privilegia interesses pragmáticos. Enquanto isso, vê a influência norte-americana minguar
por José Antonio Lima — publicado 15/08/2013 08:39
Mosaab El-Shamy / AFP
Homem observa uma fileira de corpos de simpatizantes da Irmandade Muçulmana em necrotério improvisado no Cairo, na quarta-feira 14
Em nenhum outro aspecto, a administração de Barack Obama é tão fracassada quanto no Oriente Médio. E em nenhum outro ponto do Oriente Médio a humilhação imposta ao presidente dos Estados Unidos é tão grande quanto no Egito. O massacre desta quarta-feira 14, no qual ao menos 278 pessoas morreram, mostrou como a maior potência mundial é incapaz de exercer influência sobre um Exército assassino, mesmo bancando os generais que o comandam. E não há perspectivas para o fim da vergonha.
O apoio dos Estados Unidos ao Egito data do fim da década de 1970. Ao assinar a paz com Israel em 1979, o ditador da época, Anwar Sadat, tirou seu país da esfera de influência da União Soviética e o colocou sob as asas norte-americanas. Desde então e até hoje, duas razões primordiais mantêm a parceria Washington-Cairo. O tratado de paz é fundamental para a segurança do Oriente Médio, e também de Israel, grande aliado dos EUA, e o Egito controla o Canal de Suez, mais importante rota comercial do mundo.
Em troca, os EUA repassam ao Egito 1,5 bilhão de dólares anuais, sendo que parte do montante vai diretamente para o bolso dos principais generais. Nos 30 anos do regime de Hosni Mubarak, o presidente que mais insistiu para o país caminhar rumo à democratização foi o de George W. Bush. Após o 11 de Setembro, a administração republicana reconheceu o óbvio: por trás do terrorismo estava a falta de democracia e não o islã. O ímpeto acabou rápido. Em 2005, a Irmandade Muçulmana, que por décadas foi ilegal e apresentava candidatos independentes, ganhou 88 assentos no parlamento egípcio. No ano seguinte, o Hamas, um braço da Irmandade, venceu as eleições nos Territórios Palestinos Ocupados. A dificuldade de lidar com aberturas democráticas que inevitavelmente produziriam governos antiliberais – como são os representantes do islã político pregado pela Irmandade e outros grupos – acabou com a chamada “promoção da democracia”.
Em 2009, cinco meses após assumir a Casa Branca, Obama fez um importante discurso no Cairo. Lembrou os antepassados muçulmanos, citou o Corão e defendeu de forma veemente valores democráticos. Com o surgimento da chamada “Primavera Árabe”, Obama foi surpreendido, assim como boa parte do mundo. O presidente dos EUA provavelmente não esperava que precisasse enfrentar as contradições das ações e discursos norte-americanos tão rapidamente. Ficou claro que, como costuma ocorrer nas relações internacionais, os interesses se sobressairiam diante dos valores.
Obama demorou a condenar a repressão imposta por Mubarak à praça Tahrir. Não fez valer seu peso para acelerar a transição do governo militar, que cometeu uma série de atrocidades. Numa tentativa de criar laços com a Irmandade Muçulmana não condenou de forma veemente os abusos cometidos por este grupo ao chegar ao poder. No último 3 de julho, não condenou o golpe cívico-militar que derrubou Mohamed Morsi. O resultado é que os dois lados da fraturada sociedade egípcia – os adeptos do islã político e os setores cristãos e seculares – são igualmente hostis aos Estados Unidos.
Tal situação esgotou o poder de influência norte-americana no Egito. Segundo reportagem da agência Reuters, emissários da União Europeia teriam conseguido obter um compromisso da Irmandade Muçulmana para acabar com o impasse surgido após o golpe de 3 de julho. O recado foi levado ao atual ditador do Egito, o ministro da Defesa Abdel Fattah al-Sissi, junto com “duras mensagens” do secretário de Defesa dos EUA, Chuck Hagel. A resposta de Sissi foi dada nas ruas.
As ocupações das praças Nahda e Rabaa al-Adawiya, mantidas pela Irmandade no Cairo desde o golpe, foram desfeitas com extrema brutalidade. Relatos da imprensa internacional apontam o uso de blindados, escavadeiras, atiradores de elite, munição real e gás lacrimogêneo contra os manifestantes. Pelo menos uma pessoa morreu queimada na barraca em que estava. Três jornalistas – o cinegrafista Mick Deane, da britânica Sky News; Ahmed Abdel Gawad, do jornal egípcio Al-Akhbar; e Mosab El-Shami, fotógrafo do site islamista RNN – foram assassinados. A violência no Cairo se espalhou pelo país inteiro. Adeptos da Irmandade Muçulmana e outros grupos religiosos atacaram igrejas cristãs e delegacias. Ao todo, estão confirmadas pelos ministérios da Saúde e do Interior 235 mortes de civis e 43 de policiais.
No âmbito político, surgiram novos indícios de que o regime Mubarak está sendo remontado. Uma das faces civis mais importantes do novo governo, o Nobel da Paz Mohamed El-Baradei (que apoiou o golpe) deixou o posto de vice-presidente para assuntos internacionais. E o Exército confirmou a retomada, por um mês, do estado de emergência, que vigorou entre 1967 e 2012. A exceção deve abrir espaço para mais abusos por parte das autoridades.
O secretário de Estado dos EUA, John Kerry, afirmou que a violência era “deplorável”, mas disse acreditar que o caminho para a solução política “continua aberto” mesmo após o massacre. A maior represália cogitada pelos Estados Unidos é o adiamento do treinamento militar “Estrela Brilhante“, em conjunto com as Forças Armadas egípcias e programado para setembro.
Seria ingenuidade pedir para os Estados Unidos cortarem de uma hora para outra a ajuda de 1,5 bilhão que dão ao Egito. Nenhum Estado abre mão de interesses em nome de ideais e, caso Washington fizesse isso, a Arábia Saudita e outros parceiros do Golfo Pérsico ficariam contentes em substituir a fonte de dinheiro. Há, no entanto, até políticos republicanos que apoiam o fim da ajuda, indicando a existência de espaço político nos EUA para dar um passo arriscado. Tivesse Obama coragem e interesse, colocaria sua administração para trabalhar em busca de soluções que não a simples repetição do ciclo de "críticas-mediação-pagamento". Este tipo de ação serve apenas para minar a influência norte-americana no Oriente Médio e fazer o país ser visto como cúmplice de massacres como o desta quarta-feira. Hoje, os militares egípcios estão dedicados a perseguir a Irmandade Muçulmana de modo a tentar acabar com o grupo. Como afirmou o cientista político Emad Shahin ao jornal The New York Times, os ditadores entendem que, no fim, o Ocidente vai apoiar o lado vencedor e, de certa forma, estão certos.
Fonte: CARTA CAPITAL
Nenhum comentário:
Postar um comentário